'Gentileza à raça humana': como a cidade do futuro pode abrigar os sem-teto
De Tilt, em Austin (EUA)
11/03/2024 12h12
Aos olhos do turista, as cidades norte-americanas impressionam por transportar para as ruas o que vemos nos filmes: casas amplas, com jardim recuado e calçadas largas. A caminhada até o ponto de ônibus traz ares de passeio pela Sessão da Tarde. Essa cidade causa estranhamento quando há sem-teto no trajeto. O passo seguinte é invisibilizar o que está vendo: a vida flui mais fácil quando se finge que a pessoa em situação de rua não está ali. E isso acontece também no país de origem do turista.
É justamente esse modus operandi que precisa acabar ao se discutir o futuro da moradia, defendem especialistas durante o SXSW, maior evento de criatividade do mundo que ocorre em Austin.
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Devemos desenvolver a capacidade de enxergar quem mora na rua. É muito importante que paremos de ignorar e vejamos as pessoas como seres humanos. É nosso dever responder com gentileza à raça humana
Troy Vaughn, CEO e presidente da Los Angeles Mission
A organização dele trabalha para auxiliar pessoas em situação de rua na capital do cinema norte-americano. Ela fornece refeições, banhos quentes, abrigos seguros e outros suportes que as pessoas precisam. E Vaughn distribui críticas por onde passa, como ocorreu no painel "2050: reimaginando a cidade do futuro sem pessoas em situação de rua", que ocorreu neste sábado (9).
"Limparam essa cidade para o SXSW. Tiraram as pessoas da rua. Mas nós vamos embora, e eles vão voltar para as calçadas. Isso me machuca e envergonha. Precisamos resolver a situação das pessoas que vivem nas ruas por nós, e parar de limpar as cidades pelos outros", diz Vaughn.
Ele próprio já viveu nas ruas por alguns anos. "Eu sou o exemplo vivo de como as coisas podem ser quando a gente tira alguém da rua!", diz.
Bancos e empresas com privilégios são parte da solução
A ajuda individual aplaca a situação, mas não a solução para o problema das pessoas que não conseguem pagar moradia - a situação foi agravada na pandemia pela perda dos empregos e questões de drogas na família.
Considerada por muitos uma das mulheres mais poderosas na política norte-americana hoje, a deputada democrata Maxine Waters (Califórnia) considera que a participação de bancos é fundamental para solucionar a questão.
"Os financiamentos de casas mais baratas não são incentivados porque não representam lucro. Eles dizem que você é um cidadão melhor quando compra uma casa, mas os bancos não facilitam nada", diz.
Conhecida como Tia Maxine pelos jovens americanos, a congressista não mede as palavras para cobrar um posicionamento dos bancos.
Jeff Olivet, do conselho norte-americano para sem-teto, afirmou que o esforço não envolve apenas tirar as pessoas das ruas, mas, sim, prevenir que mais gente se encontre nessa situação.
Precisamos ter a consciência de que ter moradia é um direito do ser humano
Jeff Olivet, conselho norte-americano para sem-teto
Criar um caminho para pessoas que já estiveram em situação de rua assumirem posições de poder é fundamental para ampliar o olhar para o assunto, diz Olivet. "Suas paixões, traumas e dores precisam ser ouvidos. Isso é de um poder inacreditável. Pessoas com influência precisam realmente acreditar que esse problema tem solução."
Para Vaughn, organizações lideradas por pessoas que já enfrentaram na pele a dor de não ter um teto podem ser "o elo entre os recursos de quem tem privilégios e de quem não tem moradia".
"São seres humanos que querem crescer e ter uma vida melhor. É importante dizer: eu te vejo e farei algo sobre isso", diz.
Sempre que surgem planos para tirar pessoas da rua, o custo dessas é um dos principais obstáculos. Para Olivet, a discussão sobre quem paga a conta deveria ser encarada por outro ângulo.
"O custo da solução é caro? Não resolver é mais caro, porque está custando vidas. Já temos um custo altíssimo", finaliza.
Neste momento do debate, Waters, ou Tim Maxine como a deputada é chamada pelos jovens, levanta a voz indignada. Ela comenta que a reforma de uma estrada pode custar U$ 2 bilhões a cada trecho de 3 km. Como pode se gastar tanto com asfalto quando tem gente sem ter onde morar vivendo sobre esse aslfato?, pergunta a congressista.
"É para se pensar. Os políticos podem fazer mais. É por isso que fomos eleitos, para ajudar quem precisa", diz Waters.