Para ir além do espelho

Aline Midlej | Por Guilherme Tagiaroli, repórter de Tilt

O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Aline Midlej:

O exame pode nos ajudar a desconstruir muitas ideias distorcidas que temos do que é beleza, do que é legal, do que é agregador, do que é força"

Este é um capítulo da série

Origens

Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?

Que o povo brasileiro é miscigenado, todo mundo sabe. O que deveria ser mera constatação histórica, porém, costuma ser usado para apagar a presença de negros no Brasil. Após o teste de DNA, a jornalista Aline Midlej, 38, descobriu que ela é fruto dessa mistura.

Para a apresentadora da GloboNews, o exame que mapeou sua ancestralidade foi revelador e "mexeu" com questões profundas sobre origem e fenótipo. Criada sob a forte influência libanesa da família paterna, Aline pouco ouvia falar sobre questões raciais em casa. Ainda que o racismo não a poupasse, ela só percebeu a dimensão de ser uma mulher negra quando já era adulta.

Agora ligue o som, no canto superior direito.

"Quando falei com angolanas e moçambicanas, eu me identifiquei. Nunca estive sentada com mulheres negras na minha vida. Mesmo na família da minha mãe, em que temos a pele mais escura, isso não é uma conversa."

De São Luís (MA), mas criada em São Paulo, Aline nasceu em uma família de classe média alta. Filha de um baiano e uma pernambucana, ela lembra com carinho de histórias familiares relacionadas ao Nordeste. Conversando com os parentes maternos, ouviu falar do frevo, sobre o avô militar que chegou a perseguir o bando de Lampião e de como a mãe nasceu em Petrolândia, uma cidade que desapareceu, inundada por uma barragem. Do lado paterno, soube da migração libanesa para o sul da Bahia.

"Eu me identifico muito com a história do seu Nacib, de 'Gabriela Cravo e Canela', do Jorge Amado. Como meu bisavô, foram os caras que se apaixonaram pelas mulheres baianas, a maioria negras ou miscigenadas, e aí rolou essa miscigenação maluca e linda que é minha família."

Com a certeza de quem conhece a cidade no Líbano de onde veio o bisavô paterno e de quem sabe que o bisavô materno era português, Aline tem consciência da própria origem. "Ainda que não seja pormenorizada, eu acho que ela é suficiente para eu entender de onde eu vim."

Essa miscigenação tirava de cena as conversas sobre as raízes negras da família. Ainda assim, algo fervia dentro de Aline, que se sentia "um pouco única ali, no núcleo familiar", rodeada de primos até loiros. A forma como ela aprendeu a lidar com a questão ressoa até hoje: "Tudo que sou como mulher vem desse lugar de me sentir diferente, às vezes, desencaixada durante um tempo da minha vida. Ainda que meu tom de pele seja um pouco mais claro, eu sempre fui a única desse jeito na escola, na faculdade."

"Minha avó desembaraçava meu cabelo e, durante muito tempo, eu queria o da minha irmã, que era liso e eu achava mais bonito. Minha mãe falava que o meu era lindo, e isso foi bastante importante para eu manter meu cabelo crespo como tenho hoje."

O resultado do teste de DNA a surpreendeu e a fez colocar algumas coisas em perspectiva. Ela tem tentado desconstruir a ideia "do que é ser preto, branco, amarelo... do que é ser brasileiro". Porém, hierarquizar os impactos tanto da sua cor quanto de sua origem genética na construção da identidade é uma tarefa muito mais elaborada.

"A própria Kamala Harris [vice-presidente dos EUA] é uma mulher negra, com o tom de pele dela bem parecido com o meu", exemplifica. "Questionavam a negritude dela. Como você mede a negritude? Pelo nível de preconceito que você sofreu. Mas quais são os critérios para você medir o tamanho da dor que isso te causou, a dimensão que isso tomou na sua formação emocional, na sua confiança? É muito relativo."

Aline sabe que muita gente vai dizer: "está vendo, ela não é negra", mas ela diz que está preparada. "Ouvi muito isso ao longo da minha vida." Para ela, seu resultado "vai na direção de tudo o que leio, estudo e converso com os profissionais da genética."

"Somos muito mais misturados do que se imaginava. Isso pode nos ajudar a desconstruir muitas ideias distorcidas que temos do que é beleza, do que é legal, do que é agregador, do que é força."

Para a jornalista, o teste vem para fortalecer os laços familiares e ajudar na construção do que é ser uma família com diversas origens no Brasil.

"Já compartilhei com a minha família. É uma grande virada para falar sobre diversidade e os desafios de se colocar no país, ainda extremamente racista e calcado naquilo que o espelho mostra. É importante fortalecer o que somos e nos amarmos com orgulho dessa formação."

Testes de DNA:

  • Como o teste é feito: o DNA é coletado pela própria pessoa que esfrega uma haste flexível com algodão na parte de dentro da bochecha. Na sequência, este material deve ser enviado para a empresa;
  • O que o teste mostra: As empresas fornecem detalhes da ancestralidade, que pode retroceder de cinco a oito gerações, e pode mostrar a linhagem de pai e mãe ou até busca de parentes;
  • Quem oferece no Brasil: Genera, meuDNA (Mendelics) e MyHeritage;
  • Quanto custa: os testes variam de R$ 200 a R$ 500.

Publicado em 11 de maio de 2021.

Reportagem: Guilherme Tagiaroli

Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes

Produção: Barbara Therrie

Arte: Deborah Faleiros

Fotos: Lucas Seixas

Este é um capítulo da série

Origens

Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?