As tais fotografias

A conquista do espaço marcou um momento dramático da vida de Caetano Veloso e virou um clássico da MPB

Matheus Pichonelli e Fabiana Uchinaka De Tilt, em São Paulo

Frank Borman, Jim Lovell e William Anders, os astronautas do histórico voo espacial Apollo 8, talvez não saibam, mas são responsáveis diretos por uma das mais belas composições da música brasileira. Em 21 dezembro de 1968, com a ajuda do foguete Saturno V SA-503, eles realizaram a primeira viagem em torno da Lua, que durou seis dias e não levou o homem a pisar lá, mas atingiu a órbita do satélite. Nunca antes uma nave tripulada havia ido tão longe e retornado.

As imagens feitas do espaço por Anders, que mostram pela primeira vez a profusão de cores em meio ao breu, deslumbraram o mundo. O astronauta costuma dizer: "Viemos explorar a Lua e descobrimos a Terra". Até então, nunca tínhamos visto o nosso planeta do lado de lá.

Enquanto o trio fazia a alegria do Natal dos norte-americanos e dava voltas e voltas em torno do astro (foram dez no total), por aqui Gilberto Gil e Caetano Veloso eram presos. No amanhecer do dia 27 de dezembro, 14 dias depois que entrou em vigor o AI-5, o mais violento instrumento de repressão da ditadura militar, eles foram levados pela via Dutra num camburão. Logo depois, às 12h51 (em Brasília), a cápsula pousava no oceano Pacifico.

Então, Caetano, quando se encontrava preso na cela de uma cadeia, via as tais fotografias tiradas a distância pelos errantes navegantes. "Lá não estavas nua, e sim, coberta de nuvens". Assim começa a música "Terra".

Quem jamais te esqueceria?

A história do encontro com as fotografias, publicadas vinte dias depois na revista "Manchete", é contada por ele em seu livro de ensaios e memórias "Verdade Tropical", de 1997. Caetano estava numa cela do Quartel dos Para-Quedistas do Exército, em Realengo (RJ), quando ganhou um exemplar com "todas as fotos da fantástica viagem à Lua", conforme dizia a capa com a imagem dos astronautas perfilados sob o título: "Eles conquistaram a Lua para a Humanidade".

"Eram as primeiras fotos em que se via o globo inteiro, o que provocava forte emoção, pois confirmava o que só tínhamos chegado a saber por dedução e só víamos em representações abstratas. E eu considerava a ironia da minha situação: preso numa cela mínima, admirava as imagens do planeta inteiro, visto do amplo espaço", escreveu Caetano, três décadas depois.

A revista chegou por meio de Dedé, sua primeira mulher, com a permissão de um sargento baiano —que seria delatado e preso. "Ele dizia assim: eu fico com muita pena de ver. Sua mulher vem aqui, você fica dentro e ela fica fora, e vocês não podem ficar sozinhos. Quando ela vier e eu estiver aqui, vou abrir e fico tomando conta lá fora. Juro que não entro", lembra o cantor numa cena emblemática do documentário "Narciso em Férias", de Ricardo Calil e Renato Terra.

Esse sargento, segundo ele "preto, já maduro e baiano, que dizia: não tive educação, vou ser para sempre sargento", abria a porta e vigiava se o oficial do dia estivesse chegando. "Aí eu transava com Dedé ali, mesmo com aquela grade aberta. Qualquer pessoa que chegasse ali veria, mas a gente tinha confiança no sargento. Tenho uma pena enorme de não ter gravado o nome dele. Esse cara foi um anjo, uma divindade na nossa vida."

Quando lembra este momento da sua vida, Caetano chora.

"Eu transava com Dedé. E Dedé trouxe a manchete que tinha as primeiras fotos da Terra, tiradas de fora, do espaço sideral".

Bem nessa hora, Terra mostra um exemplar garimpado da revista a Caetano.

"Esse sargento foi preso... Não vou falar agora, não. Vou parar um pouquinho", interrompe, antes de começar a cantar "Hey Jude", dos Beatles.

A surpresa

A busca pelo exemplar histórico renderia um filme à parte. Calil buscou pessoalmente a edição. Primeiro, com um amigo colecionador de revistas antigas, o jornalista Alberto Villas, que lhe emprestou alguns exemplares. Depois, vasculhou a internet. "Eu desconfiava que não era nenhuma daquelas revistas. Havia uma dúvida se era a revista 'Manchete' ou a 'Fatos e Fotos'", conta o diretor a Tilt.

Foi só no dia da entrevista, no fim da tarde, que a sorte virou. Ele chegou ao Rio e passou num sebo do centro da cidade, onde conseguiu comprar uma "Manchete" e uma "Fatos e Fotos" que tratavam do feito histórico. "A legenda da foto da 'Manchete' tinha aquela frase: 'a terra é parcialmente coberta de nuvens'. Me pareceu que, como havia uma referência a nuvens na letra da canção, seria aquele exemplar", diz.

Ficou combinado entre os diretores que eles não mostrariam a revista com antecedência a Caetano, só no momento em que ele citasse a história —e era muito provável que citasse. "E foi realmente uma surpresa", descreve Calil. Era exatamente aquela edição que ele não via há mais de 50 anos (veja no vídeo acima).

"Acho que grande parte da emoção do Caetano nesse momento foi esse reencontro com um objeto que trazia lembranças muito específicas da história da Dedé e do sargento que facilitou os encontros amorosos deles."

Apesar do reencontro, a revista ainda está com Calil. "Em algum momento tenho que entregar ao Caetano. A gente não se encontra faz um tempo, também por causa da pandemia. Mas assim que puder vou deixar esse exemplar nas mãos dele."

  • Fotos feitas "no susto"

    Os astronautas não sabiam que a Terra iria aparecer acima do horizonte da Lua. Ela surge na janela de Anders num movimento de rotação da cápsula, previsto no plano de voo. Ele carregava uma câmera Hasselblad 500 EL, com uma lente de 250 mm, e tinha a função de fotografar a superfície da Lua pela janela lateral. Um outro equipamento, fixado na janela frontal de Borman, tirava fotos automaticamente com um timer. Em 2013, a Nasa publicou um vídeo em que recria virtualmente este momento, usando o áudio original da cabine.

O feito histórico

"Os primeiros homens a ver a Lua de perto consagraram a Terra como o mais bonito astro existente no firmamento." Assim começava o editorial, assinado pelo diretor de redação Justino Martins, na edição 873 da revista Manchete, que chegou às bancas em 11 de janeiro de 1969. A Terra, segundo testemunharam os astronautas, era de um azul intenso e brilhante, quase mágico, enquanto a Lua, "objeto de tanta curiosidade e cobiça", era "feia, árida, crostada como uma placa de gesso, cheia de buracos, penhascos e desertos poeirentos.

Nas páginas internas, a revista dizia que "todo o sistema solar já está ao nosso alcance", porque a "fantástica aventura da Apolo 8" mostrou que dava para vencer a gravidade e se deslocar pelo cosmo "tal qual os antigos navegadores utilizaram os ventos e as correntes marítimas".

A reportagem narra ainda que, vista do espaço, a 350 mil quilômetros de altura e com imagens de resolução superior às tiradas por missões anteriores e não tripuladas, a Terra não parecia achatada nos polos como se pensava. A alternância entre dias e noites era vista com nitidez e dava para identificar a costa americana do Pacífico, o polo Sul e os recortes da Flórida e de Cuba.

"Como a sua vitoriosa ida e volta ao satélite, os americanos se colocaram à frente de seus adversários nesse caríssimo esporte astronáutico. Para reabilitar-se, os russos terão que não só ir à Lua, mas trazer de lá um pedacinho de chão, algo mais concreto do que simples imagens", apostava Justino Martins.

Pouco mais de seis meses depois, caberia a dois americanos, os astronautas da Apollo 11, Neil Armstrong e Buzz Aldrin, superar os feitos dos compatriotas, pousar na Lua e ampliar para sempre a vantagem na corrida contra os soviéticos.

Arquivo

Sob censura, a capa da Folha de S.Paulo no dia 28 de dezembro de 1968 trouxe apenas a notícia do voo histórico ao espaço e uma menção ao AI-5 como, segundo o presidente Costa e Silva, "uma resposta ao impatriotismo".

Este foi o motivo dado para a prisão de Gil e Caetano, acusados de desrespeitar o hino nacional durante um show que reuniu também Os Mutantes e Gal Costa.

Em janeiro de 1969, os dois foram transferidos para quartéis separados. Na Quarta-Feira de Cinzas daquele ano, foram soltos e mantidos em prisão domiciliar em Salvador. Em julho, partiram para o exílio. O show na boate Sucata, no Rio, deu fim à Tropicália. Seus líderes só voltariam ao Brasil em 1975.

  • O dia em que a Terra parou

    A missão até a órbita da Lua monopolizou as atenções dos terráqueos e foi a primeira a ser transmitida ao vivo do espaço. A cápsula norte-americana foi lançada às 12h42 de um sábado. O trio de astronautas partiu com a missão de cumprir "a maior penetração humana no espaço extraterrestre" e voltou com fotos inéditas do solo lunar e da Terra vista do satélite. "Voo à Lua: um passeio agradável", cravou a Folha de S.Paulo em sua manchete no dia seguinte.

  • Não sem emoção

    Mas, na véspera, a Nasa precisou consertar uma falha no sistema de oxigênio líquido da cápsula. Vazou nitrogênio no tanque da nave, o que prejudicaria o voo. Sanado o problema, a nave foi conduzida até o espaço pelo foguete Saturno 5, que pesava 3.000 toneladas e consumiu mais de 2 milhões de litros de combustível.

  • Supremacia geopolítica

    O voo foi, literalmente, um dos pontos mais altos do duelo entre EUA e União Soviética, que começou na década de 60 e visava provar a superioridade tecnológica de cada país. Para isso, fincar a bandeira era crucial para a conquista do espaço. E foi o que aconteceu, naquele mesmo ano.

  • Disputa trágica

    Acidentes dos dois lados marcaram a corrida espacial --um incêndio acidental matou três tripulantes da Apollo 1, em 1967. Mesmo assim, a disputa continuou. Os russos colocaram uma nave com duas tartarugas e algumas bactérias ao redor da Lua e pareciam próximos de avançar para humanos em órbita, mas os EUA reassumiram a dianteira três meses depois com a Apollo 8.

  • E não para por aí...

    Dos três astronautas da Apollo 8, todos ainda vivos, apenas Lovell voltou ao espaço, desta vez no comando da quase trágica Apollo 13 --com problemas no voo, ele precisou salvar a equipe e comprometer o novo pouso na Lua. Ao todo, seis missões pousaram na Lua e 12 astronautas caminharam por ela.

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