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'Perdi a noção do perigo': eles quase morreram ao tentar tirar fotos

Da esquerda para a direita: Fabíola Eugênio Arrabaça, Thais Mota e Jack Fox Imagem: Arquivo pessoal

Sofia Pilagallo

Colaboração para Tilt

25/07/2024 04h00

Em um mundo hiperconectado, em que a vida nas redes sociais parece ter mais valor do que a existência real, muitas pessoas arriscam a própria segurança em busca do clique perfeito. Nos casos mais extremos, a consequência pode ser a morte ou alguma lesão grave.

Mas existem aqueles que, por sorte —ou proteção divina, para quem acredita— sobrevivem sem grandes sequelas e hoje compartilham suas histórias para fazer um alerta. Este é o caso das brasileiras Fabíola Eugênio Arrabaça e Thais Mota e do britânico Jack Fox, que conversaram com Tilt.

'Perdi a noção do perigo'

Nas últimas semanas, a discussão sobre fotos perigosas voltou à tona depois que viralizou o vídeo do acidente da ciclista Fabíola, nascida em Pontal (SP), que foi atingida por um trem na zona rural de Uberaba, no Triângulo Mineiro.

O acidente aconteceu em abril, mas só foi noticiado no início de junho. Apaixonada pelo ciclismo desde pequena, por influência do pai, Fabíola conta que estava muito feliz naquele dia, e por isso acabou se distraindo.

No dia do acidente, eu estava muito alegre. Já tinha realizado esse mesmo percurso tempos atrás, mas, neste dia, tive o meu melhor desempenho. Entre os vários percursos já alcançados esse foi diferente, há algum tempo não me sentia tão bem. O dia estava lindo. Acabei perdendo a noção da distância que eu estava dos trilhos, perdi a noção do perigo.
Fabíola Eugênio Arrabaça

Acompanhada por um grupo de ciclistas, Fabíola pedalou até o ponto mais elevado das redondezas e deu início ao caminho de volta. No meio do trajeto, parou em um bar para comer um petisco. Ali, decidiu tirar a foto que resultou no acidente. Ao tentar fazer uma selfie perto dos trilhos, acabou sendo atingida pela locomotiva.

Não tenho palavras para descrever o empurrão que levei. Foi uma sensação horrível. Eu custava a dormir, mesmo à base de remédios. Nem mesmo morfina deu conta das minhas dores.
Fabíola Eugênio Arrabaça

Ela ficou com um galo na cabeça, teve três costelas fraturadas, usou um dreno por três dias, devido ao derrame de sangue pleural, por impacto da pancada, e vários roxos pelo corpo, sem contar os traumas.

"Antes eu caminhava por longas distâncias. Hoje tenho medo de andar na rua, me afastar de casa me deixa ansiosa, é como se essas paredes fossem uma proteção. Dias atrás, fui viajar de carro e, na estrada, ouvi a buzina de um caminhão, elas são muito altas e por isso associei ao som do apito que lembrava um trem. Gelei. Foi um gatilho."

'Me lembro de cair e depois me afogar'

Thais Mota, de 35 anos, natural de São Gonçalo (RJ), também passou por uma situação traumática após tentar fazer uma foto. Em 16 de abril de 2015, ela caiu da Janela do Céu, no Parque Estadual do Ibitipoca (MG). O local é o topo de uma cachoeira.

Thais em foto no Parque do Ibitipoca (MG), pouco antes de sofrer o acidente Imagem: Arquivo pessoal

Visitar o parque era um sonho antigo. Segundo Thais, o caminho até lá é cansativo e exige uma longa caminhada por uma trilha. Por isso, ela e as pessoas que a acompanhavam começaram cedo pela manhã.

Quando chegou ao local, que é o cartão-postal do parque, Thais pediu a uma amiga que tirasse uma foto dela com a paisagem ao fundo, mas, na hora do clique, escorregou e caiu. Os colegas tentaram segurá-la, sem sucesso. "Caí de uma altura de 35 metros", diz. A altura é equivalente à de um prédio de 13 andares.

Eu me lembro de cair, e depois de me afogar.
Thais Mota

Ela desmaiou, e só acordou com a chegada do resgate, muitas horas depois.

Durante a queda, a única coisa que me vinha à cabeça era: 'Meu Deus, me salva. Estou morrendo.' Pensei na minha mãe. Vi minha vida passar em segundos. Como não sabia nadar, fiquei ali me afogando. Quando acordei e vi o resgate, pensei: 'Vou sair daqui viva',
Thais Mota

No hospital, Thais descobriu que havia tido uma fratura na coluna e teve de passar por uma cirurgia de emergência. Apesar da gravidade da situação, ela não perdeu o movimento dos membros e nem ficou com sequelas.

Hoje, na Janela do Céu, há uma corrente perto da borda, que indica o limite para as fotos —e um guia alerta os turistas se ultrapassam a barreira.

Janela do Céu é um dos atrativos do parque do Ibitipoca (MG) Imagem: Parque Estadual do Ibitipoca/Divulgação

Thaís enfrentou um quadro de estresse pós-traumático, que precisou tratar com muita terapia e sessões de hipnose. Levou anos para se recuperar totalmente.

No início, sentia que meu corpo estava caindo toda vez que dormia. Sonhava muito com pedra e água. Também tinha dificuldade para tomar banho de chuveiro. Eu gritava, achando que estava em uma cachoeira.
Thais Mota

'Pensei que fosse morrer'

Jack Fox, de 23 anos, sofreu um acidente parecido quase dez anos atrás. Natural de Southport, na Inglaterra, ele fazia uma viagem escolar à Áustria, em fevereiro de 2015, quando caiu nos Alpes, ao tentar fotografar a paisagem. Jack rolou mais de 700 metros montanha abaixo.

Foto que Jack tirou logo antes de cair de montanha e rolar por mais de 700 metros. Imagem: Jack Fox

Apesar da grande altura, a neve amorteceu a queda e Jack sobreviveu, com poucos ferimentos: um braço quebrado e algumas queimaduras de gelo pelo corpo. Ele foi socorrido e levado a um hospital da região de helicóptero. A viagem teve de ser estendida por mais um dia.

Foi aterrorizante. Durante a queda, pensei que fosse morrer. Depois, quando atingi o chão, me apalpei para verificar se não tinha quebrado nada e tudo parecia bem. Foi só então que notei a dor em meus braços.
Jack Fox

Jack relata que muitos de seus colegas retiraram os capacetes para tirar fotos quando chegaram ao topo da montanha. Ele manteve o equipamento de proteção, o que provavelmente o salvou da morte.

Jack mostra ferimento após rolar em montanha Imagem: Arquivo pessoal

Apesar do susto, o jovem diz não ter ficado com traumas decorrentes do episódio, pois sempre foi uma pessoa "propensa a acidentes". Ao longo da vida, já fraturou os dois cotovelos, o pé e o maxilar.

'A vida é um sopro'

Os acidentes, que por pouco não foram fatais, levaram a reflexões sobre a vida. Para Thais, mudou tudo. Ela passou a dar valor às coisas simples. Hábitos cotidianos, como escovar os dentes ou pentear o cabelo, ganharam outro significado.

"Eu me lembro da primeira vez que escovei os dentes e penteei o cabelo sozinha depois do acidente. Aquilo foi emocionante para mim", afirma.

Antes eu tinha vontade de desbravar o mundo. E então percebi que o mundo estava bem ali na minha frente, na minha família, que são as pessoas que mais importam.
Thais Mota

Thais reflete também sobre a fragilidade da vida, e sobre como tudo pode mudar em questão de instantes. Na época do acidente, ela estava em uma de suas melhores fases —jovem, cheia de energia e com muitas viagens e passeios em vista. De repente, se viu em uma cama de hospital, sem saber se voltaria a andar.

"A vida é um sopro. A gente deveria acordar todos os dias e agradecer por estar com saúde, por poder fazer o que quer. É muito ruim abrir os olhos e estar fadada a passar o dia em uma cama."

Para Thais, uma foto bonita pode ofuscar o contexto, o local perigoso. "Você já está ali, é um perigo. Imagina se distraindo com a foto? E o celular na mão tira a atenção", reflete.

"Acho que quem tem o poder de influência na internet [e divulga fotos em locais perigosos] precisa ter essa consciência: nem todo mundo que está ali tem uma preparação. Será que o lugar é preparado para receber esse tipo de turista? Várias coisas têm de ser levadas em consideração."

Para Fabíola, a lição tirada do episódio foi similar. No período de recuperação, vários hábitos que antes eram corriqueiros se tornaram difíceis, como tomar banho. Ela passou a ter mais gratidão pela vida e também por aqueles que a ajudaram quando precisou. Ao mesmo tempo, aprendeu a selecionar melhor as pessoas que deveria manter por perto.

Eu recebi muita empatia, mas também recebi tudo ao contrário disso. Ouvi pessoas próximas de mim dizerem que sentiam vergonha de mim, me perguntando como eu pude ser tão burra. Isso me magoou.
Fabíola Eugênio Arrabaça

"Eu não me coloquei naquela situação de forma deliberada. Foi um risco mal calculado. Mas hoje percebo que eu poderia ter ficado em uma posição mais segura em relação ao trem. Ainda assim, teria feito uma boa foto", diz.

"Não vale a pena tentar uma foto diferente ou exclusiva se você está colocando em risco a sua vida. Não compensa."

Já Jack acredita que as pessoas hoje se colocam em risco por uma foto porque querem passar determinada imagem nas redes sociais. Para ele, o objetivo é impressionar, parecer ter uma vida melhor e mais divertida do que realmente se tem.

'O real não mobiliza mais ninguém'

Para especialista, real não causa engajamento Imagem: Getty Images

O filósofo Bajonas Teixeira de Brito, professor da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e autor do artigo "Selfies e a exposição na era das redes sociais", concorda com o britânico. Para ele, o fenômeno das selfies e fotos arriscadas existe porque o real não causa mais engajamento.

Sinto que há nessas fotos um impulso de resgatar o antigo real, aquele que foi extinto junto com o falecido mundo presencial. Mas esse real é buscado no extremo --seja nas Cataratas do Iguaçu, em ondas de ressaca, na frente de um trem ou em um precipício. Tem de ser assim, porque o real, o banal cotidiano, não mobiliza mais ninguém. É a reiteração do tédio.
Bajonas Teixeira de Brito, cientista social

O filósofo Rodrigo Petrônio, professor da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), faz uma retrospectiva histórica para analisar a questão.

Ele explica que, ao longo dos séculos, observou-se que as pessoas normalmente arriscavam suas vidas pelo seu povo, por causas políticas e ideais coletivos. Hoje, as pessoas arriscam a própria vida por uma foto de si mesmas. Trata-se da tentativa de se glorificar ou se imortalizar, como faziam os antigos egípcios, por exemplo, que se autorretratavam nas paredes das pirâmides.

As selfies e fotos arriscadas demarcam um ponto de virada da perspectiva cultural, que diz respeito ao esvaziamento do coletivo. Ao mesmo tempo, tem havido também uma sensação de esgotamento universal com relação às redes sociais e aos valores por elas propagados. Acredito que as pessoas estão se cansando dessa teatralização. A tendência é esse fenômeno perder força ao longo do tempo.
Rodrigo Petrônio, filósofo

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