Regulação das redes: a internet pode ficar pior para todos
Quando falamos de regulação de plataformas, todo mundo tem uma ideia, e é aí que mora o perigo: no debate atual, do Legislativo ao Executivo, do Judiciário ao setor privado, todos concordam que há problemas (como a desinformação), mas poucos convergem para qual solução implementar. E, no ritmo de urgência e de debates a portas fechadas, a internet pode ficar pior para todos.
Por que querem mudar o Marco Civil da Internet?
O Marco Civil da Internet é uma legislação celebrada no Brasil e no mundo, que levou mais de cinco anos de debate até ser votada. Rápido não foi, mas a lógica foi de buscar o consenso. Governos, plataformas, congressistas, sociedade civil, todos acabaram ganhando algo e perdendo algo ao longo do debate. E é por isso que, no final, surgiram inovações, como o artigo 19.
O art. 19, feito no Brasil, oferece uma lição à Seção 230, feita nos EUA. Lá, o consenso foi evitar que plataformas sejam responsabilizadas por conteúdos de terceiros. Já aqui o resultado é mais conservador: plataformas, em regra, não respondem por postagens de terceiros, mas um usuário pode pedir a retirada de conteúdos em casos objetivos, como nos de pornografia de vingança.
E por que novos reguladores querem mudar isso? Porque acham que mais moderação é necessária, mesmo se o resultado da moderação depender do ponto de vista. E mais: querem mudar a legislação para ontem, usando metáforas como o termo "fórceps" (empregado por atores que iniciaram a redação do Marco Civil da Internet) para pedir mudança mesmo que à força. E é nesse momento que devemos nos lembrar de como as democracias morrem.
A tese do famoso livro "Como as Democracias Morrem" é de que regimes democráticos têm aumentado o "chacoalhar do barco", abalando sistematicamente a democracia. No jogo de "nós" contra "eles", um lado rompe as regras para vencer o outro, balançando o barco, e o outro faz o mesmo no sentido inverso. O resultado é um barco que balança mais e mais, e que um dia pode virar.
Quais os mitos do debate de regulação de plataformas?
O primeiro mito dos que querem regulação é argumentar que a internet é "terra sem lei". Não é, nem nunca foi. Pelo contrário: a internet sempre foi regulada, pois é consenso (nacional e internacional) que o que se aplica fora se aplica dentro da internet. Além disso, no Brasil, há diversas leis sobre o tema, de dados pessoais a consumo, de crimes cibernéticos à conectividade. Por isso, repita sempre: a internet não é terra sem lei.
O segundo mito é querer regular "apenas" as plataformas. Há vários agentes intermediários que não são "plataformas", mas que estão na internet, como os data brokers, as empresas de comunicação e o comércio eletrônico. E ainda existe aquilo que as "plataformas" fazem que nem é rede social, como pagamentos e conectividade. O termo "plataforma" constantemente olha o dedo, ignorando a Lua.
Através do consenso, o Marco Civil gerou um conceito de internet tão bom que até mesmo coisas novas, como blockchain e a dark web, ali se enquadram. Já a definição do que é "plataforma" coleciona desafios. O que não é rede social? E os apps de mensageria? E o patrocínio de contas? E as ferramentas de busca? Quanto mais o tempo passa, mais truncada fica a definição usada.
O terceiro mito é querer resolver 99 problemas com uma lei só. Muito se fala da inspiração do modelo europeu, mas se esquece que, por lá, mais de 10 marcos regulatórios foram criados, fora os planos estratégicos e investimentos. Aqui, a mudança é por via legislativa, uma vez só, e deu. Se queremos copiar os europeus, comecemos abandonando criar uma lei para tudo.
Para onde deveria ir o debate de regulação?
A principal urgência para a regulação de plataformas é encontrar consensos. É assim que as democracias vivem. E para isso, precisamos reduzir o escopo da regulação.
O Projeto de Lei (PL) n. 2630 trouxe para si temas muito além das plataformas. No Senado Federal, o texto chegou a obrigar o registro de chip, guarda de dados localizados, e a remuneração de conteúdo jornalístico. Na Câmara, o PL cresceu ainda mais (por mais que o relator tentasse restringir).
Um exemplo claro de perda de escopo foi o instrumento de "autorregulação regulada". Tradicionalmente, temos a regulação (uso da força do Estado), a autorregulação (como o Conar) e a corregulação (onde algumas coisas se dividem, outras não). A proposta atual é nenhuma dessas três. Trata-se de um "jabuti", que eventualmente já apareceu na Alemanha, e que lá não se saiu bem.
O ponto máximo de falta de consenso aqui é propor um ente regulador sem concordar quem esse ente seria. O dissenso reina. O texto atual fala no Comitê Gestor da Internet, mas já se falou de Comissões do Senado, Anatel, Ministério da Justiça, e até uma autarquia nova. Isso só revela como o texto passa longe do consenso e se aproxima da lógica de aceitar tudo para obter apoio.
E como melhorar a regulação da internet?
A regulação de plataformas no Brasil passa por um problema de Aladim: quem chega no debate legislativo e tem poder, tem direito a três pedidos, tendo um deles realizado. Democracia de coalizão é assim, não é esse o problema. O problema é que os pedidos estão sendo adicionados sem consenso, enraizando regras contraditórias.
Para melhorar a internet, precisamos favorecer o consenso e rejeitar a força. O uso de medidas drásticas, secretas ou de reforma "a fórceps" só tende a piorar o status quo.
A segunda lição é valorizar o Marco Civil da Internet. Isso implica somar em vez de substituir, tendo o art. 19 como um bom exemplo de melhorias. Como responsabilizar agentes intermediários? O que for objetivo para o algoritmo ver, deixamos como obrigação de fazer. O que for social ou discutível, deixamos nas mãos do Judiciário.
Para finalizar, eis um exemplo de como a internet já poderia ter ficado muito pior.
No último debate do PL 2630 foram propostas soluções contraditórias: o dever de remover discurso de ódio e o respeito à imunidade parlamentar. Se a regulação tivesse passado, a invasão do 8 de Janeiro teria sido diferente. O debate social teria sido suprimido (porque algoritmos, no pânico, retiram mais do que preservam conteúdo) e congressistas teriam ganho audiência nobre nos celulares (reinando sobre o discurso público).
É falsa a expressão de que "pior que está não fica". No fórceps, na força, sem consenso, todos perdemos. E sim, a internet pode ficar pior para todos. A solução? Mais calma, menos chacoalho, e mais confiança na democracia. Consenso demora? Depende. Se o custo da espera é a vida da democracia, a espera é sempre melhor que a pressa.
*Pós-doc, alumni do Berkman Klein Center na Universidade de Harvard. Foi membro do Future Global Council do WEF, doutor pela Universidade de Leeds, no Reino Unido, e passagens pela Universidade da Califórnia San Diego e Universidade das Nações Unidas (China). É membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados da ANPD, membro do conselho editorial da MIT Sloan Review Brasil, e advogado. É diretor executivo do ITS Rio.
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