'Vendi meu olho': por dinheiro, paulistanos permitem ter a íris escaneada
Resumo da notícia
Paulistanos estão permitindo o escaneamento de suas íris em troca de criptomoeda pela Tools for Humanity, cofundada por Sam Altman, CEO da OpenIA.
O projeto visa criar um sistema de verificação humana usando dados biométricos únicos, mas sua real vantagem financeira para a empresa ainda é incerta.
A prática levanta preocupações de privacidade e segurança, sendo investigada pela ANPD no Brasil por tratar dados biométricos sensíveis.
Baixe um aplicativo, vá ao endereço informado e aguarde 24 horas para receber seu dinheiro. Parece simples, se o processo não envolvesse escanear a íris do seu olho para que a transação seja concluída.
Não é enredo de filme de ficção científica, mas uma proposta real que está sendo feita aos brasileiros pela Tools for Humanity, cofundada por Sam Altman, CEO da OpenIA, a empresa do ChatGPT.
Após coletar a imagem da sua íris, a empresa paga em média 48 worldcoin, um criptoativo próprio que pode ser convertido em reais e depois sacado.
O objetivo? Segundo a empresa, oferecer às pessoas uma forma de verificação de humanidade —para provarem que são reais e não robôs. Isso porque a íris, assim como a impressão digital, é única.
Mas o que a Tools for Humanity ganha exatamente com isso ainda não está claro —nem mesmo para quem já fez o procedimento e recebeu dinheiro para ter a íris escaneada.
E não são poucas pessoas: mais de 22 milhões já baixaram o app da empresa (WorldApp) no mundo, sendo um milhão apenas no Brasil. E 10 milhões fizeram a verificação de íris —400 mil no país.
Tilt esteve em dois dos endereços que fazem o escaneamento da íris em São Paulo. Lá, a reportagem encontrou pessoas que tinham poucas informações sobre o projeto e muita vontade (ou necessidade) de ganhar dinheiro.
'É uma empresa de criptomoeda'
Na zona sul de São Paulo, em um espaço após passar por uma pequena porta de alumínio, funciona uma das unidades de scanner.
Não havia fila, mas um movimento considerável pelo horário —eram 8h30 de uma segunda e a maioria do comércio em volta ainda estava fechada.
"É World alguma coisa, não sei direito. Melhor a senhora perguntar para ela, que trabalha aqui", respondeu uma mulher que aguardava para escanear a íris, quando questionada sobre o que funcionava no local.
Uma das funcionárias explicou que era uma empresa de criptomoeda. "Você baixa o aplicativo, faz o agendamento e escaneia sua íris." Indagada sobre qual o objetivo daquilo, ela respondeu que eles pagavam. "Mas não sei quanto ganha, não, depende do dia."
Uma outra unidade funciona a menos de dois quilômetros dali. Ao todo, são 38 pontos de verificação de humanidade na cidade de São Paulo —a única do Brasil com o projeto.
Por volta das 9 horas, uma fila de 15 pessoas se formava no local. "Perigoso é, mas se for para ter medo...", ponderou um jovem na fila, sem completar a frase. "Se for perigoso está todo mundo ferrado, tanta gente já fez", completou uma senhora.
Há relatos de quem sacou até R$ 700. Só que o dinheiro não vem de uma vez. "Minha irmã veio e já é o terceiro mês que ela ganhou, porque vai tirando [o dinheiro] aos poucos", afirmou um rapaz.
O que é a verificação de humanidade
A verificação de humanidade é uma forma de pessoas provarem que são reais. E a Tools for Humanity defende que, muito em breve, precisaremos "provar que somos nós mesmos" na internet, devido aos avanços da inteligência artificial.
Depois de baixar o aplicativo e agendar um horário, a pessoa vai até um dos pontos de verificação. Lá, é orientada a conectar o celular na rede de Wi-fi própria da empresa antes de fazer o escaneamento.
O Orb, uma esfera digital com uma câmera de altíssima definição, tira três fotos: uma do rosto e uma de cada olho.
"É ali que acontece a tal análise do dado biométrico que valida que esse humano é único, que esse humano nunca se verificou antes", explica Rodrigo Tozzi, chefe de operações no Brasil da Tools For Humanity.
Essas informações são processadas na Orb, enviadas para o telefone celular de cada usuário e permanentemente apagadas do dispositivo. Quando esse processo está concluído, o World ID é ativo.
Rodrigo Tozzi
Esse World ID seria como um documento para ser usado em sites e serviços digitais —uma evolução dos captchas.
Imagine, por exemplo, uma entrevista de emprego virtual. O World ID poderia ser usado, segundo a empresa, para certificar para o recrutador que o entrevistado é uma pessoa e que ela não está usando inteligência artificial para provar proficiência em idiomas ou alguma outra habilidade que não tem.
Segundo a Tools for Humanity, a rentabilidade do projeto é esperada no futuro, quando a credencial de prova de humanidade poderá ser oferecida, por exemplo, a redes sociais, bancos ou até em atividades como jogos online.
Atualmente, segundo Tozzi, poucas empresas usam essa integração: o ecossistema "ainda está sendo criado". Mas, para ele, esse é um problema urgente.
Conforme a IA avança, os bots [robôs] ficam mais sofisticados e cada vez mais vão imitar o comportamento humano na rede.
Rodrigo Tozzi
'Vendi meu olho'
No TikTok, a empreendedora e criadora de conteúdo Caroline Vieira, 22, fez um vídeo se arrumando para ir "vender o olho" —como ela chamou o escaneamento da íris— com uma amiga.
Ela ficou sabendo da "oportunidade" por meio da internet e resolveu testar, já que as duas estão abrindo uma marca e poderiam usar o dinheiro para comprar materiais.
Quando a gente chegou, a rua inteira tinha sinal. Só que, quando entramos no espaço em que eles estavam fazendo a verificação, não tinha sinal. A primeira coisa que eles falavam era para conectar direto na rede Wi-fi deles.
Caroline Vieira
Segundo Tozzi, isso acontece em todas as unidades por questão técnica. É preciso boa conexão para que os dados sejam transferidos, e não dá para garantir que todos terão esse acesso.
Caroline e a amiga esperavam receber cerca de R$ 300 cada uma. Mas, 24 horas depois, conseguiram sacar R$ 196 cada. Isso porque parte das worldcoins são realmente entregues um dia depois, mas o resto é fracionado ao longo dos 11 meses seguintes.
"Quando você mostra o QRCode para a máquina, mostra no aplicativo como se os dados que a máquina recolheu estivessem indo para dentro do celular. Eles frisam que não ficam com nenhum dado nosso", diz ela.
Sempre tive medo, tenho muito medo dessas coisas. É algo muito futurístico. Quando você chega, depois de todos os vídeos que eles mostram, parece ser algo bem seguro, mas você chega lá e não tem sinal... Toda a experiência me deixou receosa.
Caroline Vieira
Tozzi diz que a World não está comprando dados e nem dando dinheiro para as pessoas em troca do escaneamento.
"O que é oferecido é uma participação no projeto através de tokens. E os usuários conseguem, no mercado, transacionar ou vender esses tokens e transformar em moeda local."
Segundo ele, o valor oferecido é o mesmo para todos os países em que a empresa opera. "Pensa no World como se fosse a internet. Não tem um dono. E a ideia é que seja realmente uma propriedade descentralizada, que os próprios usuários sejam os donos."
A Tools for Humanity diz que as pessoas que vão aos pontos de verificação são informadas sobre o projeto, é exibido um vídeo didático e os parceiros dos pontos de verificação são treinados para que as informações estejam claras.
Setor encara com desconfiança
Especialistas da área de segurança e privacidade veem com preocupação iniciativas do tipo.
"Ainda que seja uma questão latente, de ampliar a segurança e confiança no ambiente online, a forma de verificação de humanidade proposta pela Tools for Humanity nos parece precipitada", diz Nathan Paschoalini, pesquisador da área de governança e regulação da Data Privacy Brasil.
Segundo Paschoalini, as preocupações surgem especialmente pelo uso de dados pessoais sensíveis e pela compensação financeira para as pessoas que autorizam a coleta da íris.
[O pagamento] Pode prejudicar uma tomada de decisão livre, informada e inequívoca --características que qualificam o consentimento do titular de dados como válido na Lei Geral de Proteção de Dados.
Nathan Paschoalini
O especialista também entende que não há uma forma imediata de certificar que os dados não serão armazenados pela empresa.
"Uma maneira de buscar minimizar tais incertezas poderia ser pela prática de transparência ativa e prestação de contas por parte da Tools for Humanity."
O que diz o governo
A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, disse ter instaurado processo de fiscalização "para investigar o tratamento de dados biométricos de usuários no contexto do projeto World ID".
A ANPD afirmou, ainda, que pediu esclarecimentos à Tools for Humanity sobre oito pontos, entre eles o contexto em que ocorrem as atividades e a transparência do tratamento de dados pessoais.
A Tools for Humanity encaminhou os documentos e as informações requeridas. Atualmente, o processo encontra-se em fase de análise da documentação apresentada.
ANPD, em nota
A ANPD lembrou que "dados biométricos, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar constituem dados pessoais sensíveis".
A reportagem também questionou a Prefeitura de São Paulo sobre a legalidade dos espaços de verificação de humanidade.
A administração municipal respondeu que "equipes farão a vistoria nos endereços citados pela reportagem e, se constatados imóveis comerciais em funcionamento sem licença, um termo de orientação será emitido para que o proprietário/locatário possa realizar o procedimento legal e regularizar a atividade, junto aos órgãos municipais".
32 comentários
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Braz Augusto de Campos
Depois pergunta porque Brasileiro não entendeu sobre a norma do Pix, A prova esta ai,pagou tem fila , nem que peça para vender alma para o diabo, havera fila para receber uma merrequinha. Por isto temos os politicos enganadores, povão acredita em tudo.
Marcelo Carvalheiro Brinholli
Nossas digitais já estão espalhadas por bancos de dados de diversas farmácias e médicos. E ninguém sabe com que segurança elas são armazenadas. Isto sem falar de nome, CPF, endereço e telefone que são acessíveis a qualquer criminoso. A questão importante não é provar que somos humanos, mas que somos quem dizemos ser. É isso que evita crimes. E que a tecnologia ainda não resolveu.
Felipe Sinoti de Lucca
Qual olho? Kkkk a quinta série não perdoa…