Como Vitória colocou o Brasil na corrida mundial das máquinas autônomas
Colunista de Tilt e Colaboração para Tilt, de Vitória (ES)
16/10/2024 10h00
De dentro da garagem no campus de Vitória da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), um caminhão sai para dar uma volta. O motorista apenas dá a partida. Não toca no volante, no câmbio nem nos pedais. Continua de braços cruzados quando o veículo faz uma curva e reduz a velocidade até parar diante da faixa de pedestre. Um homem está na calçada.
"Por que paramos?", pergunto. "O caminhão entendeu que aquele cara quer atravessar", diz o operador. O sujeito dá dois passos para longe da faixa, e a máquina se move.
Usado por empresas como Ypê e Vale, o caminhão da Lume Robotics é um dos símbolos de como Vitória se tornou o polo brasileiro dos veículos que dirigem sozinhos. De lá saem empilhadeiras, aeronaves, ônibus e carrinhos elétricos autônomos. E está prestes a decolar: o aguardado e bilionário carro voador da Eve, braço da Embraer, tem DNA capixaba.
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Estudar o cérebro levou aos veículos autônomos
O ponto nevrálgico de todas essas iniciativas é o LCAD (Laboratório de Computação de Alto Desempenho), criado em 2007 por professores do departamento de informática da UFES. De saída, eles definiram que os sistemas autônomos seriam prioridade. Entender o processo de decisão para uma máquina se mover daria a eles força para outra missão.
O principal objetivo do laboratório é entender como o cérebro humano funciona. É ousado. E, como a ciência divide um problema em pequenos pedaços, nós escolhemos a abordagem dos sentidos humanos
Claudine Badue, coordenadora do LCAD
Começaram pela visão. Já em 2008, criaram um serviço de reconhecimento facial, que chegou a ser o mais eficiente do mundo. O próximo desafio veio no ano seguinte: fazer máquinas interagirem com imagens em movimento.
Foi isso que levou o laboratório a transformar carros, que necessitam do uso intensivo da visão, em verdadeiras máquinas inteligentes. Nascia a Iara (Automóvel Robótico, Inteligente e Autônomo, na sigla em inglês).
Hoje, a ideia pode parecer óbvia, mas o Google só criou a divisão de carros autônomos (hoje Waymo) em 2009, mesmo ano em que surgiu a Uber.
Autonomia para a Iara não é só seguir as instruções de Waze ou Google Maps. Sem os olhos do motorista, ela se apoia em sensores para criar um mapa interativo do que há em volta.
"O outro desafio é detectar por meio das câmeras os diversos objetos ao redor, rastrear o caminho que eles estão percorrendo e estimar o caminho futuro para o carro não entrar em rota de colisão com eles", diz Claudine.
Fugidinha para Guarapari e Ana Maria Braga atropelada
Ainda que só rode no campus da UFES, a Iara já se aventurou fora dele. Em 2017, percorreu 74 km para ir a um restaurante em Guarapari, conta Alberto Ferreira de Souza, primeiro coordenador do LCAD.
Eu marquei [no mapa] o lugar onde eu queria que ela parasse, embaixo de uma árvore, apertei o botão 'vai', e ela foi. Quando medimos, ficamos em oitavo lugar em autonomia, logo abaixo da Tesla naquela época. Mas a gente fez aqui, com obra, trânsito muito mais difícil e pedágio. No Norte do mundo, tem EUA, Europa e China, com sistemas avançados. Mas, ao Sul, tem a Iara
Alberto Ferreira de Souza, professor emérito de ciência da computação da UFES
Outro evento canônico da Iara foi transmitido ao vivo na TV Globo. Durante uma demonstração no programa de Ana Maria Braga, a apresentadora mudou o combinado sem aviso. Depois de ser guiada pelo carro, saiu dele repentinamente para mostrá-lo por fora.
Enquanto falava para a câmera, o veículo começou a descer lentamente uma ladeira. Atingiu Ana Maria e Souza.
"Foi falha humana", diz o professor, entre risos. Na pressa para sair do carro, o motorista mudou do modo automático, em que o veículo toma decisões, para o manual. Esqueceu de puxar o freio de mão.
Caminhões sem motorista da Vale e carro voador da Embraer
Atropelar Ana Maria Braga rendeu memes. Já a escapada até Guarapari fez Ministério Público Estadual e Câmara dos Deputados baterem na porta da UFES. O CTB (Código de Trânsito Brasileiro) proíbe circular com o carro sem que o motorista esteja com as duas mãos no volante.
No Brasil, a legislação não permite os autônomos em vias públicas. Mas, em ambientes privados, eles são autorregulados
Ranik Guidolini, CEO e fundador da Lume Robotics
Ele é um dos ex-alunos da UFES que trabalhou na Iara e saiu da academia para empreender. A partir das tecnologias da Iara, criou a Lume, que faturou R$ 5,86 milhões em 2023 criando e vendendo veículos autônomos para empresas de mineração, siderurgia, agroindústria e administração portuária.
Com Vale, Arcelor, Suzano, Portocel, Ypê e Petrobrás entre os clientes atuais, a empresa estima faturar próximo dos R$ 60 milhões em cinco anos.
Essas operações já sofrem com a [falta de] mão de obra. Além disso, tem a exposição de pessoas a ambientes de risco. Na mineração, pode ter desmoronamento. Na siderurgia, os motoristas são expostos a ambientes de elevadas temperaturas. Nossa solução permite a manutenção da operação sem a exposição humana a essas situações de elevado risco
Ranik Guidolini
Outra das filhas da Iara, a motora.ai inverteu a lógica: usa tecnologias de autonomia para analisar o comportamento do motorista. A Embraer, que já trabalhava em uma aeronave autônoma, se interessou. Em 2019, a startup recebeu investimento de R$ 3 milhões do FIP-Aeroespacial, fundo mantido pela empresa de São José dos Campos, BNDES, entre outros.
A partir daí, a motora.ai passou a trabalhar nas arquiteturas da chamadas Easy (Sistema Autônomo da Embraer, na sigla em inglês), a base dos eVtols, aeronaves elétricas que pousam e decolam verticalmente.
Essa tecnologia vai ser capaz no futuro de voar de forma autônoma, sem precisar de um piloto. Em torno de 2026, teremos os primeiros protótipos, principalmente da Embraer. Mais para frente, teremos os primeiros voos
Lauro José Lyrio Júnior, CEO e fundador da motora.ai
A empresa estima faturar R$ 12 milhões em 2024 e espera duplicar esse valor já no ano que vem. São clientes dela Vale, White Martins, Grupo Águia Branca, Embraer e Eve.
Esta última, braço da Embraer para carros voadores, recebeu nesta terça-feira (15) financiamento de R$ 500 milhões do BNDES. Com produção anual prevista de 480 aeronaves, a Eve já tem quase 3 mil cartas de intenção de compra. Se fechar todas, entrarão R$ 14,5 bilhões no caixa.
Dinheiro do petróleo vai para inovação
Para além dos veículos autônomos, o LCAD gera startups de outras áreas, como a AumoGPT, que personaliza a inteligência artificial para atender demandas de empresas.
A conexão entre ideias nascidas na academia mas carentes de dinheiro é feita pelo I2AC (Instituto de Inteligência Computacional Aplicada), que tem conexão com o governo estadual.
Aqui no estado, recursos do gás e petróleo são usados para financiar a inovação e a tecnologia
Bruno Lamas, secretário estadual de ciência, tecnologia, inovação e educação profissional
Ele se refere ao Fundo Soberano, um dos cinco no país e que, no Espírito Santo, recebe royalties do petróleo. Com saldo de quase R$ 1,8 bilhão, já destinou R$ 33,4 milhões a empresas capixabas de fundo tecnológico e sustentável. A outra fonte de recurso público é o Fundo Estadual de Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, que aportou R$ 133 milhões nos últimos cinco anos.
De baixa e média complexidade, a economia capixaba gira em torno da celulose, minério, agricultura e óleo e gás. Iniciativas como a que impulsiona os veículos autônomos é a aposta para diversificar esse quadro, conta Neto Barros, secretário-executivo do Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação.
A fórmula para chegar ao desenvolvimento é investir na sofisticação da economia. Não basta ter petróleo, minério. A gente tem que fazer aqui produtos com alto valor agregado. Foi isso que fez EUA, Alemanha, França, Inglaterra virarem potência, e a China crescer a dois dígitos. O caminho já é conhecido, basta a gente trilhá-lo
Neto Barros, secretário-executivo do Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação