Cerrado abaixo de 0°C: por dentro da 'Arca de Noé' da comida brasileira
A menos de 12 km da Praça dos Três Poderes, centro da vida política na capital federal, um prédio guarda o futuro da alimentação e da agricultura brasileiras. São milhares de sementes, plantas, animais e microrganismos mantidos a temperaturas abaixo do 0°C em pleno Cerrado.
Conhecido como "Arca de Noé" das sementes ou "geladeira do futuro", o Banco Genético da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) conserva a biodiversidade do Brasil e é um dos maiores cofres do tipo do mundo.
Aqui nossa intenção é muito maior que a de Noé. Enquanto Noé tinha dois casais de cada espécie, só de embriões a gente tem mais de 100 mil
Juliano Gomes Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa
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Esses embriões são armazenados em tanques criogênicos. Resfriados a -196°C, os DNAs ficam imersos em recipientes de hidrogênio. Também há câmaras frias gigantes, forradas por painéis metálicos revestidos por espuma e mantidas a -20°C. Lá ficam mais de 150 mil amostras de sementes. A reportagem do UOL esteve no local, ao qual apenas dez pessoas têm acesso.
O banco tem quatro funções, compartilhadas com outras unidades da Embrapa, explica Pádua:
- conservar a maior quantidade possível de animais, plantas e microrganismos;
- melhorar espécies e prepará-las para mudanças climáticas;
- adaptá-las para cultivo em novas regiões;
- permitir a defesa preventiva contra doença.
Tradição a salvo
A conservação de espécies já salvou uma tradição indígena. No começo dos anos 1990, o povo krahô, do Tocantins, entrou no Mapa da Fome entre Povos Indígenas. Apesar de receberem sementes híbridas de milho do governo federal, não conseguiam cultivá-las, porque necessitavam de insumos agrícolas. O processo ainda os fez perder suas sementes tradicionais.
O problema não era apenas alimentar. Para os krahô, o põhypej é um tipo de milho dado por uma estrela que caiu na Terra e virou mulher. Foi ela que apresentou a agricultura à humanidade. Por isso, acreditam que os alimentos plantados não só nutrem o corpo mas também alimentam o espírito.
A Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] nos procurou e conseguimos identificar as sementes coletadas ainda na década de 1970. O cacique veio até nosso banco e as identificou, e nós entregamos 100 delas. No ano seguinte, ele retornou com uma cuia cheia e disse o seguinte: 'Vou devolver para vocês conservarem. Se os nossos filhos e netos precisarem, saberão onde procurar'
Juliano Gomes Pádua
A fruta mais brasileira
O cofre de sementes se conecta a outras instalações da Embrapa. A unidade da empresa pública de Planaltina (DF) trabalha há 30 anos para conservar e melhorar uma das frutas mais brasileiras da nossa natureza, o maracujá.
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Quero receberO Brasil é líder global no cultivo e consumo da fruta. Das mais de 500 espécies no mundo, cerca de 200 estão presentes no país —por volta de 100 delas são encontradas apenas por aqui. Além delas, a Embrapa desenvolveu seis novos cultivares de maracujá. Uma delas, a Pérola do Cerrado, foi abraçada por agricultores assentados pela reforma agrária, que passaram a ganhar mais pela venda do quilo da fruta.
O maracujá é uma cultura essencialmente da biodiversidade brasileira. O melhoramento genético oferece espécies superiores, que vão produzir mais, são mais resistentes a pragas e doenças e originam um fruto mais bonito
Fábio Gelape Faleiros, chefe adjunto e pesquisador da Embrapa Cerrados
Soja no Centro-Oeste
Iniciativas como o banco de germoplasma estão na origem da adaptação de espécies agrícolas a regiões até então inóspitas a elas.
Aconteceu com a soja e o trigo, que até os anos 1970 eram cultivas no Sul do país. A migração delas para o Centro-Oeste fez do agronegócio do Brasil uma potência econômica. O mesmo ocorreu com a uva, que foi levada do Sul para o semiárido, no Nordeste. O mesmo processo está ocorrendo com a maçã.
Em defesa do arroz e feijão
A segurança de uma tradicional dupla do prato do brasileiro é feita pela unidade da empresa pública em Santo Antônio de Goiás (GO), a 108 km de Goiânia (GO).
Se acontece algum problema em virtude das mudanças climáticas, já presentes e que vão ficar mais sérias, e a gente perde o nosso arroz e feijão do dia a dia, o que a gente faz?
Juliano Gomes Pádua
O banco genético conserva 20 mil amostras de arroz e 18 mil de feijão. Na unidade goiana, a missão vai além da defesa contra a emergência climática, que afeta temperatura e umidade. Também é manter arroz e feijão a salvo da proliferação de pragas.
A gente está sempre tentando prever coisas que podem acontecer no futuro. Um exemplo é a doença crestamento bacteriano aureolado, já presente em todos os países que fazem fronteira com o Brasil, mas ainda sem relatos por aqui. A gente já fez um programa de melhoramento preventivo, a resistência a essa doença em cultivares. Se ela estourar no Brasil, a gente terá material resistente
Paula Pereira Torda, pesquisadora da Embrapa Arroz e Feijão
Também é função dessa unidade estudar a origem de espécies. Central na mesa brasileira, o feijão carioca é o mais consumido no país. Ele é resultado de uma mutação, surgida nos anos 1970. Não é o mais popular no Rio de Janeiro —por lá, o feijão preto é o mais apreciado—, mas leva esse nome por suas rajas parecerem as da calçada da orla da praia de Copacabana, conta Torda.
Localização estratégica
Criado há dez anos para centralizar as coleções de recursos genéticos, o cofre das germoplasmas está localizado na primeira unidade do Embrapa, constituída em 1973. Foi instalado ali pelas características geográficas de Brasília (DF): no centro do país, está longe do mar, de placas tectônicas e pode receber de forma ágil amostras das outras 165 unidades da empresa e enviar a elas.
A preservação de diversidade genética ganhou força após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, quando os países passaram a ser considerados responsáveis por sua biodiversidade — até então, essas culturas eram consideradas patrimônio da humanidade. Junto disso, veio o alerta para a perda de diversidade em espécies cruciais para alimentação e agricultura.
A função de bancos genômicos como o da Embrapa é estratégica, assim como a conexão entre eles. As espécies guardadas são distribuídas a organizações parceiras pelo mundo. A redundância evita a perda de plantas importantes em caso de catástrofes naturais ou guerras.
Foi o que ocorreu após a guerra civil da Síria ter devastado o banco genético do país, em Aleppo. O evento levou à abertura pela primeira vez do Silo Global de Sementes Svalbard, localizado em uma ilha da Noruega a 1.300 km do Polo Norte, em 2015. Ela enviou amostras para repor as sementes danificadas. Criada em 2008, a instalação é conhecida como "Cofre do Apocalipse" por reunir mais de 1 milhão de espécies e poder funcionar até 200 anos mesmo se a energia for cortada.
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