Psicodélicos e zika: potiguares elevam Brasil a polo global de neurociência
Pacientes com depressão geralmente vêem a medicação surtir efeito após ao menos duas semanas de uso. No Rio Grande do Norte, pesquisadores conseguiram cortar esse tempo para alguns dias. Em vez de recorrerem a remédios tradicionais, eles têm testado psicodélicos no tratamento e viraram pioneiros mundiais por isso.
O trabalho com o princípio ativo da ayahuasca, planta usada por povos originários da América do Sul, é o mais vistoso do polo científico potiguar que catapultou o Brasil para a posição de referência global em neurociência.
Mas não é o único: dois centros de pesquisa em Natal e Macaíba, cidade a 34 km da capital, desenvolvem estudos para minimizar o impacto da zika no sistema nervoso de recém-nascidos, sobre os segredos dos sonhos para a formação de memórias e como contornar os efeitos do Parkinson. Quando a pesquisa entra no consultório médico, esses tratamentos de ponta são oferecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
A gente acredita que esses tratamentos são o futuro, e a gente está fazendo tudo isso aqui, no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, uma cidade do Nordeste. É o que tem de mais novo e atual na área
Fernanda Palhano, pesquisadora do Instituto do Cérebro da UFRN
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A depressão e os psicodélicos
Palhano é a engenheira do laboratório de neuroimagem funcional, coordenado pelo físico e neurocientista Dráulio Araújo, professor do ICe-UFRN (Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Nem sempre foi missão do grupo de pesquisa detectar os efeitos terapêuticos da bebida milenar. No começo, o foco era entender o caminho dentro do cérebro de estímulos elétricos, que são a origem das sinapses e dos pensamentos. Isso era feito em pessoas com AVC (acidente vascular cerebral), para detectar o grau de obstrução das vias bloqueadas.
Depois, passou a pesquisar o poder da ayahuasca nessa dinâmica para pessoas saudáveis. A curiosidade nasceu porque a bebida, uma mistura das ervas cipó mariri e chacrona, altera a percepção da consciência e da realidade. Durante essa etapa, ficou claro que a substância tinha efeitos terapêuticos.
A partir daí, o trabalho deixou de ser só pesquisa de neuroimagem. Passou a ser um estudo clínico. A conexão com o hospital foi imediata: facilitava o acesso a equipamentos, como eletroencefalograma e ressonância magnética, e pacientes aptos aos experimentos.
Entre 2014 e 2016, o laboratório foi pioneiro mundial ao comprovar a eficácia da ayahuasca para tratar a depressão resistente. Desde 2020, os pesquisadores usam o DMT (dimetiltriptamina), composto ativo da ayahuasca. Assim, reduzem os efeitos da bebida, que costumam durar cinco horas e incluem náuseas e enjoos. O DMT Inalado derruba esse tempo para 20 minutos, o que cabe dentro da lógica de um tratamento no SUS.
Os pacientes melhoraram já a partir de um dia de dose única de ayahuasca. Se você comprar um antidepressivo na farmácia, vai demorar de duas a três semanas para os efeitos serem percebidos. Existe uma busca grande por medicamentos que atuem rápido, e os psicodélicos se mostram promissores nesse sentido
Fernanda Palhano
Existe uma revolução na biologia e na psiquiatria em torno dos psicodélicos. Hoje, o Brasil ocupa uma posição privilegiada nas publicações sobre psicodélicos, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido
Sidarta Ribeiro, pesquisador e professor da UFRN
O laboratório de neuroimagem é um dos 17 mantidos pelo ICe-UFRN, do qual Sidarta Ribeiro é um dos fundadores e onde coordena o grupo dedicado a sono, sonhos e memórias.
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Quero receberPara além dos psicodélicos, Ribeiro lembra outras pesquisas que fizeram os olhos do mundo se voltarem para Natal. Uma delas descreveu pela primeira vez como os polvos possuem um tipo de sono parecido com o sono REM dos mamíferos. Outra mostrou como uma soneca no ambiente escolar pode dobrar a velocidade de leitura de crianças em idade de alfabetização.
A emergência da zika
O Rio Grande do Norte foi um dos estados mais afetados pela emergência da síndrome congênita do zika, que provocou uma onda de crianças com microcefalia. Voltado a estudar biologia do sistema nervoso, o grupo de pesquisa do professor Eduardo Bouth Sequerra começou, a partir de 2015, a se debruçar sobre a doença. Desde então, acompanha o desenvolvimento de crianças com a condição.
A gente injeta zika numa camundonga grávida e tenta responder perguntas sobre a síndrome para ajudar tanto os pacientes que agora estão completando 9 anos quanto os possíveis casos novos
Eduardo Bouth Sequerra
Tratar crianças com zika e com outras condições neurológicas que podem afetar o desenvolvimento também é a missão do Centro de Saúde Anita Garibaldi, do Instituto Santos Dumont. Localizado em uma estradinha de terra na cidade de Macaíba, ele atende as cinco cidades potiguares do distrito mais pobre e mais populoso do estado.
"Elas são acompanhadas por nós nesses três primeiros anos de vida. São crianças que foram expostas a risco de ter algum atraso no desenvolvimento, algumas já chegam durante a gravidez com a descoberta que tem uma deficiência congênita", explica Lilian Lira Lisboa, gerente do Anita.
Como também é uma unidade de ensino, o centro recebe cerca de 800 estudantes por ano. As linhas de cuidado ambulatoriais compreendem desde casos de deficiência (visual, auditiva, física e intelectual) até de Parkinson, bexiga neurogênica e do transtorno do espectro autista.
Nós estamos no estado do país com os maiores percentuais de pessoas com deficiência em sua população. E muitas das deficiências estão relacionadas ao funcionamento do sistema nervoso central, do cérebro (...) Pesquisar neurociência aqui é muito importante
Reginaldo Freitas Júnior, diretor-geral do Instituto Santos Dumont
Exoesqueleto, Parkinson e paratletas
A ala dedicada à pesquisa do ISD é o Instituto Internacional de Neurociência Edmond e Lily Safra, que fica mais alguns quilômetros adiante na estradinha de terra e no meio de uma área de preservação ambiental. Por lá, o forte é a neuroengenharia, ou seja, o estudo biomédico das funções do sistema nervoso para as restabelecerem em pacientes que as perderam.
Os estudos se dividem em duas grandes áreas. Na neuromodulação, os neurônios são estimulados por sensores externos, bioquímicos ou elétricos.
Um dos experimentos de sucesso no laboratório, conduzido pelo neurocientista Miguel Nicolelis, usa essa técnica. Reverteu sintomas do Parkinson em camundongos e saguis e, por fim, em humanos. Implantado na medula, um eletrodo emitia estímulos elétricos capazes de recuperar movimentos complexos.
A pessoa com Parkinson, no estágio mais avançado, consegue agora ficar autônoma. Ela levanta sozinha, anda sozinha, pode tomar banho sozinha e se alimentar sozinha
Edgard Morya, coordenador de pesquisas do Instituto Santos Dumont
Já na interface cérebro-máquina, a atividade cerebral é transformada em comandos para dispositivos eletrônicos. Alguém com uma lesão medular, por exemplo, pode recorrer a aparelhos que registram a atividade do cérebro, transforma isso em comandos e os transmite para braços ou pernas robóticas, que executem os movimentos dos membros paralisados.
Esse é o segredo por trás dos exoesqueletos. Criado por Nicolelis, um desses equipamentos foi usado por um paraplégico para dar o chute inicial da Copa do Mundo de 2014, realizada no Brasil.
O exoesqueleto é um dos exemplos de como um projeto, desenvolvido para impactar a sociedade, começou com um modelo animal, um rato em 1999, e em 2024 temos um prédio, uma estrutura de 24 mil m² para desenvolver pesquisa com interface cérebro-máquina com impacto para a reabilitação
Edgard Morya
A nova aposta do instituto é melhorar o sistema nervoso por meio do esporte paralímpico. "Agora, podemos desenvolver dispositivos em que o movimento do paratleta é monitorado para informar ao técnico o que ele precisa melhorar", conta Morya.
A atleta Maria Vitória Lima da Silva é uma das pacientes acompanhadas pelo instituto. Quando criança, ela interrompeu o acompanhamento e só voltou após começar a pedalar no ciclismo paralímpico. "É uma emoção, uma felicidade conseguir fazer esportes."
Compromisso com o país
O que faz o Rio Grande do Norte um polo de neurociência no Brasil foi e é o movimento de muitas pessoas de fora do estado e do país de se mudar para Natal e construir projetos institucionais em torno da neurociência, além de uma movimentação endógena de professores e professoras que já atuavam por aqui
Sidarta Ribeiro
Com a criação do ICe-UFRN, Dráulio Araújo levou sua pesquisa da USP de Ribeirão para Natal. Kerstin Schmidt, professora e diretora do instituto também fez esse movimento, mas de Munique, na Alemanha, para o Brasil. Ela transportou seu laboratório no Instituto Max Planck, um dos mais respeitados do mundo, para a cidade potiguar.
Em meados dos 2000, surgiu a possibilidade de fazer isso aqui no Nordeste, em contraponto ao eixo de pesquisa e desenvolvimento que sempre era mais avançado no Sul do país
Kerstin Schmidt
Hoje, ISD e ICe-UFRN colaboram, e o intercâmbio entre alunos e pesquisadores é comum. Nem sempre foi assim.
Sidarta Ribeiro e Miguel Nicolelis faziam parte do mesmo grupo que idealizou o Instituto do Cérebro. Após um desentendimento sobre os rumos das pesquisas e o uso dos recursos, o grupo se separou.
Por um lado, Nicolelis manteve sua empreitada, que recebeu apoio da iniciativa privada e foi deslocada para Macaíba. Os outros professores, por sua vez, continuaram ligados à UFRN.
O ICe-UFRN levou dez anos para ganhar a forma que tem. O prédio de 7 mil m² dentro do campus da universidade só foi inaugurado em 2021.
Agora, separadas, as duas unidades reúnem maior capacidade do que concebia a ideia original. E parecem se complementar, dando conta de uma ponta à outra da neurociência. O professor Eduardo Sequerra explica que é um campo amplo, que estuda do neurônio, presente em todos os animais, ao funcionamento dos circuitos neurais, e compreende as interações do ser humano com dispositivos eletrônicos, como telas e computadores.
Essa integração ensino-pesquisa-extensão e ensino-serviço, eu reconheço hoje como uma das nossas principais fortalezas. É muito importante que aconteça em todas as instituições de ensino do país. A ciência pode cada vez mais se abraçar esse compromisso
Reginaldo Freitas Júnior, diretor-geral do Instituto Santos Dumont