'Fiquei presa no prédio por recusar biometria facial': entenda seu direito

A pesquisadora Gisele Brito passou um perrengue. O sistema de controle de entrada de seu condomínio mudou de tag (dispositivo eletrônico que libera acesso a áreas comuns) para biometria facial. A troca ocorreu enquanto ela ainda tinha dúvidas sobre o processo: queria entender onde os dados ficariam armazenados e sob qual sistema de segurança.

Sem receber prontamente uma resposta, acabou ficando presa no prédio, por não conseguir liberar o portão, numa tarde em que tinha um compromisso. O condomínio acabou liberando o uso de tag para quem não quisesse aderir ao novo sistema.

O caso é emblemático por colocar em discussão, em meio à migração tecnológica, se as pessoas devem ou não ceder o uso de uma informação tão importante quanto a imagem do próprio rosto, considerado um dado sensível. Existe ainda um "limbo jurídico" que deixa questões em aberto.

O que aconteceu

Uso de biometria facial no controle de acesso começou a ser massificada nos últimos três anos. Segundo Omar Anauete, presidente da AABIC (Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo), a tecnologia ficou melhor e mais barata com o uso de inteligência artificial. "Reconhecimento passou da análise de pontos do rosto para uso de IA, que o tornou mais preciso", diz Giandrei Funari, analista de produto da Intelbras.

Pandemia impulsionou o uso da tecnologia, sobretudo por uma questão sanitária. A facilidade de acessar um prédio sem usar das mãos para evitar infecção ajudou na adoção do sistema, segundo Funaru.

Outras vantagens da biometria facial são a rapidez no cadastro e na liberação de pessoas. A curva de aprendizado é curta: basta enquadrar o rosto na câmera e esperar a liberação. Além disso, evita que terceiros entrem no seu lugar —no caso de uma tag, um condômino pode perdê-la e uma pessoa não autorizada pode usá-la para entrar no local.

Ao mesmo tempo, a biometria facial é uma informação definida como sensível pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Ela permite a identificação única da pessoa, e o vazamento é considerado grave, pois se trata de uma informação imutável.

Uso da biometria não deveria ser banal. Especialistas argumentam que, por ser uma informação muito sensível, deveria ser usada quando exigido por lei, clara necessidade de segurança e dupla autenticação - como ocorre no setor bancário.

Continua após a publicidade

O uso difundido de biometria facial pode facilitar uma série de golpes. Sem contar que geralmente os sistemas de reconhecimento facial não são treinados com a diversidade brasileira. Então, podem ter dificuldade em reconhecer pessoas de pele escura, de origem asiática ou muito maquiadas
Lucas Marcon, advogado do programa de direitos digitais do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor)

Golpistas podem usar imagens vazadas para acessar a conta gov.br ou mesmo abrir contas bancárias no nome da vítima, diz Marcon. Em Tilt, já falamos de pelo menos dois tipos de golpes envolvendo imagens roubadas de rostos. Em um deles, ladrões usavam boneco com rosto para abrir contas, no outro, para confirmar uma entrega, pediam uma foto (na verdade, era a etapa final de um pedido de empréstimo).

Pode exigir biometria? Como recusar?

Interpretação da LGPD é usada como justificativa para uso de biometria facial como controle de acesso. Trecho do 11º artigo menciona que não é necessário "consentimento do titular" quando for indispensável para "garantia de prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos".

De forma resumida, os condomínios argumentam que é uma questão de segurança. A implementação é igualmente facilitada, diz Omar, da AABIC, pois basta uma assembleia com mais da metade dos presentes para aprová-la. Após isso, é necessário ter uma política de privacidade, explicando como dados vão ser usados, armazenados, protegidos e quem será o responsável caso ocorra um problema.

"Essa é uma interpretação polêmica", diz Rafael Zanatta, diretor do Data Privacy Brasil. De um lado, há quem considere ceder a biometria facial "invasivo" e que existem outras formas de se expor menos a riscos de vazamento de dados. Por outro, há quem acredite que o direito à oposição individual não pode se opor aos interesses coletivos por uma questão de segurança.

Continua após a publicidade

Existe um tensionamento, uma bola dividida de interpretações. O problema é que não tem nenhuma decisão nesse sentido em instâncias superiores, como o Tribunal de Justiça ou o Supremo, pois é um assunto relativamente novo
Rafael Zanatta

As pessoas têm o direito de saber detalhes sobre quem vai administrar as informações, se há uso de criptografia, se os dados serão usados para outros fins, que não só a liberação de acesso. No entanto, na judicialização, em caso de recusa de cessão de biometria facial, não há certeza se quem se opuser vai ganhar.

O fato é que não há, até o momento, nenhum incidente de segurança envolvendo vazamento de informações de sistemas de condomínio. "Se começar a ter incidentes de segurança, e a liberdade das pessoas for ameaçada, pode ser que os moradores de um prédio, por exemplo, consigam reverter o uso da tecnologia", explica Zanatta.

Sistemas que incluem biometria facial contam com alternativas de acesso. De acordo com Giandrei, da Intelbras, boa parte das soluções vêm com tag e até acesso via código numérico, para quem não quiser usar biometria ou tenha algum problema com a alternativa.

O que confere segurança é que os sistemas são offline (não são ligados à nuvem) e as informações são criptografadas, diz Giandrei. Um outro elemento que torna o sistema mais seguro é o reconhecimento é de um hash, uma representação única do rosto da pessoa, uma espécie de impressão digital do dado, não da foto completa. O sistema de IA cria esse dado a partir da foto (considerando padrões e características do rosto, como distância entre olhos, nariz, etc) e faz a checagem toda vez que a pessoa entra. A partir do hash, que é um dado alfanumérico, não é possível reconstruir a imagem de ninguém.

Nunca teve informações vazadas e até entendemos a desconfiança de algumas pessoas. Porém, isso é comum com as novas tecnologias. Esse receio [do uso de biometria facial] geralmente vem de quem não está acostumado. É uma questão geracional
Giandrei Funari, analista de produto da Intelbras

Continua após a publicidade

Marcon, do Idec, afirma que a falta de regramento dificulta que as pessoas exerçam seus direitos e que o ideal seria não precisarmos ceder dado tão sensível para entrar em um local. Zanatta, do Data Privacy Brasil, diz que na Europa, por exemplo, é necessário o consentimento individual, nesse exemplo de condomínio. Quem não se sente à vontade tem direito de usar forma alternativa de acesso.

Consultada, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) diz que está trabalhando em um regramento sobre o tema e que pretende adotar um instrumento regulatório até dezembro de 2025. A autoridade diz que deve realizar uma consulta sobre o tema com perguntas até o fim do mês de abril.

Informações pessoais: quando a segurança vira invasão de privacidade

Condomínios podem exigir informações por questão de segurança, mas não é bagunça. É comum pedirem nome, RG, CPF ou foto. A questão é que esses dados só poderão ser usados para este fim (permitir a entrada). Se for usado para qualquer fim fora o estabelecido (como propaganda, por exemplo), há infração da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

Outra questão são as farmácias que pedem CPF para o cliente. Elas podem pedir, no caso, de comercialização de remédios controlados, fora isso, a cessão da informação é discutível. Reportagem do UOL Prime revelou que empresas criam perfil de saúde do cliente a partir da identificação para posteriormente monetizar a informação.

45 comentários

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.


Marcelo Martins

O reconhecimento facial nas portarias é um elemento importantíssimo para a segurança dos condomínios. O problema é a segurança dessas imagens junto às empresas administradoras desses condomínios. Hoje em dia, qualquer um, por míseros R$ 200, vende informações que deveriam ser sigilosas. Não há controle, as pessoas hoje em dia se vendem muito facilmente. 

Denunciar

Carlos Eduardo Schmalz Gubernatte

Mimimi pra todo lado , faz lá o reconhecimento…. Ou tá sendo procurada ???? Que saco 

Denunciar

Anderson Pereira

Não querem fazer o cadastro facial no condomínio mas expõem tudo, principalmente fotos, nas redes sociais. #partiuibirapuera 

Denunciar