Nunca é tarde! Pioneira, ela pilotou espaçonave aos 51 graças a um poema
Marcella Duarte
De Tilt, em São Paulo (SP)
22/07/2023 04h00Atualizada em 22/07/2023 11h34
Sian Proctor tinha tudo para virar astronauta: doutorado em geofísica, curso de mergulho e de piloto de avião, experiência para sobreviver em ambientes inóspitos. Mas, em 2009, a Nasa a dispensou da concorrida seleção, já nas últimas etapas — ela ficou entre os 50 finalistas, mas a agência escolheu só 9 entre mais de 3,5 mil pessoas.
A vida seguiu. Em 15 de setembro de 2021, ela fez história: aos 51 anos, se tornou a primeira mulher negra a pilotar uma nave espacial (e apenas a quarta a ir ao espaço). Isso aconteceu na primeira missão totalmente privada a ir à órbita terrestre, a Inspiration4, da SpaceX, empresa de Elon Musk.
Quando recebi a ligação falando que eu tinha sido escolhida, foi como achar o bilhete dourado do Willy Wonka [do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate]. Era como se minha vida inteira tivesse me guiado para aquele momento.
Sian Proctor
Não é de se estranhar que, desde criança, ela queria ser astronauta. Sian curiosamente nasceu em Guam, uma remota ilha na Micronésia, pois seu pai trabalhava lá, em uma estação de rastreamento da Nasa. Ele contribuiu para o programa Apollo, que levou o homem à Lua entre 1969 e 1972.
Professora de geologia há mais de 20 anos na faculdade pública South Mountain Community College, em Phoenix, no Arizona, ela também faz ilustrações, quadros e poesias. Tanto que hoje se define como uma "artista espacial". Foi graças a esses talentos, e não a toda a preparação técnica, que ela foi ao espaço quase que por acaso.
Eu sonhei a vida toda em ir para o espaço. Mas eu consegui não como geocientista, exploradora ou uma astronauta análoga. Tudo isso está no meu currículo, mas eu garanti minha vaga como uma poeta e artista.
Sian Proctor
Poesia espacial
Mais de uma década após o frustrante "não" da Nasa, sua jornada ao espaço começou com um poema. Ela entrou em um concurso cultural no Twitter, promovido pelo Shift4Shop, uma plataforma de e-commerce. O vencedor levaria um dos quatro assentos da Inspiration4. Foi com o vídeo abaixo que Sian deixou centenas de concorrentes para trás:
Não quer dizer que foi fácil. A partir daí aconteceu uma competição estilo Shark Tank (reality show de empreendedorismo) com alguns selecionados. Isso tudo em plena pandemia de covid-19, que deixou Sian com problemas financeiros e em meio a um divórcio aos 50 anos de idade, ms que de alguma forma florou sua criatividade.
Quem a selecionou foi o bilionário Jared Isaacman, CEO da Shift4 Payments, que financiou toda a missão e embarcou como comandante. O custo não foi revelado, mas a estimativa é de US$ 55 milhões por passageiro. "Ele poderia simplesmente ter levado seus amigos ricos, mas preferiu me escolher como piloto", lembra Sian.
Com caráter beneficente, a missão arrecadou mais de US$ 240 milhões para o hospital St. Jude Children's Research, de Memphis, no Tennessee, especializado em câncer infantil. Isaacman doou as outras duas vagas para a instituição: uma foi para Hayley Arceneaux, que tratou um osteosarcoma aos 10 anos e depois virou enfermeira do hospital, e a outra foi sorteada entre doadores e acabou com o engenheiro aeroespacial Chris Sembroski.
A série da Netflix "Inspiration4: Viagem Estelar" conta a história da viagem.
Magia do espaço
Nos três dias em que passou no espaço, Sian se impressionou com o "brilho" da Terra vista de fora — tanto que, inspirada por ele, pintou um quadro lá dentro da nave.
"Da mesma forma que a gente se banha com o luar à noite, na órbita somos inundados pela luz terrestre quando olhamos pela janela. Queria que todos pudessem experimentar esse brilho batendo no rosto. É transformador", lembra emocionada.
No dia 18 de setembro de 2021, a Dragon voltou à Terra em um mergulho no Oceano Atlântico. Sian saiu dançando de dentro dela.
Desde seu retorno, ela tem rodado o mundo contando suas histórias em palestras motivacionais. Em sua passagem pelo Brasil, participou do Universo Totvs, feira anual de tecnologia e negócios, em São Paulo, e do Space Studies Program 2023, um curso internacional realizado em São José dos Campos (SP) entre julho e agosto.
No interior de São Paulo, virou celebridade. Ao andar na rua, era reconhecida e parada para dar autógrafos, sobretudo para crianças. Seu painel, ao lado do astronauta canadense Robert Trisk, atraiu mais de 4 mil pessoas, das quais 3 mil alunos de escolas da região. Foi o maior público da história do SSP, que acontece desde 1988, cada ano em uma cidade do mundo.
Astronauta primeiro na Terra
Entre a quase seleção da Nasa e a ida ao espaço, Sian se dedicou a virar uma "astronauta análoga" na Terra. Os treinamentos incluíram missões que simulavam viagens espaciais, como viver por quatro meses em uma réplica do ambiente de Marte em um vulcão no Havaí.
Como geocientista, acredito que não há planeta melhor do que a Terra. Nós vamos para o espaço para sermos melhores aqui. A exploração espacial tem tudo a ver com ser mais eficiente com comida, água, energia, resíduos, moradia? todas as coisas que precisamos para sobreviver no espaço são as mesmas que precisamos para prosperar aqui.
Sian Proctor
Ela também participou do reality show The Colony, do Discovery Chanel, em que pessoas tentam sobreviver em uma sociedade pós-apocaliptica por dois anos. Em um dos episódios, construiu um forno solar do zero.
Mas todas essas habilidade não bastavam para ir ao espaço hoje. Antes de pilotar a moderna cápsula Dragon, Sian precisou estudar muito e participar de simulações com os outros tripulantes. "Até então, eu só tinha voado, no máximo, em pequenos aviões Cessna. Fiquei meses lendo manuais enormes, me tornei mais uma engenheira de sistemas do que piloto."
Em nome dos heróis invisíveis
Sian foi concebida na época em que o primeiro astronauta, Neil Armstrong, pisava na Lua, em 1969; ela nasceu oito meses depois desse feito histórico e se considera um "bebê de celebração". Armstrong visitou Guam e agradeceu a equipe da estação, que foi essencial para o retorno à Terra.
"Cresci admirando um autógrafo dele na parede do escritório do meu pai, que faleceu quando eu tinha 19 anos", lembra. Para celebrar as origens e a memória de Edward Proctor, ela levou este quadro ao espaço: "Para Ed, obrigado pela ajuda".
Ela acredita que seu pai, um homem negro, é um destes heróis invisíveis, apagados de nossa história, como as mulheres retratadas no filme "Estrelas Além do Tempo".
Eu não entendia por que nunca via pessoas que se pareciam com meu pai nos arquivos da Nasa da Era Apollo. Se não fosse pela memorabilia que ele guardou, seu papel em colocar o primeiro ser humano na Lua estaria perdido na história. Eu quero continuar o legado dele, mas não como uma figura escondida.
Sian Proctor
Com isso em mente, ela criou o conceito de "Espaço JEDI". Além de uma referência à franquia Star Wars, da qual é muito fã, é um acrônimo: Justice, Equality, Diversity, Inclusion (justiça, igualdade, diversidade, inclusão).
Como professora, percebo o quanto a representatividade importa. As crianças precisam ver pessoas como elas fazendo coisas que pareciam impossíveis. Só assim somos inspirados a usar nossos talentos únicos e nossas paixões para fazer a diferença no mundo. Quero que cada vez mais pessoas 'comuns' possam ir ao espaço.
Sian Proctor
A Inspiration4 foi um teste de sucesso e um marco para o turismo espacial, que está florescendo com empresas como a SpaceX e suas concorrentes Blue Origin e Virgin Orbit.