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TV pirata: por que é tão difícil barrar a farra do 'gatonet' no Brasil?

Milhares de torcedores não viram o Palmeiras amassar o São Paulo por 5 x 0, na rodada da última quarta-feira de outubro do Brasileirão.

Naquela noite, a Anatel cortou o sinal de 80% das TV Boxes que acessam ilegalmente streamings e canais de TV paga e aberta.

O chamado "apagão do gatonet" pode ter afetado 5,6 milhões de caixinhas piratas em todo Brasil, nas contas da agência.

Mas, já no dia seguinte, muitos desses aparelhos voltaram a acessar os canais normalmente. Para cada site ilegal que é bloqueado, os piratas criam novas rotas fora do país para driblar as autoridades.

"É um jogo de gato e rato: um fugindo e outro tentando bloquear", diz Hermano Tércius, superintendente de fiscalização da Anatel.

Console do BTV
Console do BTV Imagem: Reprodução

O bloqueio a servidores hospedados no exterior que abastecem as TV Boxes com conteúdo pirata vem sendo adotado desde fevereiro pela Anatel. De lá para cá, foram mais de 3.000.

A estratégia soma-se a operações da agência com a Receita Federal para tentar impedir a entrada das caixinhas piratas nos portos e aeroportos do país.

Até agosto de 2023, foram 7 milhões de aparelhos sem o selo de homologação apreendidos.

Mas as ações não espantam os clientes. Na internet e nos arredores da Santa Ifigênia, reduto dos eletrônicos na cidade de São Paulo, as caixinhas do tipo BTV continuam sendo vendidas a todo vapor, por preços que vão de R$ 150 até R$ 1.300.

"É o iPhone do gatonet!", proclamava um vendedor de rua na visita que o UOL fez ao local.

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Imagem: Carol Malavolta/UOL

Segundo Tércius, da Anatel, o cerco da agência contra os piratas neste ano elevou a procura por aparelhos de TV Box regularizados, como Roku ou Apple TV. Neles, os streamings e canais são liberados apenas se o usuário tiver a assinatura dos canais ou streamings.

Mas o serviço oferecido pelos piratas é atraente —embora completamente ilegal: acesso ilimitado e vitalício a séries e filmes que ainda estão no cinema. Sinal liberado de TV paga e aberta. Tudo sem cobrança de mensalidade ou com parcela única.

É o sonho de consumo de muitos brasileiros que não querem pagar Netflix, HBO, Amazon Prime e outros serviços de streaming combinados.

"Não trava e tem de tudo. Muito bom", afirma a paulistana Ana*, que trabalha de casa com atendimento ao cliente e tem um BTV.

As caixinhas são fabricadas na China e entram no Brasil através de portos, como os de Vila do Conde (PA), Itaguaí (RJ), Santos (SP) e Paranaguá (PR). Algumas ficam no Brasil. Outras seguem para o Paraguai e, de lá, retornam para cá com caixa e manuais em português brasileiro.

"Customizar custa dinheiro e não é pouco. Se algo chega do Paraguai com tudo em português, quer dizer que alguém faz toda a operação para depois ser levado para o Brasil", afirma Reinaldo Sakis, diretor de Pesquisa e Consultoria de Consumer Devices da IDC Brasil.

Os aparelhos de BTV contam até com loja oficial e atendimento ao cliente com DDI do Paraguai.

No site Reclame Aqui, a nota do BTV (7,4) é melhor que a de serviços de streaming, como Netflix (7,3) e Paramount Plus (5,2).

A comercialização de aparelhos de TV Box ilegais no Brasil é infração passível de multa.

Eles não são homologados pela Anatel, ou seja, não passam por testes e podem interferir em sinais de telecomunicação.

"Se vendemos é porque estão fabricando e passando na fronteira. Têm é que brecar os fabricantes, não quem está vendendo", disse ao UOL em outubro a paulistana Flávia*, que faz uma renda de R$ 6.500 por mês vendendo modelos de TV Box pirata em São Paulo.

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Imagem: Getty Images

Segundo a ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), as TV Boxes piratas geram prejuízo de R$ 15 bilhões ao ano ao país.

Enquanto as vendas das caixinhas piratas crescem, a carteira de assinantes das TV pagas despencou 15% de agosto de 2022 a agosto deste ano, de acordo com a Anatel.

A ilegalidade no mercado das TV Boxes piratas não se restringe à venda dos produtos não homologados.

As caixinhas vêm com aplicativos que permitem acessar o cardápio ilimitado de filmes e séries extraídos ilegalmente de plataformas como Netflix e Disney+.

Esse conteúdo fica guardado em servidores hospedados fora do país e demora a ser removido mesmo após denúncias.

"Os serviços de hospedagem geralmente não respondem a pedidos de remoção quando são notificados, ou demoram para responder", diz Mark Mulready, VP de ciberserviços da Irdeto, empresa de cibersegurança contra pirataria.

Quem fornece esse serviço no Brasil comete crime de desenvolvimento clandestino de telecomunicação, com pena prevista de dois a quatro anos e multa de R$ 10 mil.

Os donos dos aparelhos infringem os direitos autorais ao usarem os serviços piratas. Segundo o superintendente de fiscalização da Anatel, no entanto, os consumidores são o elo mais frágil nessa cadeia e não estão no foco das ações da Anatel neste momento.

No início de 2023, a Holanda fechou o Globe Datacenter, que hospedava 1.200 servidores de IPTV pirata. Por estarem fora do país, esses servidores obrigam as pessoas a usarem mais recursos de rede, o que causa atrasos e instabilidades.

O processo também degrada e atrasa transmissões ao vivo.

Por isso, é comum donos de TV Boxes gritarem gol quando o jogador já parou de comemorar.

Os vendedores têm outra explicação.

"Geralmente o sinal cai é nos falsificados. Muito cliente fala que comprou e recebeu um aparelho diferente. Quando pergunto o valor, ele diz que pagou R$ 150, R$ 200. Mas não existe BTV pirata nesse valor", conta Jade*, vendedora de Curitiba.

Na declaração dela, há uma verdade —a popularidade é tamanha que já há BTVs "piratas", a pirataria da pirataria.

E também uma mentira —falsas ou originais, todas as caixinhas podem sofrer com sinal ruim.

Sede da Anatel, em Brasília
Sede da Anatel, em Brasília Imagem: Reprodução

Em agosto deste ano, a reportagem do UOL esteve na China e foi atrás dos fabricantes dos BTV, os tais "iPhones do gatonet".

Encontrar a fábrica de uma BTV não é fácil. A placa interna dos aparelhos não indica a fabricante. Buscas na internet brasileira por BTV só voltam com sites de revendas.

Já uma procura na versão norte-americana do Google exibe em seus primeiros resultados um site chamado "made-in-china", que conecta fabricantes chineses a atacadistas.

Ali, um dos equipamentos à venda é da Topleo. A empresa tem sede em Shenzhen, o Vale do Silício chinês, onde estão big techs como a Huawei e a montadora de carros elétricos BYD.

O UOL visitou a Topleo, que fica no terceiro andar de um prédio de paredes descascadas, no subúrbio.

Uma profissional do marketing ficou surpresa com o interesse de brasileiros pela marca e não fazia ideia que pessoas como Flávia vendem até dez desses aparelhos por semana, todos os meses.

A representante serviu água e, ao ouvir que o aparelho era popular por aqui, partiu para os negócios: "Quantas unidades você quer comprar?".

O catálogo da Topleo afirma que a empresa fabrica 500 mil dispositivos por mês e tem entre seus fornecedores empresas como Samsung e Intel.

*o jornalista viajou a convite da BYD
**colaborou Marcella Duarte, de São Paulo
***sobrenome omitido para preservar o anonimato

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