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Em tendência macabra no TikTok, mortos 'retornam' para contar seu fim

Fabio Marton

Colaboração para Tilt, em São Paulo

28/06/2023 04h00Atualizada em 28/06/2023 18h33

Meu nome é Tim Lopes e o que vou contar agora é horripilante

No vídeo, o homem narra o brutal assassinato em 2002 do jornalista da TV Globo, que, a mando do traficante Elias Maluco, envolveu uma espada samurai, olhos perfurados e pneus em chamas. A cena obviamente não é protagonizada por Lopes, mas, sim, uma versão dele feita por inteligência artificial e faz parte de uma onda macabra que circula no TikTok: pessoas assassinadas recriadas digitalmente para narrar em detalhes suas próprias mortes.

Assassinados e assassinos

A recriação está longe de ser perfeita. O homem de cerca de 50 anos e pele branca do vídeo está longe do Tim Lopes, um homem negro, da vida real. A voz, com dicção excessivamente perfeita e tom de dublador, foi também gerada por IA. Parece algo quase humano, mas não exatamente.

O vídeo é apenas um dos 16 que apareciam no perfil Histórias Extraordinárias do TikTok até semana passada e tinha 32,2 mil seguidores. Outros personagens contando a própria morte eram a atriz Daniella Perez, morta pelo ator Guilherme de Pádua e sua então esposa Paula Thomaz em 1992, e a menina Isabella Nardoni, atirada pela janela de um apartamento em São Paulo pelo próprio pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, em 2008, quando tinha 5 anos.

Alguns dos vídeos, porém, são narrados pelos matadores. Com voz ultragrave para soar mais macabro, o palhaço serial killer John Wayne Gacy narra alguns dos 33 assassinatos que o levaram a ser executado em 1994. Como com Tim Lopes, o palhaço retratado não lembra nada o Gacy real -parece mais uma versão mais velha do fictício Pennywise, da franquia "It: A Coisa.

Morrer não é obrigatório para ser ressuscitado. Dois dias antes da confirmação da implosão do submersível turístico Titan, dois vídeos emergiram em canais diferentes: um com o empresário, idealizador e piloto Stockton Rush; outro com um passageiro, o também empresário Hamish Harding.

O Titan, enviado para explorar as ruínas do Titanic a 3,8 mil metros de profundidade, implodiu no fundo do mar no domingo (18), matando todos os seus cinco ocupantes. Até a Guarda Costeira dos EUA confirmar as mortes na quinta-feira (22), uma das hipóteses era que eles estariam presos no fundo do mar esperando o fim do oxigênio. É dessa premissa que os vídeos partem.

Em outro perfil, quem acabou animada foi a jovem escritora Anne Frank, que contou em seu diário a perseguição da família pelo nazismo até 4 de agosto de 1944, quando a família foi traída e presa. Anne acabaria morrendo no campo de extermínio nazista Bergen-Belsen, por volta de março de 1945. Também conta seu fim o naturalista australiano Stewe Irwin, famoso por seus programas na TV interagindo de perto com bichos perigosos, morto após ser ferroado por uma arraia em 2006.

Histórias Extraordinárias é apenas um dos canais que surfam na tendência. Além dele, a reportagem encontrou outras quatro contas (Casos Reais Misteriosos, Minha Melhor Cena, Histórias Reais e Vozes do Passado) que levam para o TikTok a ideia dos "reanimators", aqueles seres que, como no livro do mestre do horror H.P. Lovecraft e na adaptação para o cinema, são trazidos do além para assombrar os vivos.

Os donos dos perfis não responderam às mensagens deixadas no bate-papo dos vídeos.

As dezenas de milhares de seguidores desses perfis não fazem comentários recriminando as produções. Apenas compartilham o espanto com as histórias contadas. O mais próximo disso são emojis que emulam espanto.

Zona cinzenta da lei

Mau gosto, exploração de vítimas, imprecisão. Mas será crime? Segundo especialistas consultados por Tilt, a ideia de reanimar uma vítima a partir de uma foto é legalmente incerta.

Todos nós temos um direito à nossa imagem e à nossa voz. A tudo aquilo que nós criamos. É o direito de personalidade. No caso do Tim Lopes, mau gosto à parte, sim, a família poderia impedir esse uso. Com base no direito de imagem
Cláudio Barbosa, advogado e especialista em direitos autorais na Kaznar Leonardos Advocacia

A família de Tim Lopes poderia também processar os criadores por danos morais, exigindo uma indenização. Mas, como os criadores são anônimos, seria preciso primeiro acionar o próprio TikTok para encontrá-los.

Ainda segundo Barbosa, os criadores não poderiam ser implicados judicialmente apenas pelo fato de criar vídeos de pessoas mortas falando como morreram — esse tipo de conteúdo é protegido pelo princípio da liberdade de expressão.

"É como o caso de biografias não autorizadas. Prevalece a liberdade de expressão. Então você tem dois direitos em choque, o da imagem e o da liberdade de expressão", diz o advogado.

O contrário de deep fake

À pedido da reportagem, o especialista em deep fake Bruno Sartori, CEO da empresa Sintética (ex-FaceFactory), explicou como esses vídeos são criados. São técnicas ao alcance de qualquer um.

Isso não é deep fake, é uma imagem animada a partir de um áudio. Com esse áudio, eles conseguem fazer o que a gente chama aqui de labialização - a IA é capaz de reconhecer a posição dos lábios. É IA com redes generativas [que gera conteúdo], mas não como são feitos os deep fakes
Bruno Sartori

A técnica é idêntica à do app viral Wombo, que faz pessoas retratadas em fotos cantarem. As deep fakes reais são feitas depois de milhares de imagens alimentarem um modelo de inteligência artificial, que se torna capaz de gerar réplicas digitais da imagem de alguém.

Em resposta a Tilt, o TikTok afirmou que "todos os usuários devem seguir as Diretrizes da Comunidade do TikTok e conteúdos ou perfis que as violem serão removidos da plataforma quando identificados".

Na mesma quinta-feira (22) em que o TikTok respondeu, os cinco perfis apontados pela reportagem foram removidos. Segundo a empresa, eles violaram as diretrizes da plataforma. Ainda assim, a rede social não apontou exatamente quais das diretrizes foi violada.

Depois do contato da reportagem, no entanto, uma pesquisa com o termo "casos reais" na plataforma voltou a trazer outros perfis do mesmo gênero.

"Isso é tendência, não tem como evitar. Como tudo que acontece na internet, é meio sem freio, não tem como controlar", comenta Bruno Sartori.