Por que sonho de internet espacial fecha olhos da Terra para outros mundos
A internet via satélite é vista como solução para o mundo ter conexão estável em pontos remotos: como no alto de uma montanha, dentro de um avião, em uma fazenda isolada e em vilarejos distantes. Ao mesmo tempo, porém, o envio cada vez maior dessa tecnologia para fora da Terra preocupa pesquisadores e astrônomos.
Os temores sobre "constelações" artificiais envolvem:
Atrapalhar observações espaciais aqui da Terra e de telescópios e, consequentemente, prejudicar estudos científicos, atrasando pesquisas e impedindo avanços.
Aumento de lixo espacial - ainda não existe solução em prática para retirar tecnologias fora de operação de lá.
A SpaceX, do empresário Elon Musk, por exemplo, tem como meta ter 12 mil satélites funcionando até 2027 para oferecer internet rápida em locais sem acesso. Até o momento, 3.700 dessas estruturas já estão no espaço. Isso representa metade de todos os satélites ativos ao redor do planeta.
No ano que vem, a Amazon deve começar um projeto semelhante, a rede Kuiper, com 3.236. A China também está de olho: o plano futuro é enviar 13 mil satélites "Guowang".
Por enquanto, com alguns milhares de satélites em órbita, não é tão problemático. Mas, quando falamos em dezenas de milhares, há uma real preocupação com o futuro da astronomia.
Jonathan McDowell, astrônomo do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian
Diferença entre satélites
Os tipos de satélite de internet fazem toda a diferença nesse contexto, pois uns ficam mais perto da Terra (são menores) e outros mais distantes (oferecem maior cobertura de internet).
Tipo LEO: exploram a chamada órbita baixa terrestre. Ficam a cerca de 2.000 km de altitude e oferecem menor poder de cobertura. Porém, são mais baratos. É o usado pela Starlink, da SpaceX (com cerca de 230 kg). Quanto mais estruturas tiver no espaço, maior será a cobertura de uma empresa. A vida útil é em média de cinco anos.
Tipo GEO, geoestacionário: são gigantes e ficam bem altos, a 35.000 km, em órbita geossíncrona. Não é necessário vários satélites juntos para ofertar ampla conexão. Para se ter uma ideia, as tradicionais empresas HughesNet e a ViaSat têm apenas dois satélites próprios cada uma. A vida útil chega até 15 anos.
Os riscos da constelações artificiais na prática
1. Impacto em análises de imagens
Muitos dos satélites artificiais que estão no espaço são metálicos, e isso faz com que eles reflitam muita luz do Sol, o que pode interferir em registros de fotos e vídeos. Por isso, quanto maior o número deles na órbita terrestre, maior a chance de impacto em observações aqui da Terra, profissionais e amadoras.
A foto abaixo é um exemplo do que pode acontecer. As longas trilhas brilhantes significam satélites passando durante o registro do cometa Neowise, nas Ilhas Canárias, Espanha.
Após reclamações da comunidade astronômica, a SpaceX incluiu revestimentos antirreflexo para "escurecer" os satélites da Starlink, além de ter feito mudanças no ângulo de voo e no posicionamento dos painéis solares das estruturas.
Porém, segundo os críticos, isso não resolveu o problema. "Em dez anos chegaremos a um cenário catastrófico, com todas as observações sofrendo múltiplas interferências. Haverá ciência que não poderá ser feita. Haverá coisas que iremos perder", afirma o astrônomo Jonathan McDowell, que se classifica como "polícia orbital".
Para ele, que atua no observatório Chandra, um telescópio espacial da Nasa que observa o Universo em raios X, experimentos ficarão até mais caros: "será preciso fazer cinco imagens de tudo, e não apenas duas. Isso demora mais e custa mais."
2. Atraso em pesquisas científicas
Para um pesquisador individual, como um aluno de doutorado, que tem uma ou duas noites de observação, interferências como essas podem ser devastadoras, afirma o brasileiro Marcelo De Cicco, astrônomo do projeto Exoss e pesquisador do Inmetro.
"Em boa parte dos casos, você consegue fazer uma cosmética digital. Mas em uma pesquisa específica, que o cientista conseguiu uma janela de uso em um grande observatório [espacial], naquele horário e naquele ponto, estamos falando de um registro único. Ele pode não ter outra chance, ou vai demorar muito até conseguir mais imagens daquela área do céu", explica.
3. Interferência no trabalho de telescópios
O Telescópio Espacial Hubble, um de nossos mais importantes olhos no céu, já está sentindo os efeitos desse "trânsito espacial". Como sua estrutura também fica em órbita baixa, a aproximadamente 535 km de altitude, ela está cercada por pequenos objetos como os da rede Starlink.
Um estudo publicado este ano na revista Nature Astronomy, analisando mais de 100 mil imagens feitas pelo Hubble de 2002 a 2021, aponta que:
- 3,7% delas foram estragadas por satélites entre 2009 e 2020.
- Em 2021, esse volume representou 5,9%.
A pesquisa não contabiliza 2022, o ano com mais lançamentos da história, que deve ter um índice bem maior.
"E quanto maior o campo de visão de um telescópio, mais suscetível aos erros. Será como dirigir na chuva, com muitas gotas atingindo o vidro", exemplifica McDowell.
4. Busca por asteroides prejudicada
A capacidade de detectar rochas espaciais potencialmente perigosas também pode estar em risco, também segundo o astrônomo McDowell. "Por exemplo, as buscas por asteroides próximos à Terra incluem observações feitas no crepúsculo, um período em que os satélites são iluminados o ano todo", detalhou McDowell em um estudo sobre o tema em 2020.
E pode piorar: "torres de celular no espaço"
O número crescente de satélites do tipo LEO é o que mais tem chamado a atenção, mas há um temor maior de parte da comunidade científica: enormes estruturas de comunicação, com dimensões dos geostacionários, também na órbita baixa terrestre.
O Bluewalker 3, da empresa AST SpaceMobile, lançado em setembro do ano passado em um foguete da SpaceX, tem um sistema de antenas e painéis solares de 64 metros quadrados — o maior já levado à LEO. Visto da Terra, ele é tão brilhante quanto algumas das maiores estrelas, como Antares e Spica (a 15ª e 16ª mais brilhantes do céu noturno), de acordo com estudo da União Astronômica Internacional (IAU).
Seu lançamento é apenas um dentro do plano de se criar uma constelação artificial com mais de 100 tecnologias como ele, ainda maiores, para formar uma rede chamada BlueBird. No futuro, o objetivo é oferecer conexão 5G direta a smartphones no mundo todo — verdadeiras "torres de celular no espaço".
Como resolver o problema?
A resposta final ainda não existe. Porém, caminhos podem ser feitos:
Satélites também são fundamentais para o desenvolvimento de nossa sociedade, mas é importante que as empresas de tecnologia espacial considerem as implicações destes projetos todos com relação à astronomia e à pesquisa científica. Precisamos dar um jeito de coexistir e trabalhar junto Marcelo De Cicco, astrônomo brasileiro.
"O ideal seria criar zonas no espaço que não pudessem ser ocupadas pelo trânsito de satélites, mas acho isso muito difícil de acontecer", acrescenta De Cicco.
Uma ação importante, segundo os entrevistados, é que as regras de exploração da órbita terrestre sejam definidas a nível global o quanto antes.
O "Center for the Protection of the Dark and Quiet Sky from Satellite Constellation Interference" (Centro para proteção do céu escuro e quieto da interferência de constelações de satélites) tem pressionado governos e empresas envolvidas nos lançamentos para negociar essas normativas.
"O uso do espaço é um problema global, que precisa ser resolvido globalmente. O que acontece em órbita afeta todas as pessoas no mundo. Um país lançou um satélite mas o outro também o vê, mesmo que não desfrute da conexão. Precisamos proteger o ambiente espacial", conclui McDowell, que participa desse grupo.
Outros 431.713 satélites de 16 constelações de internet diferentes já têm lançamento planejado para os próximos 10 a 20 anos.
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