Decisão da Meta pressiona STF a votar mudanças no Marco Civil da internet
A decisão da Meta de encerrar a checagem de fatos em suas plataformas nos Estados Unidos e o risco de um aumento na propagação de informações falsas pressionam o STF (Supremo Tribunal Federal) a votar este ano mudanças para aprimorar o Marco Civil da internet.
O que aconteceu
Marco Civil da Internet é de 2014 e precisa ser atualizado, diz um dos autores da proposta. "A lei não foi feita para ser o início nem o fim da regulação da internet no Brasil", diz Carlos Affonso Souza, que também é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) e colunista do UOL.
Mudanças no artigo 19 do Marco Civil estão no centro do debate e da votação de ministros do STF. De acordo com a legislação, o artigo determina que o provedor "somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após a ordem judicial específica, não tomar providências" para tornar o conteúdo apontado como ilícito indisponível.
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STF julga a constitucionalidade do artigo e a possibilidade de as plataformas serem responsabilizadas por conteúdos de usuários. O julgamento, porém, foi interrompido no dia 18 de dezembro após o pedido de vista do ministro André Mendonça. O caso será retomado após o fim do recesso do Judiciário, em fevereiro.
Ministros têm entendimento distintos sobre o artigo. Dias Toffofi considera inconstitucional a exigência de uma ordem judicial prévia de exclusão de conteúdo para a responsabilização das empresas por danos causados pela divulgação e disseminação de conteúdos ilícitos. Já o ministro Luiz Fux considera que o modelo atual dá imunidade às plataformas. Para ele, a responsabilização deve se basear em um artigo da lei que prevê a retirada do conteúdo com uma simples notificação.
Diferentemente dos relatores, o ministro Luís Roberto Barroso entendeu que o artigo 19 é parcialmente inconstitucional. Isso porque, segundo ele, não pode haver responsabilidade das redes por conteúdos de terceiros. Com isso, ele propôs dois outros modelos de responsabilização às plataformas (ver mais informações abaixo).
Marco Civil não avançou na criação de estímulos para que as plataformas moderassem conteúdos de forma transparente, avalia Souza. "Ao mesmo tempo, as plataformas não deram a visibilidade adequada sobre como funcionam as práticas de moderação. Não se sabe quem modera, o que é automatizado, o que é revisão humana. Moderação virou um assunto debatido nas sombras", afirmou.
Avanços travados no Congresso
Eventual avanço deve se dar pelo STF, já que o PL das fake news está parado no Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), interrompeu a tramitação do PL e criou um grupo de trabalho para analisar o projeto que pretende regular as redes sociais e combater a propagação de informações falsas. "Algo do antigo PL pode retornar ao debate, mas me parece muito difícil que o Congresso aprove alguma coisa parecida com o que foi proposto no PL 2630/2020", diz Souza.
"Irremediavelmente travado pelas dificuldades conhecidas", afirmou ao UOL o senado Alessandro Vieira (MDE-SE), autor do PL. Ele defende a urgência na responsabilização das plataformas pelo conteúdo que publicam. Para o senador, a decisão da Meta não só não deve impactar no sentido de avançar a tramitação do PL como será "um reforço para narrativas contra qualquer regulamentação".
Supremo pode "furar bloqueio do Congresso", avalia Souza. Para o autor do Marco Civil da internet, alguns deveres que o STF pode impor às plataformas apareciam no PL das fake news. Contudo, na avaliação do especialista, quanto mais a Corte avançar na regulação, mais chances de os parlamentares avaliarem como "mais um caso em que o Supremo teria ultrapassado limites".
Os tempos mudaram e o Marco Civil da Internet precisa ser atualizado. O ideal seria que essa atualização tivesse sido feita pelo Congresso, mas não tendo acontecido, o Supremo tem agora a faca e o queijo na mão.
Carlos Affonso Souza, um dos autores do Marco Civil da internet
Responsabilização das plataformas
Artigo 19 tem funcionado bem desde o início da vigência do Marco Civil, na avaliação do presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e IA da OAB-SP. Para Solano Camargo, o Brasil tem um bom arcabouço jurídico, mas que pode ser aperfeiçoado. Na avaliação de Souza, uma eventual inconstitucionalidade do artigo 19 seria prejudicial para o país.
Voto de Barroso é uma espécie de "caminho do meio", segundo Souza. Para o ministro, a primeira forma de responsabilização se refere a conteúdos específicos, e a notificação extrajudicial é a regra para crimes em geral. Nesses casos, as plataformas podem ser responsabilizadas por não retirar conteúdos após serem notificadas.
Segunda responsabilização proposta por Barroso sugere o "dever do cuidado". Nesse caso, as plataformas seriam obrigadas a empenhar todos os esforços para prevenir e mitigar riscos criados ou agravados pelas redes sociais. "A pergunta que fica é para onde vai o STF após o anúncio de [Mark] Zuckerberg?"
Decisão da Meta pode gerar mais judicialização, caso seja adotada no Brasil. "Já existem no país uma série de situações em que as pessoas judicializam casos contra as plataformas. A tendência é judicializar mais ainda", diz Souza. O senador Alessandro Vieira também acredita no aumento de casos na Justiça. "Teremos uma enxurrada de decisões judiciais baseadas em interpretação extensiva, pois não temos legislação específica adequada", disse.
Responsabilização das plataformas também pode incluir multas e bloqueios. Souza lembra que o X, por exemplo, foi multado pelo não cumprimento de ordens judiciais envolvendo remoção de conteúdo. "Em última instância, existem os bloqueios, mas o X é muito menor do que as plataformas da Meta no Brasil com um número muito relevante de atividades empresariais envolvidas", afirma.
Presidente da Comissão da OAB defende ampliar as possibilidades do artigo 21. O artigo se refere a casos de responsabilização para plataformas que disponibilizem ou divulguem conteúdos gerados por terceiros contendo cenas de nudez ou de atos sexuais sem autorização. "O artigo poderia ser ampliado e passar a contemplar questões de saúde, cyberbullying, denúncias e situações objetivas que não dariam margem à avaliação política", diz Camargo.
Brasil tem leis que dão conta de conter a disseminação de informações falsas. A questão é pensar se precisamos aprimorar algumas dessas leis. É isso que o Supremo está fazendo hoje, olhando para a questão de aumentar o rigor do regime de responsabilidade civil para plataformas digitais.
Carlos Affonso Souza, um dos autores do Marco Civil da internet
Impactos para 2026
Ainda que a decisão da Meta não tenha sido adotada no Brasil até o momento, especialistas avaliam os impactos disso para o processo eleitoral de 2026. Souza alerta que as mudanças na disseminação e divulgação de conteúdo por meio das plataformas digitais não ocorrerão instantaneamente. Segundo ele, a transformação será gradual — e começará nesse ano.
Moderação por parte de usuários gera apreensão. O autor do Marco Civil da Internet questiona a realização das "notas da comunidade" durante o período eleitoral. "Podemos imaginar o quão quente será o debate com os próprios usuários procurando explicar, retrucar aquilo que é dito nas mensagens ", diz. "Precisamos questionar se o TSE vai criar regras específicas para 2026 diante dessas mudanças".
Brasil não está sozinho nesse debate. "Países pelo mundo afora cada vez mais compreendem o papel político das redes sociais e aperfeiçoam suas estruturas jurídicas e políticas para lidar com essa realidade", diz Souza. "Me parece o momento ideal para que se faça esse aperfeiçoamento." Camargo lembra que na União Europeia existem abordagens híbrida de autorregulamentação — que obrigam as plataformas a combaterem proativamente conteúdos ilegais.
Ação da Justiça foi decisiva para combater informações falsas nas eleições presidenciais de 2022 e nas municipais de 2024, lembra Camargo, da OAB. Em 2022, a internet foi invadida por comentários falsos sobre fraudes nas urnas, desmentidas pela Justiça Eleitoral e por agências de checagem parceiras do TSE. No ano passado, a Justiça Eleitoral suspendeu a conta do ex-coach Pablo Marçal (PRTB) após a divulgação de um laudo falso —que acusava falsamente o adversário Guilherme Boulos (PSOL) de uso de drogas.
Não se pode cair numa armadilha de dizer que o Brasil está atrasado nesse debate. Ao contrário, o Brasil tem legislação pioneira criada em 2014, e o Supremo Tribunal Federal tem sido ativo no olhar sobre esses temas.
Carlos Affonso Souza, um dos autores do Marco Civil da internet