Existiu samurai negro? Game que se passa no Japão é alvo de polêmica
De Tilt, em São Paulo
24/07/2024 04h00Atualizada em 29/07/2024 10h02
"Ei, nosso shogun [comandante militar] foi assassinado por um estrangeiro negro de quase 2 metros, alguém viu ele por aí?". Este é um dos muitos comentários irônicos no YouTube sobre o jogo Assassin's Creed Shadows, da francesa Ubisoft. O jogo se passa no Japão e tem como protagonistas o samurai negro Yasuke e a ninja Naoe, durante o Japão pré-moderno, no século 16.
O game está previsto para ser lançado só em novembro, mas o primeiro trailer mostrado em maio atraiu críticas. O argumento é que o jogo comete um deslize histórico ao colocar um negro e uma mulher como personagens principais nesse contexto. A onda de críticas voltou recentemente quando foram mostradas cenas do jogo em junho.
Afinal, o que se sabe sobre negros e ninjas mulheres no Japão?
Como negros foram parar no Japão?
Os portugueses foram os primeiros europeus a chegarem no Japão, em 1543. Após três anos, há registros dos primeiros negros em território japonês, trazidos por jesuítas.
Eles eram avistados em navios. Muitas vezes eram marujos dos navios dos portugueses ou escravizados. Havia a presença deles, mas não era a coisa mais comum do mundo. O mesmo ocorria com europeus na região. Kauê Metzger Otávio, doutorando em história pela UFPR e especialista em Japão pré-moderno
Mas existiu mesmo um samurai negro chamado Yasuke? A resposta tem que ser dividida: sim, houve um homem negro chamado Yasuke no Japão. Não, não se sabe se ele foi samurai.
Samurai era um guerreiro ligado à aristocracia, classe que era o topo da pirâmide, seguida por agricultores e comerciantes. Alguns desses guerreiros comandavam um vilarejo ou protegiam um daimiô, senhor feudal de uma região.
O que se sabe, com certeza, é que um homem negro, provavelmente vindo de Moçambique, chegou ao Japão e foi dado ao daimiô Oda Nobunaga. Ele foi batizado de Yasuke e, pelo que se sabe, tinha algum conhecimento de japonês e era descrito como um homem alto —talvez em comparação com a população da época— e forte "como dez homens".
Além disso, tudo indica que Nobunaga não o tratava como escravizado, mas como um membro de sua comitiva, explica Metzger Otávio, que também é coordenador do Nejap (Nucleo de Estudos Japoneses).
Nobunaga foi assassinado em 1582 por um vassalo. Yasuke participou do combate para protegê-lo, mas não foi morto. Por ser estrangeiro, foi liberado para seguir seu caminho. A partir disso, não se sabe se ele voltou para os jesuítas e foi eventualmente escravizado ou continuou no Japão. "Depois da morte do daimiô [senhor feudal], ele não é mais mencionado. Não tem mais registros históricos sobre ele", diz Metzger Otávio.
Naquela época, havia uma grande mobilidade social. Então, seria possível até um estrangeiro ser um samurai. Mas era comum? Não. Acho interessante justamente isso, pois o jogo explora uma lacuna histórica. Foi uma sacada o game permitir que o jogador 'participe' dessa criação. Kauê Metzger Otávio, doutorando em história pela UFPR e especialista em Japão pré-moderno
As críticas ao protagonista negro são uma "desculpa para racismo", acredita o especialista. "As pessoas querem fidelidade histórica, mas não estudam o tema. Sem contar que o Yasuke aparece como samurai mesmo em obras japonesas, como mangás da década de 1960, e nunca teve polêmica, pois ele é um personagem que existiu mesmo."
E ninja mulher?
Naoe é definida como uma shinobi, que significa ninja. Metzger Otávio diz que "a academia está começando a voltar os olhos para a questão de ninja" e que havia certo preconceito com o assunto.
Apesar de ser uma figura muito retratada na cultura, o especialista diz que "há muito folclore" e o que se sabe é que os ninjas eram guerreiros de baixa estirpe, muitas vezes camponeses, mas que usavam táticas de espionagem e de guerrilha para atingir algum objetivo.
O Japão pré-moderno era patriarcal, mas havia exceções. "É possível que mulheres tenham sido ninjas, mas não era comum. Por ter como objetivo a espionagem, não dava para sempre ser um homem para obter informação ou realizar algum tipo de missão", diz o especialista.
A personagem ninja no jogo é uma homenagem, pois Naoe é filha do Fujibayashi Nagato, considerado um dos grandes ninjas do século 16 no Japão. Logo no início do jogo, ele é assassinado.
Tem problema jogo não acertar 100% em história?
Do ponto de vista histórico, especialistas consultados pela reportagem não veem problema de um jogo cometer imprecisões históricas.
Felipe Augusto Ribeiro, que é professor de história da UFPE e estuda a interação entre eventos históricos e videogame, diz que um dos poucos consensos no ramo é que os games "não tem obrigação nenhuma de precisão histórica".
A ciência histórica é que tem obrigação de ser precisa historicamente, e o Assassin's Creed não é uma obra de história, mas uma obra de arte, como filme e música. Para quem desenvolve um jogo, a história pode ser uma inspiração, mas não é uma obrigação. Felipe Augusto, que é professor de história da UFPE
O professor avalia que o propósito do game é o "entretenimento" e que exigir um rigor do jogo representaria "ameaçar o caráter artístico" da obra.
Metzger Otávio aponta outra característica importante de jogos históricos, que é, de alguma forma, inspirar os jogadores a se informarem melhor sobre o ambiente em que estão inseridos.
"Um jogo é pensado para divertir, então acho válida a iniciativa do Assassin's Creed e de outros jogos, mesmo que acabe cometendo erros históricos. No fim, a temática leva as pessoas a se interessarem pelo assunto e ir atrás do tema", afirma Metzger Otávio, que disse ter se interessado por história após jogar RPGs de mesa.
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