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Hurb foi de estrela do turismo a calotes e CEO surtado; entenda a crise

João Ricardo Mendes, ex-CEO da Hurb (ex-Hotel Urbano) - Divulgação
João Ricardo Mendes, ex-CEO da Hurb (ex-Hotel Urbano) Imagem: Divulgação

Julia Moióli

Colaboração para Tilt, de São Paulo

29/04/2023 04h00Atualizada em 29/04/2023 11h10

Até dar calote em hotéis, deixar clientes irritados e ter seu CEO, o empresário João Ricardo Mendes, protagonizando um vídeo em que xinga e ameaça um consumidor, a Hurb era encarada como uma estrela do turismo do Brasil.A baixaria fez quem nunca tinha ouvido falar do Hurb conhecê-la da pior forma.

A crise que assola a plataforma não começou agora, explicam especialistas ouvidos por Tilt. Eles analisam os motivos do fracasso, seus impactos no mercado e no bolso dos consumidores, levantam possibilidades para o futuro e dão dicas do que fazer se você foi uma das milhares de pessoas que caíram no conto da viagem barata.

O que é o Hurb e como funciona a plataforma?

Fundada em 2011 pelos irmãos João Ricardo e José Eduardo Mendes como Hotel Urbano, a empresa começou vendendo diárias em pousadas e hotéis a preços reduzidos.

  • Em 2016, um desentendimento com os fundos internacionais Insight Venture Partners e Tiger afastou os fundadores por quase um ano da operação;
  • Em 2018, os dois recompraram a empresa, que mudou de nome para Hurb e entrou em outros países. Usando inteligência artificial e machine learning para oferecer custos mais baixos e datas flexíveis, virou a maior plataforma de viagens da América Latina;
  • Listada em rankings de bons lugares para se trabalhar, valia mais de R$ 2 bilhões antes da crise atual. Isso atraiu a atenção de gigantes como o concorrente Booking.com e o fundo de investimento Carlyle;
  • O cliente sugere datas em que gostaria de viajar, e a empresa procura tarifas promocionais junto às companhias aéreas e hotéis próximos ao período escolhido.

O que causou a crise?

Especialistas ouvidos por Tilt acreditam que no centro de toda crise pode estar o próprio modelo de negócio da plataforma.

"Ao contrário do que fazem Booking e Airbnb, que cobram uma taxa dos hotéis e das pessoas físicas para aparecerem em suas 'vitrines', o Hurb é um intermediário que recebe o dinheiro do hóspede", explica a consultora Fernanda Campello, com mais de 20 anos de experiência em hotelaria.

A plataforma só paga os fornecedores depois de receber e de a viagem ser concretizada. Durante a pandemia de covid-19, o Hurb adotou uma estratégia arriscada: ofereceu pacotes a preços irrisórios. Vendia, por exemplo, um pacote de R$ 999 para sete dias em Orlando, onde fica o Walt Disney World Resort, a ser realizado quando o mundo reabrisse. A CVC, por outro lado, vende um pacote parecido por quase R$ 4 mil, incluindo taxas e impostos.

O Hurb ofereceu promoções para reforçar o caixa no curto prazo, imaginando que se reequilibraria quando o turismo fosse retomado. O que deu errado é que a inflação no período e no pós-pandemia fez o preço de passagens e hospedagem aumentar muito e não está sendo possível honrar os compromissos
Alan Soares, consultor financeiro e CSO do Movimento Black Money

Sem receber, hotéis parceiros passaram a recusar reservas de clientes do Hurb. Só no site Reclame Aqui, foram mais de 29 mil reclamações nos últimos seis meses. O índice de resolução de problemas é de só 55,2%.

Para Jefferson Araújo, CEO da Showkase, plataforma de social commerce que reúne as melhores práticas para compras no varejo, o maior problema foi a falta de transparência.

No mercado de tecnologia, há muitos modelos disruptivos que envolvem risco. O negócio de viagens lida com sonhos e comprometimento de economias. Quando um ativo relevante assim está envolvido, a preocupação das empresas deve ser ainda maior

Como foi a briga do CEO com clientes?

O ápice da crise ocorreu quando o CEO postou um vídeo misterioso há pouco mais de duas semanas:

  • Com imagens de neurônios, jogo de xadrez e um celular arremessado no chão, João Ricardo Mendes aparece pisando em uma faixa com a reclamação de um cliente;
  • Depois, gesticula como se regesse uma orquestra, com um chip colado no rosto; conclui o vídeo com uma tela que lembra "Matrix" e menciona a escolha da pílula vermelha;
  • Mendes também publicou um texto em que diz que "erros serão cometidos, pessoas ficarão chateadas, outras não saberão o que estão falando, mas isso é muito melhor do que como as coisas acontecem em outras companhias, que se dizem à prova de erros"
  • Depois, xingou um dos consumidores do grupo de WhatsApp #HurbKdMeuvôo e ameaçou ir até a casa dele ("Tá arriscado alguém bater na merda da sua casa").

Afirmando estar "envergonhado", ele renunciou ao cargo de CEO na segunda-feira (24) em texto que citou a morte da mãe, ocorrida há um ano e meio.Como CEO do Hurb, seu salário chegava a quase R$ 1,5 milhão anual, de acordo com o site da empresa.

O que a empresa diz?

João Ricardo Mendes continua o principal acionista do Hurb e responsável legal pelo Hurb. O atual chefe do conselho administrativo Otávio Brissant assumiu a posição até um nome ser definitivamente escolhida. Na segunda-feira (24), a empresa informou que "mobilizou uma força-tarefa para normalizar a situação com cada parceiro no menor prazo possível".

O que deve acontecer com o Hurb?

A empresa já foi chamada a prestar esclarecimentos à Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), órgão do Ministério da Justiça. O processo administrativo aberto para apurar se houve desrespeito aos direitos do consumidor pode culminar em multas de até R$ 13 milhões e suspensão das atividade.

O Hurb pode ser penalizado ainda pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais com multa de até 2% de seu faturamento pela exposição causada por João Ricardo Mendes. O dano à reputação, porém, vai ser difícil de recuperar, afirmam os especialistas.

Os consumidores que adquiriram viagens e conseguiram marcá-las já se comportam de forma semelhante ao que ocorreu na crise do Silicon Valley Bank (SVB) nos Estados Unidos. Ou seja: cancelam os contratos. Por isso, o primeiro passo agora deveria ser pagar fornecedores antigos para voltarem a prestar serviço e realizar uma campanha de marketing muito convincente para os clientes não pedirem cancelamento
Ala Soares, do Movimento Black Money

Para retomar a confiança de forma estratégica, o Hurb terá que realizar um trabalho de repaginação completa da forma como lida com o cliente, com acompanhamento próximo de toda jornada de compra, além de ser transparente com o atual cenário. É comum acontecer problemas, mas não é comum virar as costas pra o cliente
Jefferson Araújo, da Showkase

Já o ex-CEO poderá ser responsabilizado tanto na esfera cível quanto na criminal pelas ofensas e pela exposição indevida dos dados do cliente, diz a advogada Lorena Lage.

Como garantir seus direitos

O Código de Defesa do Consumidor continua valendo mesmo que seja uma plataforma digital e a negociação com os clientes ser feita online. O Hurb tem a obrigação de prestar o serviço da forma como foi contratado - ainda que com atraso ou mudança nas datas - ou cancelar o contrato e reembolsar os valores pagos integralmente.

Ainda que órgãos públicos estejam atuando, consumidores podem entrar na justiça individualmente para pleitear indenização por dano material, explica Mônica Inglez, advogada especializada em Proteção de Dados e Privacidade, Direito Digital e Propriedade Intelectual.