'Fiquei tetraplégico aos 18 e voltei a sentir adrenalina em um jogo online'
A mão de Diego Mateus, 37, nunca segurou uma espada, mas, dentro de um jogo online, seu personagem é um cavaleiro capaz de enfrentar demônios, dragões e liderar um time com centenas de pessoas que escutam e respeitam seus comandos.
Diego é um jogador de alto nível no Tibia, um game de interpretação de personagens online, em um mundo onde druidas, paladinos e magos dividem espaço, cooperam e se enfrentam.
Seu personagem virtual, o Guerreiro Tetra, é movimentado apenas por seus lábios, que seguram um mouse adaptado —Diego tornou-se tetraplégico após um acidente de moto aos 18 anos.
"Dentro do jogo, recuperei aquela emoção, voltei a ser um líder e a sentir adrenalina, como quando jogava bola", conta o streamer de São Ludgero, no sul de Santa Catarina.
Ele vive com a mãe e a namorada e, dificilmente, consegue sair de casa por dificuldade de mobilidade: passa a maior parte do tempo jogando em seu quarto.
O dia em que mudou tudo
O acidente aconteceu em 2005, durante um evento na margem de uma rodovia local. "Um conhecido me convidou para subir na moto dele. Ele empinou, e eu caí", lembra Diego.
"Mexeram em mim quando caí, por um desconhecimento. Não culpo ninguém, queriam me ajudar. Acharam que tinha desfalecido porque tinha batido a cabeça, mas isso pode ter agravado o quadro", diz.
O impacto afetou sua coluna cervical entre as vértebras C3 e C5. Ele acordou 15 dias depois, sem movimentos do pescoço para baixo.
Passei três meses entre a vida e a morte. Parecia que eram séculos.
Diego Mateus
A reabilitação foi longa e dolorosa. Seus pais, agricultores, largaram tudo para cuidar dele. O rapaz responsável pelo acidente fugiu e nunca prestou apoio, diz ele. As dívidas se acumularam, e a família perdeu a casa.
Diego, que chegou a sonhar em ser um jogador de futebol na adolescência, acabou desacreditado pelos médicos de que um dia poderia voltar a andar.
Ele já fez tratamentos e cirurgias —em 2020, com a ajuda de uma vaquinha, foi a Portugal para fazer um tratamento com células-tronco, mas sem resultados. "Voltei de lá, fiquei feliz por ter conseguido, mas não senti diferença."
A vida no Tibia, online e mágica
Dois anos após o acidente, Diego conheceu o jogo que mudaria sua vida. "Meu irmão jogava com um amigo enquanto eu descansava. Comecei a observar e logo passei a jogar com eles", lembra.
Com um mouse adaptado, cedido pelo centro médico onde fazia tratamento, ele mergulhou no universo do RPG online. "O jogo me deu uma rotina, uma comunidade, e a sensação de ser respeitado de novo", diz Diego.
Dentro do Tibia, Diego fundou uma guilda e assumiu o papel de líder.
"Eu era o tank [personagem com maior resistência, que absorve os danos], ia na frente de tudo. Ensinava os outros como jogar. Foi quando senti que tinha recuperado aquele sentimento de liderança que tinha no futebol antes do acidente", afirma.
Eu era apaixonado por esportes, a minha grande paixão era a adrenalina, sempre fui cabeça do time, era o camisa 10 --aquela coisa de líder. Tinha medo de nunca mais ter. Quando eu comecei a ser um líder, um guerreiro, eu conheci de novo aquela adrenalina que eu sentia antes.
Diego Mateus
Dentro do jogo, eu percebia que ele conseguia não pensar tanto mais no que aconteceu com ele, conseguia se divertir. O jogo ajudou a gente a se aproximar muito e, como irmão mais novo, ele sempre foi o meu herói. Ele tinha muito potencial para futebol, jogávamos sempre juntos e, após o acidente, passamos a jogar Tibia juntos. Sou muito grato por termos conhecido esse game.
Fernando Mateus, 32, irmão de Diego
Laços de amizade e igualdade
O jogo também deu a Diego novos amigos. O programador Fernando Duarte, 32, conheceu Diego assistindo às suas lives e se tornou amigo do jovem dentro do jogo.
"Ele me ajudava bastante, já que era de nível alto. Eu estava voltando a jogar e reaprendendo as novas mecânicas, estava afastado do jogo havia 10 anos. Fiquei muito impressionado, porque ele joga muito bem, aliás melhor do que muitos em condição plena de movimentos", diz Duarte.
Quem jogava com ele dificilmente percebia que tinha qualquer limitação por trás do personagem. Chegava a ser irritante que, mesmo na situação dele, já tinha passado todo mundo no level. Sempre olhei para ele como um amigo e com total indiferença quanto à sua tetraplegia.
Henrique Philippi, 32, programador, que apresentou o game a Diego e ao irmão dele
Influenciando pessoas e renda extra
Hoje, Diego vive de um salário mínimo da aposentadoria por invalidez, mas a vida no game trouxe uma renda extra, que varia de R$ 1.000 a R$ 2.500, obtida com lives, venda de itens virtuais do game e patrocínios.
O impacto de Diego vai além do jogo. "Recebi uma carta de um jogador que tinha perdido o emprego. Ele disse que minha live o ajudou a se reerguer," conta.
Com cerca de cinco horas de transmissão diária, Diego equilibra o trabalho com os cuidados médicos. "Ficar muito tempo sentado pode causar escaras [lesões na pele] que podem demorar anos para curar, então tenho de ter um limite", conta.
Enquanto isso, ele continua a lutar, dentro e fora do jogo. "O Tibia me deu uma segunda chance. Quero uma casa adaptada e um carro adaptado. Faz anos que não vou à praia ou ao cinema", diz Diego.
Entenda a tetraplegia
A gravidade da lesão depende de quão "alta" ela é. Quanto mais acima na coluna, maiores os riscos de comprometimento das funções neurológicas, explica Wuilker Knoner Campos, doutor em neurociências e presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia.
Nesse caso específico, a chance de ele voltar a andar é muito rara mesmo, porque se passaram muitos anos da lesão. E, normalmente, quando o paciente machuca, a melhor resposta neurológica --fazendo fisioterapia, tomando medicação, indo ao médico e fazendo um tratamento cirúrgico correto na época da fratura-- ocorre em 12 meses.
Wuilker Knoner Campos
Jogo e interação
O jogo pode ser uma uma oportunidade de sair de uma situação de dependência plena por meio do lúdico, diz Lucas Neiva-Silva, psicólogo e professor de psicologia da Universidade Federal do Rio Grande.
Ele se torna um grande líder de um time inteiro, assumindo a capacidade de sair de uma condição passiva para se tornar extremamente ativo, desenvolvendo estratégias e traçando caminhos. A pessoa se sente plena, apesar das limitações físicas. Vejo isso como algo muito positivo para a saúde mental.
Lucas Neiva-Silva
"No jogo ele manifesta a sua sensação de estar no mundo, de ser reconhecido, estar em uma rede de amizades. Para pessoas que não têm a possibilidade de se movimentar, estar no jogo é ser igual a todo mundo, é estar livre desse preconceito visual", afirma a antropóloga social Vanessa Andrade Pereira, coordenadora do Cegi (Centro de Estudo em Games e Internet). Ela estudou em sua tese de doutorado a relação de jovens dentro do game Tibia e como os laços se fortalecem no game.