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Cidades do amanhã

Lugares do Brasil que já estão criando as inovações que vão mexer com o mundo no futuro


Fazenda conectada leva cidade no 'coração do Brasil' para era da internet

Marcello Ferraz

De Tilt, em Água Boa (MT)

05/08/2024 05h30

Falam que aqui é a 'Dubai da tecnologia'. É o sonho de consumo dos operadores. Todo mundo que vem aqui fica admirado
Marcos Rodrigues, gerente de operações

O orgulho de Rodrigues é a fazenda Jerusalém, que fica em Água Boa (MT), cidade conhecida até poucos anos atrás por sediar o maior leilão de gado de corte do mundo — chegou a 29 mil animais vendidos em um dia. A propriedade que planta soja, sorgo, milho e girassol fez pelo município a 631 km de Cuiabá o que a pecuária jamais conseguiu: transportou-a para a era da internet móvel.

Esse, porém, é o efeito secundário de uma inovação que fez a fazenda reconhecida no Brasil: tratores, colheitadeiras e plantadeiras registram toda a operação; reportam tudo a uma central, e os dados podem ser vistos em tempo real em smartphones. Isso só funciona graças à conexão, e a antena que liga as máquinas tirou a cidade do mundo offline.

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A gente sai hoje do interior do município e, quando está chegando a 25 km, 30 km [do centro], o seu celular já começa a receber mensagem
Rejane Schneider Garcia, vice-prefeita de Água Boa (MT)

Fundada em 1976 por agricultores do Rio Grande do Sul, a cidade só se emancipou em 1979. Com pouco menos de 30 mil habitantes, a cidade gosta de ser vista com grandeza. "Quando você abre o mapa mundi, quem está no centro? É o Brasil. E quem está no centro? A nossa querida Água Boa. Então, nada mais justo que levarmos o título 'cidade coração do Brasil'", diz Garcia.

Imagem: Marcello Ferraz/UOL

Filha de um desses colonos que migraram do Sul, ela se orgulha de ter visto os avanços tecnológicos que transformaram a cidade. No começo dos anos 1980, corria para casa ao sair da escola à noite, quando desligavam a energia, obtida com motor. Na época, a prefeitura abrigava o único telefone público do município.

"A gente tinha um cantinho onde funcionava nosso orelhão. Ali se formavam filas de pessoas querendo ligar para os parentes no sul. Como não havia separação das cabines, ali na frente de todo mundo mesmo, a gente acabava sabendo muitos assuntos que não queria saber, né", conta.

Em 2001, o serviço de celular chegou. Um dos poucos aparelhos móveis de Água Boa era o da prefeitura. O acesso ao serviço era tão precário que, a cada eleição, a transição de governo incluía a transferência do eletrônico para o novo ocupante do governo municipal.

Por outro lado, a pequena cidade nasceu com planejamento urbano que garante avenidas largas e bairros estruturados. Caminha hoje para virar um polo regional de saúde, tanto para atender moradores de cidades vizinhas do Vale do Araguaia quanto para formar profissionais.

A cidade está na rota de um hub logístico, com porto seco e uma ferrovia, que conectará a outra linha férrea, a Norte-Sul, e de lá aos portos de Santos e São Luís. Tudo para escoar a produção agrícola que move a economia local.

Imagem: Marcello Ferraz/UOL

Projetos como esses levam um grande fluxo de pessoas à cidade. Até pouco tempo atrás, enfrentariam um grande problema estrutural: a ausência de conexão móvel banda larga.

"A internet era algo com que até três, quatro anos atrás, nós tínhamos sérios problemas", conta Garcia. A conexão mexeu até com o jeito de ensinar.

Hoje, nossa rede tem lousa digital, que pode ser levada para a sala de aula e permite mostrar conteúdo em tempo real aos alunos. Antigamente, eles não tinham internet a não ser num espaço específico
Nubia Rosana Reinher, professora da rede municipal de Água Boa (MT)

Foi a Jerusalém que mudou esse cenário, a partir do segundo semestre de 2021. Originalmente uma propriedade onde se criava gado, o local virou uma lavoura após ser comprada pelo empresário Gerson Garbuio —o pé na pecuária está na origem do nome da fazenda: a presença de um estábulo fez o empresário lembrar da manjedoura onde nasceu Jesus Cristo; daí Jerusalém, apesar de Jesus ter nascido em Belém.

Além de fazendeiro, Garbuio é o revendedor oficial da Case IH, marca de equipamentos agrícolas da CNH , na cidade. Isso o colocou na rota de um projeto promissor.

Fazenda Conectada, em Água Boa (MT) Imagem: Marcello Ferraz/UOL

A fabricante de maquinário faz parte da Conectar Agro, uma associação que promove a conexão no agronegócio. Empresas da organização procuravam uma propriedade que aceitasse fazer parte de um projeto pioneiro de conexão. Encontraram a candidata ideal na Jerusalém, com seus 3.200 hectares (cerca de 4,5 mil campos de futebol). Produtora de soja, milho, sorgo e girassol, a fazenda já tinha alta eficiência mesmo trabalhando de forma analógica. Implantar conexão nela mostraria que, mesmo áreas com alta produtividade poderiam ser beneficiadas.

As máquinas já eram avançadas, mas faltava conexão. Primeiro, a TIM instalou uma antena de celular, que passou a fornecer 4G para uma área de até 35 mil hectares. Depois, veio uma plataforma multimídia na sede da fazenda para receber e exibir nas telas os dados de telemetria produzidos por tratores e outros veículos no campo. Projetos como esses custam R$ 1,4 milhão, mas podem se pagar em até 10 anos ou em duas safras, dependendo do rendimento da plantação.

A gente consegue ver a produtividade das máquinas, consertar aquelas que estão produzindo menos e fazer um ajuste para todas as máquinas terem a mesma efetividade
Gerson Garbuio, sócio proprietário da fazenda Agropecuária Jerusalém

Engenheiro agrônomo da fazenda, Felipe Zmijevski conta que obtém dados como quanto foi colhido ou plantado, o volume de combustível gasto, os hectares cobertos por hora e a taxa de deslocamento dos tratores —determinadas culturas têm produtividade maior quando plantadas a velocidades mais baixas.

Trator na Fazenda Conectada, em Água Boa (MT) Imagem: Marcello Ferraz/UOL

Como sai no mesmo dia, o relatório da produção orienta a jornada seguinte dos operadores de máquinas.

Todos os dias a gente tem um alinhamento operacional com os operadores para mostrar esse dado e tentar fazer com que eles nos ajudem a entender por que um operador rende mais do que o outro. e a partir do momento que eles começam a enxergar o rendimento de cada um, a gente puxa a média desse operador que está para trás
Felipe Zmijevski, engenheiro agrônomo da fazenda Jerusalém

Para além das máquinas conectadas, ter internet na fazenda evita deslocamentos desnecessários.

Mesmo dentro da própria fazenda a gente tem distâncias de 18 km para a sede. Antes da conectividade, a nossa comunicação era via rádio amador. Eu tenho boa memória visual e, de tanto mexer nas máquinas, conseguia pelo rádio orientar o operador. Mas, dependendo do problema, tinha que me deslocar para chegar lá só para apertar um botão
Felipe Zmijevski

Unicamp e a consultoria Agricef fizeram um estudo para avaliar se o projeto deu certo. Dados levantados pelas organizações mostram que, na safra 2022/2023, a Fazenda Jerusalém foi 7,6% mais produtiva que as outras de Mato Grosso e ficou 13,4% acima da média do Brasil. Na prática, a lavoura obteve pouco mais de duas sacas a mais por hectare.

A conectividade fez as máquinas trabalharem menos horas e de forma mais inteligente. Quando está ligado, o trator é mais eficiente. O maior controle permitiu reduzir em 5,7% a ociosidade de motor. Isso derrubou o consumo de combustível em 25% — menos 51,2 mil litros de diesel, uma economia de R$ 307 mil. Com isso, as emissões de carbono foram 10% menor, algo como 12,5 quilos de CO2 a menos por tonelada de soja.

Unicampo e Agricef estimam que, se outras propriedades produtora de soja adotassem o mesmo nível de conexão, a economia só em Mato Grosso seria de R$ 1,2 bilhão.

Pilotar essas máquinas não é trabalho braçal, mas exige especialização. A cabine tem ar-condicionado e geladeira portátil, mas o operador precisa lidar com 17 marchas, seguir a rota planejada no computador de bordo e, eventualmente, precisar checar e alterar configurações na tela enquanto a máquina roda.

"O maior entrave hoje na agricultura é a mão de obra qualificada", diz Zmijevski. Rodrigues, o gerente de operações, concorda.

Agora, quem não estuda não vai para a roça. Vai para outra função, mas não para as máquinas. Para fazer a tecnologia funcionar, o cara tem que ter conhecimento
Marcos Rodrigues, gerente de operações

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