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Não é só na novela: pedófilos utilizam táticas online para aliciar menores

Na novela "Travessia", da TV Globo, a personagem Karina (Danielle Olímpia) é enganada por um pedófilo na internet - Reprodução/TV Globo
Na novela "Travessia", da TV Globo, a personagem Karina (Danielle Olímpia) é enganada por um pedófilo na internet Imagem: Reprodução/TV Globo

Aurélio Araújo

Colaboração para Tilt, em São Paulo

29/03/2023 04h00

Um dos núcleos da novela "Travessia", da TV Globo, trouxe à tona a discussão sobre crianças e adolescentes aliciados por pedófilos na internet para produzirem imagens pornográficas. Especialistas no combate à prática dizem que, embora a novela não seja realista na maneira com que retrata isso, é preciso que pais e responsáveis estejam alertas sobre com quem os filhos se relacionam online.

Em "Travessia", a jovem Karina, vivida por Danielle Olímpia, é enganada por um pedófilo, interpretado por Cláudio Tovar. Ele utiliza a tecnologia "deepfake" para se passar por uma atriz da qual ela é fã e pedir que ela exiba o próprio corpo diante da câmera do celular.

O "deepfake" é um recurso que utiliza inteligência artificial para trocar o rosto, o corpo e até a voz de uma pessoa em um vídeo. Os resultados são cada vez mais convincentes, e essa tecnologia vem evoluindo e se difundindo nos últimos anos. Mas, segundo o delegado e investigador de polícia Alexandre Scaramella, que atua na repressão aos crimes de pedofilia, ela ainda não é utilizada por adultos para enganar menores na internet.

"[O 'deepfake'] demanda um certo empenho. Apesar de existirem aplicativos que facilitam esse tipo de situação, os pedófilos, infelizmente, têm acesso muito fácil a crianças e adolescentes pelas redes sociais", diz.

Para Daniel Silva, advogado especialista em casos de pornografia infantil, relatos assim são "raríssimos" pela exigência técnica que o "deepfake" ainda possui. Scaramella acrescenta que é muito mais comum que pedófilos se infiltrem em plataformas em que há crianças e adolescentes. Ele cita os games como um meio para isso.

O delegado afirma que eles passam a demonstrar interesse em games disputados online. Assim, conhecem crianças e passam a conversar com elas pelo Discord (plataforma de chat e áudio muito popular entre gamers). De lá, migram eventualmente as conversas para o Telegram ou para o WhatsApp, onde começa o aliciamento.

Eva Dengler, gerente de programas e relações empresariais da ONG de proteção à infância Childhood Brasil, diz que táticas como o "deepfake" podem estar sendo usadas, mas ainda não temos conhecimento. Independentemente disso, ela vê com bons olhos que uma novela aborde esse tema. Debates sobre assuntos complexos feitos em outras novelas, argumenta, já ajudaram a aumentar denúncias sobre alguns tipos de crime.

"Mas acho importante não só mostrar o problema, que pode acontecer no nosso dia a dia, mas também mostrar como ele precisa ser encaminhado", diz Dengler.

'Grooming' e o mercado da pedofilia na internet

Os especialistas são unânimes em dizer que o criminoso se aproveita do anonimato da internet para escolher suas vítimas. Criando perfis falsos, ele usa informações disponíveis, por exemplo, em redes sociais, para falar de interesses comuns com a criança.

Dengler explica que essas estratégias de aliciamento são conhecidas pelo termo inglês "grooming" e estão cada vez mais sofisticadas. Embora o retrato de "grooming" feito por "Travessia" ainda não seja o mais tradicional, o número de criminosos nessa área tem se expandido porque o negócio da pornografia infantil na internet é lucrativo.

"Hoje você tem meninos e meninas que gravam dancinhas para redes sociais de maneira muito inocente, no TikTok principalmente, e depois esse material é utilizado de forma comercial, vendido a quem tem interesse nele", afirma. Ela diz que existem verdadeiras redes criminosas que se aprimoram em táticas para enganar e seduzir crianças por meio de contato virtual.

"Alguns [criminosos] fazem isso por lascívia própria, mas 90% é por comércio", resume Scaramella. "Depois do tráfico de drogas, é o [crime] que mais movimenta dinheiro. Pagam em dólar, fora do país, por fotos novas. Até porque os caras já estão cansados de ver aquelas que já estão na internet. Eles querem 'presas' novas."

Atenção aos sinais

Os pais e responsáveis devem estar atentos a súbitas mudanças de comportamento nas crianças. Elas podem ser os primeiros sinais de que os menores estão sofrendo algum abuso sexual na internet. Os aliciadores podem passar a ameaçá-las, dizendo que vão expor a situação aos seus pais ou colegas de escola, na intenção de mantê-las sob seu controle para produção de vídeos pornográficos.

"Um sinal de alerta é quando a criança ou adolescente não quer mais estar em ambiente público, junto à família, com o celular. Quando começam a ficar muito escondidos no quarto, quando ficam muito tempo no celular", diz Dengler.

Para Scaramella, o maior problema é o que ele chama de "abismo geracional": quando pais não se interessam pelo que os filhos fazem online, os menores acabam mais expostos a riscos. "Eu vejo muitos casos em que o pai diz: 'Eu não entendo o que ele faz, os jogos que ele joga'. Por isso, eu digo: passe a entender. Passe a ficar mais próximo."

No caso do '"deepfake", Silva também ressalta a importância da educação digital. "O principal risco não está na sofisticação da tecnologia ou na evolução das inteligências artificiais, mas sim na falta de preparo que a sociedade tem para lidar mesmo com as tentativas mais simples de enganação."

O que fazer em casos assim

Caso se descubra que uma criança é vítima de um aliciador, é importante não afastá-la ou culpá-la pela situação. Segundo Silva, é preciso oferecer conforto para que crianças e adolescentes não deixem de compartilhar com os pais as situações de incerteza pelas quais passam.

Já o delegado Scaramella alerta que os pais não devem tentar se passar pelos próprios filhos conversando com o adulto que está abusando deles, o que pode atrapalhar a investigação e até a punição do criminoso. Ele pode perceber, por exemplo, que está conversando com outra pessoa, e passar a traçar uma estratégia que evite sua identificação e facilite a destruição das provas.

Por isso, diz ele, uma vez identificado o problema, deve-se confiscar o aparelho da criança, seja um celular ou um computador, e procurar a delegacia mais próxima. Dengler ressalta também que plataformas como as redes sociais já possuem instrumentos próprios, que podem ser acionados para fazer uma denúncia contra um usuário.

No Brasil, é possível ainda utilizar o site denuncie.org.br, da SaferNet, que centraliza canais de denúncia para crimes cometidos na internet, dando encaminhamento aos casos perante as autoridades responsáveis.