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A crise de semicondutores poderia ter custado a democracia brasileira

Placa-mãe de urna eletrônica durante teste de segurança do TSE - Abdias Pinheiro/SECOM/TSE
Placa-mãe de urna eletrônica durante teste de segurança do TSE Imagem: Abdias Pinheiro/SECOM/TSE

Gustavo Ribeiro e Amanda Audi, do Brazilian Report*

Colaboração para Tilt

22/06/2023 04h00Atualizada em 22/06/2023 09h39

Quando a pandemia de Covid-19 forçou boa parte das pessoas a trabalharem de casa em 2021, também desencadeou uma crise global de semicondutores, com a demanda pelos chips crescendo muito além do esperado. As vendas de computadores dispararam, assim como a demanda por data centers (com as pessoas passando cada vez mais tempo em videochamadas e lives), um teste de fogo para um setor que já enfrentava ciclos de abundância e escassez.

A falta de chips, que são necessários para quase tudo, de celulares a carros, desacelerou as linhas de produção de diversos setores da indústria e ajudou a alavancar a inflação em vários países. No Brasil, porém, agora se sabe que a crise dos semicondutores foi também uma ameaça à democracia.

Inicialmente publicado na The Brazilian Report em Inglês.

O Brasil começou a implementar o voto eletrônico em 1996 e já há mais de 20 anos realiza as eleições 100% eletrônicas. As urnas que permitem ao país contar mais de 123 milhões de votos em poucas horas, porém, funcionam com os mesmos chips que se tornaram escassos no mundo em razão da pandemia. Com isso, autoridades eleitorais se viram obrigadas a lançar uma missão diplomática secreta em meados de 2021 para desobstruir os gargalos das cadeias de suprimentos e permitir a substituição de cerca de 225 mil urnas à tempo das eleições de 2022.

A operação envolveu representantes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), diplomatas em exercício e aposentados, além de empresas privadas e consultorias que ajudaram os fabricantes de urnas a obter os chips e, assim, evitar que o pior acontecesse.

The Brazilian Report mapeou estes esforços, conversando com fontes no Brasil e nos Estados Unidos, algumas sob a condição de anonimato.

A corrida por semicondutores ocorreu em meio às críticas do ex-presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral do país, que por diversas vezes alegou que a contagem de votos poderia ser adulterada e o resultado, manipulado. Durante a maior parte de seu mandato, Bolsonaro também disse que vulnerabilidades do sistema teriam permitido que hackers fraudassem as eleições. Mas ele nunca apresentou nenhuma prova de suas alegações.

Em 2021, Bolsonaro chegou a propor que a votação em cédulas de papel fosse reestabelecida no país, ameaçando não respeitar uma eventual derrota nas eleições de 2022 se a proposta e demais exigências fossem ignoradas. Em agosto daquele ano, a sua proposta foi colocada em votação na Câmara dos Deputados, mas não chegou nem perto de obter 60% dos votos necessários para ser aprovada e modificar a Constituição.

Um ano depois, em julho de 2022, Bolsonaro recebeu dezenas de embaixadores em Brasília para uma apresentação sobre o sistema de votação eletrônico. Ele misturou meias-verdades a mentiras descaradas para desacreditar o sistema e assim tentar convencer os diplomatas estrangeiros a não reconhecer imediatamente o resultado eleitoral no caso de uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva - o que as pesquisas eleitorais já indicavam que seria possível.

Esta reunião gerou acusações de abuso de poder contra Bolsonaro. O julgamento sobre o caso, marcado para 22 de junho no TSE, pode torná-lo inelegível.

Este pano de fundo é fundamental para entender porque a operação para garantir os chips era necessária e porque os envolvidos fizeram de tudo para manter o presidente brasileiro no escuro sobre as negociações

Dallas, temos um problema

barroso - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
16.nov.2021 - O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, durante discurso
Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

"Em junho de 2021, José Gilberto Scandiucci Filho, um diplomata chefe de assuntos internacionais do TSE, me ligou", lembra Rubens Barbosa.

Barbosa foi embaixador do Brasil no Reino Unido e nos Estados Unidos na década de 1990 e início dos anos 2000. "Scandiucci disse que [o então presidente do TSE Luís Roberto] Barroso queria falar comigo." Barroso estava preocupado com uma crise iminente que poderia alimentar a desinformação eleitoral e criar uma crise de confiança no sistema.

A Positivo Tecnologia havia ganhado uma licitação no ano anterior para produzir 225 mil novas urnas eletrônicas para substituir equipamentos produzidos entre 2006 e 2008 e que haviam chegado ao final de sua vida útil.

Mas a crise global dos chips, combinada com uma manobra das fábricas norte-americanas para acumular o máximo de semicondutores que pudessem, fez com que a Positivo não conseguisse os componentes necessários para fazer as urnas. Em maio de 2021, a empresa informou o problema ao TSE.

As urnas eletrônicas brasileiras usam componentes fabricados pelas empresas Texas Instruments, de Dallas (EUA), e Nuvoton, de Taiwan. As duas empresas tinham gargalos de produção e não conseguiam cumprir os prazos de entrega. "Sem esses chips, as urnas não seriam produzidas a tempo para as eleições", lembra Barbosa.

Luís Roberto Barroso, o presidente do TSE, colocou em ação um plano de contingência. "Se os componentes não tivessem chegado, nós teríamos 'recauchutado' modelos antigos para usar", disse ele a The Brazilian Report em uma entrevista por vídeo. As melhorias consistiam em atualizar os componentes que poderiam ser substituídos e testar novamente as urnas em busca de possíveis defeitos.

Seria como ter um carro velho dos anos 1990 em uma rodovia moderna. Esta solução era longe do ideal, porque teria aumentado o risco de urnas com defeito. Mas, ainda assim, o Brasil poderia realizar as suas eleições
Luís Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE (2020-2022)

A solução era realmente longe do ideal. Em 2022, foram usadas 577,000 urnas eletrônicas - sendo que 280,000 eram de modelos antigos. Em novembro de 2022, após Jair Bolsonaro perder as eleições, o seu Partido Liberal abriu um processo para que estas urnas fossem removidas do processo eleitoral.

O partido argumentou que as máquinas não funcionavam corretamente, o que impedia que fossem corretamente identificadas pelos sistemas eleitorais.

A petição - que foi rapidamente descartada pela Justiça - reproduziu uma teoria da conspiração que também circulou pelas redes sociais logo depois que Bolsonaro perdeu a reeleição, dizendo que ele teve resultados melhores nas urnas mais novas.

"Minha gestão como presidente do TSE teve dois grandes desafios: fazer as eleições municipais em 2020 no meio da pandemia e combater a pressão pela volta das cédulas de papel", lembra Barroso.

Corrida por semicondutores

urna - Abdias Pinheiro/SECOM/TSE - Abdias Pinheiro/SECOM/TSE
Teste público de segurança da urna eletrônica realizado em 2021
Imagem: Abdias Pinheiro/SECOM/TSE

Barbosa foi chamado para usar as conexões de seus anos como diplomata para colocar a Positivo e o TSE em contato direto com as empresas norte-americana e taiwanesa.

Dois ex-embaixadores norte-americanos foram contatados por Barroso para ajudar nesta empreitada: Tom Shannon (2010-2013) e Anthony Harrington (2000-2001).

O embaixador dos Estados Unidos naquele momento, Todd Chapman, optou por não se engajar na operação - ele tampouco aceitou se reunir com autoridades eleitorais antes de deixar o posto, em junho de 2021.

Duas fontes norte-americanas confirmaram ao The Brazilian Report que Harrington, que atualmente é um executivo da consultoria Albright Stonebridge Group, de Washington (EUA), fez a conexão entre os brasileiros e a Texas Instruments.

O acesso foi facilitado pelo fato de que Harrington é um dos acionistas da Texas Instruments. Uma fonte que acompanhou as negociações disse que Harrington pediu para a empresa não tratar o contrato brasileiro como outro qualquer, mas sim colocá-lo no topo de sua lista de prioridades.

"Havia muita coisa em jogo", a fonte disse a The Brazilian Report, "e a Texas Instruments não se opôs ao pedido."

Enquanto isso, Barroso estava tentando facilitar os negócios do lado de Taiwan.

O ex-ministro das Relações Exteriores Carlos França se recusou a participar das tratativas por medo de que a conversa direta entre diplomatas brasileiros e Taiwan pudesse irritar a China. Afinal, o principal parceiro comercial do Brasil tem sido cada vez mais incisivo em suas posições sobre a ilha autônoma.

"Apesar de [França] não ter ajudado, ele também não atrapalhou", diz o ex-embaixador Rubens Barbosa. O mais importante é que o ex-ministro não levou o assunto aos ouvidos de Bolsonaro - o que poderia colocar toda a iniciativa em risco, já que o ex-presidente era o principal opositor da votação eletrônica.

As negociações com Taiwan receberam uma ajuda de Tsung-Che Chang, o representante da ilha no Brasil, e do vice-ministro das Relações Exteriores de Taiwan Alexander Tah-ray Yui. "Não era uma questão comercial, era uma questão de proteger a democracia brasileira", disse Barroso.

As negociações continuaram até novembro de 2021. Os primeiros chips chegaram ao Brasil em dezembro daquele ano, e a produção das novas urnas eletrônicas finalmente começou em maio de 2022.

"Nós temos sorte de ter um grupo forte de oficiais e líderes empresariais e organizacionais nos dois países que cuidam do relacionamento Brasil-EUA", Harrington disse a The Brazilian Report. "Isso facilitou a nossa colaboração em prol de eleições livres e justas e da integridade das instituições democráticas brasileiras."

Os envolvidos nos esforços para preservar a democracia brasileira no seu maior teste em décadas mantiveram sigilo sobre o assunto. Ainda assim, eles conseguiram celebrar quando Barroso visitou Manaus, a maior cidade da Amazônia, onde é fabricada a placa-mãe das urnas, para receber os primeiros semicondutores.

Lá, os membros da comitiva brindaram o feito com taças cheias de suco de cupuaçu, açaí e cajá — apesar de alguns terem sugerido que a seleção de bebidas incluísse também algum álcool.

Em fevereiro de 2022, Barroso mencionou o episódio brevemente, de forma quase cifrada, em seu discurso de fim do mandato como presidente do TSE - e agradeceu os que ajudaram na busca por semicondutores.

"Todos foram nossos aliados numa verdadeira competição internacional para obtenção de componentes essenciais", ele disse.

EUA intensificaram retórica sobre eleições brasileiras

O caso da escassez de semicondutores é outro elemento que ajuda a entender quão perto do buraco esteve a democracia brasileira nos últimos momentos do governo Jair Bolsonaro.

O risco foi entendido como tão alarmante que o governo norte-americano fez algo fora do comum para deixar claro que confiava no processo eleitoral brasileiro - e para alertar o governo Bolsonaro que qualquer tentativa de golpe teria duras consequências.

Em maio de 2022, a Reuters reportou que, durante uma reunião em julho de 2021, o diretor da CIA William Burns disse a representantes do primeiro escalão do governo brasileiro que Bolsonaro deveria parar de lançar dúvidas sobre o sistema eleitoral do país.

Scott Hamilton, funcionário aposentado do Departamento de Estado norte-americano e que foi cônsul no Rio de Janeiro de 2018 a 2021, falou publicamente sobre as ameaças de Bolsonaro em abril de 2022. Em um artigo para o jornal O Globo, Hamilton pediu para que a diplomacia norte-americana ameaçasse diretamente o Brasil com sanções para evitar o alastramento do caos.

"Queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil", disse a subsecretária do Departamento de Estado Victoria Nuland em uma entrevista um mês depois.

Logo depois, em setembro, o Senado norte-americano aprovou uma resolução "pedindo para o governo brasileiro garantir que as eleições de outubro de 2022 fossem conduzidas de maneira livre, justa, confiável, transparente e pacífica."

Em 31 de outubro, o presidente Joe Biden foi rápido em reconhecer Luiz Inácio Lula da Silva como o novo presidente brasileiro - ajudando a liquidar quaisquer tentativas de Bolsonaro e seus aliados de rejeitar os resultados.

O endurecimento da retórica foi alimentado por um "fluxo constante de oficiais brasileiros" que visitaram Washington ou conversaram com representantes do governo dos Estados Unidos, alertando para os riscos que Bolsonaro representava para a democracia brasileira.

O temor se comprovou em 8 de janeiro deste ano, quando hordas de radicais de extrema-direita, estimulados por anos de ataques ao sistema eleitoral, invadiram os prédios do governo federal, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, em cenas de caos e violência no coração da capital brasileira.

Eles protestavam contra o resultado das eleições de 2022, alegando sem provas que a votação teria sido fraudada em favor de Lula.

Investigações posteriores descobriram documentos que mostram que figuras do primeiro escalão do governo Bolsonaro estavam realmente buscando maneiras de manter o ex-presidente no poder apesar de ele ter perdido as eleições.

Foi encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres o rascunho de um decreto que teria colocado a Justiça eleitoral em estado de emergência e criado um comitê com poder para anular o resultado das eleições presidenciais - o que seria flagrantemente inconstitucional.

Mais recentemente, a polícia encontrou documentos em posse do tenente-coronel do Exército Mauro Cid que tentavam fornecer uma base legal para um golpe de Estado liderado por Bolsonaro.

Dado o tamanho do risco que o Brasil enfrentou, as recentes críticas do presidente Lula aos Estados Unidos em questões como a Ucrânia e a China decepcionaram muitas pessoas em Washington. "Houve um verdadeiro esforço do governo dos Estados Unidos para ajudar o Brasil a proteger o seu sistema eleitoral e preservar a democracia," disse uma fonte ligada ao governo norte-americano. "Deve-se pelo menos respeitar isso."

*Fabiane Ziolla Menezes contribuiu com essa reportagem