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ChatGPT já ajudou a dar sentença judicial: esse é o futuro dos tribunais?

Inteligência artificial no tribunal: da análise de dados ao algoritmo que atua como juiz -
Inteligência artificial no tribunal: da análise de dados ao algoritmo que atua como juiz

Rosália Vasconcelos

Colaboração para Tilt, do Recife

12/03/2023 04h00Atualizada em 14/03/2023 09h38

Imagine a seguinte situação: na hora de proferir uma sentença, o juiz ou a juíza consulta uma inteligência artificial antes de elaborar o veredito. Parece surreal, mas aconteceu mesmo. O juiz Juan Manuel Padilla Garcia, de Cartagena, na Colômbia, tirou dúvidas legais com o ChatGPT e, junto de seus comentários, incluiu as respostas na sentença, publicada no final de janeiro deste ano.

Em nenhum lugar do mundo existe uma tecnologia que faça o trabalho de julgar, mas especialistas ouvidos por Tilt dizem que a inteligência artificial já se aproxima do dia a dia dos juízes - algumas são capazes de sugerir decisões.

O caso colombiano opunha uma seguradora de saúde e os pais de uma criança autista. A Justiça foi acionada para decidir se a criança tinha ou não direito a um tratamento médico. Apesar de ser o primeiro caso a vir a público sobre o uso do ChatGPT na Justiça, a discussão sobre ferramentas de inteligência artificial (IA) no meio jurídico não é nova.

No Brasil, a IA vem sendo utilizada basicamente em duas vertentes, explica o professor Juliano Maranhão, doutor da Faculdade de Direito da USP e sócio do escritório Ópice Blum:

  • aplicação dos algoritmos para classificação de documentos, que seria uma modelagem mais simples;
  • uso de grupos de algoritmos de análise de informação em larga escala, usados em atividades como fluxos de categorização e triagem de processos, recuperação e extração de informações e automação da elaboração de documentos, por exemplo.

O judiciário brasileiro vive uma efusão de projetos de inteligência artificial. Em 2022, as iniciativas desse tipo no país cresceram 171% em relação a 2021, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Atualmente, há 111 projetos em andamento. Dos 91 tribunais brasileiros, 58 já utilizam IA, de acordo com o órgão.

  • TJ-BA: o robô Sofia mostra ao magistrado processos com conteúdos semelhantes e fontes de referências que possam auxiliá-lo, o que permite o reaproveitamento de sentenças e decisões. Ela também agrupar processos judiciais por temas;
  • TJ-RO: são 20 os modelos de inteligência artificial implantados. Eles executam atividades de triagem, classificação e identificação de processos. São fundamentais na sistematização e entrega do trabalho dos juízes.
  • TJ-MG: a Plataforma Radar permite ao juiz verificar casos similares, agrupá-los e julgá-los em conjunto.
  • TJ-RR: o robô Mandamus auxilia o juiz a garantir o cumprimento de ordens judiciais: ele expede os mandados, revisa as decisões, localiza o oficial de justiça mais próximo e estabelece prazos para o cumprimento de medidas.
  • STF: são dois robôs em operação, Victor e RAFA 2030. O primeiro vem sendo treinado para verificar se recursos tratam de temas já julgados pelo Supremo; No caso de matérias de repercussão geral, a decisão pode ser aplicada a casos idênticos. Já o segundo identificaria ações relacionadas a direitos humanos.

O uso de IA na esfera administrativa da Justiça traz benefícios, mas não necessariamente mais qualidade, explica Fabio Cardoso Machado, advogado e vice-presidente do IEDC (Instituto Eduardo Correia), associação sem fins lucrativos que atua para desenvolver as ciências criminais.

No Brasil, já temos um problema de massificação de decisões, devido ao inchaço do judiciário. Com a ampliação do uso de robôs para as finalidades que estão sendo tratadas hoje, vamos ganhar em celeridade, mas teremos uma evidente perda de qualidade da jurisdição
Fabio Cardoso Machado, do IEDC

Juiz robô pelo mundo

Em outros países, a discussão sobre trocar juízes por sistemas de inteligência artificial já decolou. Em 2019, a Estônia causou bastante polêmica ao anunciar que estava criando o primeiro juiz robô do planeta.

A ideia era desenvolver uma máquina que decidisse com base em um banco de dados com todas as leis do país sobre causas menos complexas, que envolvessem quantias financeiras menores. Recentemente, o CNJ enviou uma comitiva ao país europeu para conhecer a tecnologia e atestar a experiência. Quase quatro anos após o anúncio, porém, o projeto não parece ter avançado.

"A comitiva conversou com juízes locais e não há qualquer indicação que dê substância ao relato de que eles estão utilizando de fato juízes robôs", disse o juiz auxiliar da presidência do CNJ, Rafael Porto.

Nos Estados Unidos, um software batizado de Compas vem sendo usado em diversos estados. O algoritmo avalia a probabilidade de um réu reincidir no crime. A partir de um sistema de pontos, ele decide pela liberdade condicional ou prisão. Neste último caso, também calcula a pena aplicada. Com a sugestão em mãos, o juiz pode ratificar a decisão da IA ou fazer sua própria análise.

Essa ferramenta é bastante polêmica. Uma investigação jornalística descobriu que os dados que alimentavam a máquina continham uma série de erros na própria modelagem dos algoritmos, fazendo com que a resposta fosse preconceituosa em muitas situações com negros e latinos
Dierle Nunes, advogado e professor de Direito Processual e Tecnologia da PUC Minas e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

O "preconceito da máquina", também chamado de viés do algoritmo, é na verdade a reprodução dos preconceitos humanos por meio dos dados alimentados na máquina.

Quando robôs farão Justiça no Brasil?

No Brasil, o uso de robôs inteligentes para tomar decisões é algo ainda remoto. Maranhão, sócio do escritório Ópice Blum, explica que o mais provável seria usar algoritmos para atuar em disputas legais simples, de baixa complexidade jurídica. Neste caso, o juiz ainda teria que validar a decisão dada pela máquina. Isso não quer dizer que robôs já não estejam sendo usados quando o veredito já foi tomado.

Em algumas áreas, como na de Execução Fiscal --em que se acumulam anualmente milhares de processos--, os robôs já vêm sendo usados no Brasil para fazer minutas de despacho de decisões
Fabio Cardoso Machado, do IEDC

Quanto a isso, o STF é categórico. Os projetos de IA visam apenas apoiar as atividades dos magistrados, não substituir os profissionais. "Diante disso, não seria o caso de se falar em 'juiz robô'", afirma o STF. Ainda assim, o tribunal criou uma assessoria de inteligência artificial o fim do ano passado.

Para Rafael Porto, do CNJ, adotar essa modalidade de robô no país não é uma possibilidade tão distante. Este, porém, não é o foco do Programa Justiça 4.0, iniciativa de transformação digital do judiciário brasileiro.

Não é impossível ter um juiz robô, mas o que o judiciário brasileiro quer de fato neste momento é melhorar os fluxos de trabalho, aumentar a eficiência e fazer uma entrega de uma jurisdição de maior qualidade para o cidadão brasileiro
Rafael Porto, do CNJ