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Cidades do amanhã

Lugares do Brasil que já estão criando as inovações que vão mexer com o mundo no futuro


Cerrado abaixo de 0°C: por dentro da 'Arca de Noé' da comida brasileira

Thiago Domingos

Colunista de Tilt e Colaboração para Tilt, de Brasília, Planaltina (DF) e Santo Antônio de Goiás (GO)

02/09/2024 05h30

A menos de 12 km da Praça dos Três Poderes, centro da vida política na capital federal, um prédio guarda o futuro da alimentação e da agricultura brasileiras. São milhares de sementes, plantas, animais e microrganismos mantidos a temperaturas abaixo do 0°C em pleno Cerrado.

Conhecido como "Arca de Noé" das sementes ou "geladeira do futuro", o Banco Genético da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) conserva a biodiversidade do Brasil e é um dos maiores cofres do tipo do mundo.

Aqui nossa intenção é muito maior que a de Noé. Enquanto Noé tinha dois casais de cada espécie, só de embriões a gente tem mais de 100 mil
Juliano Gomes Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa

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Ala do Banco Genético da Embrapa que abriga coleções de plantas in vitro Imagem: Thiago Domingos/UOL

Esses embriões são armazenados em tanques criogênicos. Resfriados a -196°C, os DNAs ficam imersos em recipientes de hidrogênio. Também há câmaras frias gigantes, forradas por painéis metálicos revestidos por espuma e mantidas a -20°C. Lá ficam mais de 150 mil amostras de sementes. A reportagem do UOL esteve no local, ao qual apenas dez pessoas têm acesso.

O banco tem quatro funções, compartilhadas com outras unidades da Embrapa, explica Pádua:

  • conservar a maior quantidade possível de animais, plantas e microrganismos;
  • melhorar espécies e prepará-las para mudanças climáticas;
  • adaptá-las para cultivo em novas regiões;
  • permitir a defesa preventiva contra doença.

Tradição a salvo

Juliano Gomes Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa, mostra semente de milho preservada a -20°C. Imagem: Thiago Domingos/UOL

A conservação de espécies já salvou uma tradição indígena. No começo dos anos 1990, o povo krahô, do Tocantins, entrou no Mapa da Fome entre Povos Indígenas. Apesar de receberem sementes híbridas de milho do governo federal, não conseguiam cultivá-las, porque necessitavam de insumos agrícolas. O processo ainda os fez perder suas sementes tradicionais.

O problema não era apenas alimentar. Para os krahô, o põhypej é um tipo de milho dado por uma estrela que caiu na Terra e virou mulher. Foi ela que apresentou a agricultura à humanidade. Por isso, acreditam que os alimentos plantados não só nutrem o corpo mas também alimentam o espírito.

A Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] nos procurou e conseguimos identificar as sementes coletadas ainda na década de 1970. O cacique veio até nosso banco e as identificou, e nós entregamos 100 delas. No ano seguinte, ele retornou com uma cuia cheia e disse o seguinte: 'Vou devolver para vocês conservarem. Se os nossos filhos e netos precisarem, saberão onde procurar'
Juliano Gomes Pádua

A fruta mais brasileira

Maracujá azedo ou Gigante Amarelo, tipo de espécie de fruta desenvolvida pelo Embrapa Imagem: Thiago Domingos/UOL

O cofre de sementes se conecta a outras instalações da Embrapa. A unidade da empresa pública de Planaltina (DF) trabalha há 30 anos para conservar e melhorar uma das frutas mais brasileiras da nossa natureza, o maracujá.

O Brasil é líder global no cultivo e consumo da fruta. Das mais de 500 espécies no mundo, cerca de 200 estão presentes no país —por volta de 100 delas são encontradas apenas por aqui. Além delas, a Embrapa desenvolveu seis novos cultivares de maracujá. Uma delas, a Pérola do Cerrado, foi abraçada por agricultores assentados pela reforma agrária, que passaram a ganhar mais pela venda do quilo da fruta.

O maracujá é uma cultura essencialmente da biodiversidade brasileira. O melhoramento genético oferece espécies superiores, que vão produzir mais, são mais resistentes a pragas e doenças e originam um fruto mais bonito
Fábio Gelape Faleiros, chefe adjunto e pesquisador da Embrapa Cerrados

Soja no Centro-Oeste

Iniciativas como o banco de germoplasma estão na origem da adaptação de espécies agrícolas a regiões até então inóspitas a elas.

Aconteceu com a soja e o trigo, que até os anos 1970 eram cultivas no Sul do país. A migração delas para o Centro-Oeste fez do agronegócio do Brasil uma potência econômica. O mesmo ocorreu com a uva, que foi levada do Sul para o semiárido, no Nordeste. O mesmo processo está ocorrendo com a maçã.

Em defesa do arroz e feijão

Panela com feijão Imagem: ARTE/UOL

A segurança de uma tradicional dupla do prato do brasileiro é feita pela unidade da empresa pública em Santo Antônio de Goiás (GO), a 108 km de Goiânia (GO).

Se acontece algum problema em virtude das mudanças climáticas, já presentes e que vão ficar mais sérias, e a gente perde o nosso arroz e feijão do dia a dia, o que a gente faz?
Juliano Gomes Pádua

O banco genético conserva 20 mil amostras de arroz e 18 mil de feijão. Na unidade goiana, a missão vai além da defesa contra a emergência climática, que afeta temperatura e umidade. Também é manter arroz e feijão a salvo da proliferação de pragas.

A gente está sempre tentando prever coisas que podem acontecer no futuro. Um exemplo é a doença crestamento bacteriano aureolado, já presente em todos os países que fazem fronteira com o Brasil, mas ainda sem relatos por aqui. A gente já fez um programa de melhoramento preventivo, a resistência a essa doença em cultivares. Se ela estourar no Brasil, a gente terá material resistente
Paula Pereira Torda, pesquisadora da Embrapa Arroz e Feijão

Também é função dessa unidade estudar a origem de espécies. Central na mesa brasileira, o feijão carioca é o mais consumido no país. Ele é resultado de uma mutação, surgida nos anos 1970. Não é o mais popular no Rio de Janeiro —por lá, o feijão preto é o mais apreciado—, mas leva esse nome por suas rajas parecerem as da calçada da orla da praia de Copacabana, conta Torda.

Saco de feijão carioca Imagem: Thiago Domingos/UOL

Localização estratégica

Criado há dez anos para centralizar as coleções de recursos genéticos, o cofre das germoplasmas está localizado na primeira unidade do Embrapa, constituída em 1973. Foi instalado ali pelas características geográficas de Brasília (DF): no centro do país, está longe do mar, de placas tectônicas e pode receber de forma ágil amostras das outras 165 unidades da empresa e enviar a elas.

A preservação de diversidade genética ganhou força após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, quando os países passaram a ser considerados responsáveis por sua biodiversidade — até então, essas culturas eram consideradas patrimônio da humanidade. Junto disso, veio o alerta para a perda de diversidade em espécies cruciais para alimentação e agricultura.

A função de bancos genômicos como o da Embrapa é estratégica, assim como a conexão entre eles. As espécies guardadas são distribuídas a organizações parceiras pelo mundo. A redundância evita a perda de plantas importantes em caso de catástrofes naturais ou guerras.

Foi o que ocorreu após a guerra civil da Síria ter devastado o banco genético do país, em Aleppo. O evento levou à abertura pela primeira vez do Silo Global de Sementes Svalbard, localizado em uma ilha da Noruega a 1.300 km do Polo Norte, em 2015. Ela enviou amostras para repor as sementes danificadas. Criada em 2008, a instalação é conhecida como "Cofre do Apocalipse" por reunir mais de 1 milhão de espécies e poder funcionar até 200 anos mesmo se a energia for cortada.

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