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Por 15 dias, fiz o 'trabalho sujo' de treinar uma inteligência artificial

Arte UOL
Imagem: Arte UOL

De Tilt, em São Paulo

25/05/2023 04h00Atualizada em 25/05/2023 15h44

Se me perguntarem "Quando foi a última vez que você fez algo inédito na vida?", terei de responder, "neste mês". Durante 15 dias, várias pessoas tiraram fotos minhas em posições esquisitas, sempre em locais diferentes e todas essas imagens não foram para o meu Instagram. Elas foram usadas para treinar um sistema de inteligência artificial.

Por isso, sem querer ser presunçoso, mas, da próxima vez que seu celular mandar notificações como "veja as fotos incríveis do show na sua galeria" ou "recordações de imagens das crianças no seu rolo de fotos", saiba disso: em algum momento, alguém fez o trabalho chato e sujo de descrever os arquivos usados para educar a máquina por trás dessas ações. E, nos últimos dias, eu fui essa pessoa.

Tilt mostrou em reportagem especial como é a vida dura de microtrabalhadores brasileiros.

Antes de tudo, é bom dizer: todo o processo foi levemente degradante. A causa, porém, era nobre: reduzir o enviesamento na forma como a IA reconhece pessoas. De quebra, ganharia algum dinheiro — sete dias depois de concluída a tarefa, a grana ainda não pingou na conta.

O objetivo é criar um banco de imagens diverso —com fotos de gente de várias partes do mundo, de diferentes etnias e cores. Esse papo de enviesamento pode parecer algo bobo, mas, em 2015, o Google foi criticado por indicar imagens no Google Fotos e indicar que pessoas negras eram gorilas. A empresa se desculpou à época, mas até hoje o uso de tecnologia para identificar pessoas em imagem é problemático, sobretudo para a população negra.

A ideia da empresa contratante, uma multinacional do ramo da tecnologia, é treinar uma inteligência artificial que consiga identificar melhor pessoas e ações retratadas em uma foto. Mais do que isso não posso revelar. Para executar as tarefas, assinei um acordo de confidencialidade, que me obriga a não detalhar publicamente as companhias envolvidas nem a plataforma em que trabalhei.

Como é o trabalho

O trabalho começou antes mesmo de eu receber o job. Tentei entrar no MTurk, da Amazon, e na Tellus Internacional. Fui recusado sem explicação. Quando finalmente fui aceito em um site do tipo, nova burocracia: tive que submeter um currículo meu em inglês, esperei quase uma semana para ser aprovado e, só então, as propostas começaram a chegar via e-mail.

Este trabalho que aceitei tinha duas tarefas:

  • Coleta: primeiro, tive que ser fotografado em uma série de poses pré-definidas (andando, dançando, pulando, cumprimentando, etc). Em algumas destas imagens, eu precisava interagir com outra pessoa.
  • Anotação: a partir daí, eu tinha que descrever as cenas em detalhes: de onde vem a iluminação? Qual a idade das pessoas na foto? Qual a ação? Qual a cor da pele? Qual a ancestralidade dela?

No papel, o processo é fácil. Há várias condições que emperram o processo:

  • As imagens não podiam ter algum tipo de processamento - zoom nem pensar!;
  • Os arquivos tinham que ser feitos com intervalo de um dia;
  • Eu precisava aparecer com roupas distintas em cada uma das fotos;
  • Nada de selfie. Por isso, eu tinha que pedir para alguém me fotografar, seja durante o expediente ou em casa.

Essas situações fizeram eu me pegar falando coisas como: "Ei, você poderia tirar uma foto minha engatinhando?" ou "Você poderia tirar uma foto minha simulando uma agressão a esta colega de trabalho?". Explico: uma das poses envolvia produzir uma cena praticando artes marciais com outra pessoa.

Duas das imagens recusadas ilustram esta reportagem.

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Imagem: Arte UOL

Medindo o trabalho

Tirar todas as fotos não levou mais do que 50 minutos —lembrem-se, porém, que foram várias sessões diferentes, de mais ou menos cinco minutos cada. A parte mais chata, no entanto, era subir os arquivos no sistema e descrever os detalhes. E mais longa: gastei quase quatro horas e meia.

Para começar, o sistema recusava imagens com "efeitos". Fotos feitas em área aberta à noite dificilmente eram aceitas. Acontece que muitos celulares ativam o modo noturno por padrão em situações com baixa iluminação para dar um "tapa" na imagem.

Em outras vezes, a rejeição da plataforma ocorria porque ela alegava que o zoom foi usado, ainda que a foto tivesse sido captada com configuração normal. Tanto nesse caso quanto no anterior, eu tinha que produzir imagens novas.
Tédio mesmo foi a parte da anotação. Em resumo, é necessário descrever detalhes da imagem como:

  • cor da pele das pessoas,
  • tipo de cabelo,
  • ação da pose,
  • iluminação,
  • idade,
  • peso,
  • cidade,
  • estado,
  • país,
  • horário
  • e até a ascendência das pessoas envolvidas.

Fazer todo esse processo para as dez imagens levava pelo menos uma hora e meia. O problema é que fiz isso três vezes, devido a erros apontados pela plataforma - seja os causados por mim (subi as imagens na ordem errada na primeira vez) ou os criados pela plataforma (comecei a salvar as fotos no meu computador pessoal, tentei terminar no PC da empresa, e o site não salvou o trabalho).

Ao todo, gastei cinco horas e vinte minutos neste trabalho com a possibilidade de ganhar no máximo US$ 90 (cerca de R$ 450). O valor só será calculado após a análise das dez fotos que eu submeti. Antes do trabalho, eu já sabia que ganharia no mínimo US$ 36 (cerca de R$ 180), correspondente a quatro imagens.

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Imagem: Arte UOL

Vale a pena?

A sensação foi quase de fazer um bico para algum app de aplicativo de transporte, só que de casa e no horário do meu expediente — com consentimento da chefia. Essa talvez seja uma forma para gente com tempo livre ganhar uma grana extra para pagar uma ou outra conta.

Eu até sabia como funcionava o treinamento, mas foi só fazendo o "trabalho sujo" que percebi a complexidade do serviço. A IA promete facilitar o trabalho das pessoas ou torná-lo mais eficiente, ao custo de uma massa de trabalhadores desempenhando tarefas maçantes e mal pagas. Se essas máquinas sempre dependerão de seres humanos para funcionar, como prometeu a conselheira da Casa Branca para IA, Daniela Braga, é melhor que nos acostumemos: o trabalho do futuro pode ficar ainda mais chato.