Preto, ainda que os risos acabem
Yuri Marçal | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
Yuri Marçal | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Yuri Marçal:
Essa tecnologia me trouxe uma sensação de esperança. Não tem como ter certeza, mas a confirmação me veio como alívio e um novo objetivo"
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
Acostumado a atrair uma multidão a seus shows e suas redes sociais, o comediante Yuri Marçal diz que só saboreia de fato um sentimento de comunidade quando se reúne com outras pessoas no terreiro de candomblé. Segundo ele, até um amigo ateu costuma repetir: "aqui é o mais próximo de uma família que conheço". É ali que muitos negros começam a se conectar com suas histórias e seus antepassados.
Antes de fazer o teste de DNA, Yuri já andava revirando e descobrindo histórias ocultas. Investigou seu sobrenome. Enquanto esperava o resultado, recuperou até fotos de um bisavô que levaram a informações surpreendentes. E, ao final das seis semanas de espera, ficou arrepiado quando viu finalmente o que o seu sangue trazia. Desde então, a busca pela ancestralidade virou um jogo.
Agora ligue o som, no canto superior direito.
O candomblé, religião sem um livro sagrado, também trouxe muito forte para a família de Yuri a tradição oral. "Essa coisa de conversar sobre quem veio antes, a gente acabou herdando isso", acredita. E nessa gincana de achar respostas, ele percebeu que as histórias passadas de boca a boca, por gerações, podem deixar algumas informações importantes pelo caminho.
"Quando estamos juntos, sempre relembramos as mesmas histórias dos nossos mais velhos. E é porque a gente não sabe. Minha avó morreu quando eu tinha sete anos. O pai da minha mãe morreu quando ela tinha dois anos. A gente não faz ideia de quem veio antes da minha avó, porque foi tudo apagado mesmo, nem nome. Não tem lembranças."
Foi assim, numa conversa informal no terreiro, que uma tia deixou escapar que a avó tivera um filho que morreu ainda bebê. "Eu falei: 'tia, você não achou que seria importante a gente saber disso?'. Peraí, tenho 30 anos e nunca ninguém falou sobre isso, absolutamente ninguém da minha geração sabia."
Desde então, ele vive cutucando os parentes para que compartilhem documentos e imagens. Assim, descobriu que este bisavô materno, além de ativista pelo fim da escravidão, era do candomblé e filho de Xangô. E mais: a foto recém-descoberta do homem mostrou que ele é a cara do filho do comediante, Ícaro, de 6 anos.
Outro bisavô, pai do seu avô materno, era um negro escravizado com a função de "reprodutor". "São histórias muito próximas, muito pesadas, que a gente foi descobrindo", conta.
O teste colocou na mesa uma informação importantíssima, que Yuri talvez não pudesse mais obter: as raízes desconhecidas da sua família estavam na Nigéria e em Benin. Ele conta que sempre sentiu essa conexão, sem saber explicar, e o exame de DNA confirmou a impressão.
Quando ele levou o resultado para a família do terreiro, a surpresa foi pouca. Ali já se sabia que os dois países possuem grande relação com o candomblé, que foi fundamental para que essas referências africanas não se perdessem no Brasil. Agora, diz Yuri, todos os irmãos de santo querem um teste de DNA para chamar de seu e ter mais detalhes de suas origens.
Com o exame em mãos, Yuri se jogou num mar de suposições sobre como teria ocorrido esse "translado absurdo" da Nigéria para o Rio de Janeiro. Voltou-se, então, para sua infância e viu o próprio caminhar entre dois mundos. Nascido em uma família preta no subúrbio carioca, foi criado em uma casa confortável na favela da Carobinha, na zona oeste. Aluno de escola particular, estudou quase que exclusivamente com alunos brancos e criou um mecanismo para driblar o racismo durante as aulas e a pecha de playboy onde vivia. Dava uma exagerada no "personagem", lembra.
O mapeamento genético também fez cair outras fichas sobre coisas que não vão mudar nunca, não importa o que faça ou em qual lugar se coloque:
Mesmo com tantas pesquisas feitas, Yuri não conseguiu ter uma árvore genealógica frondosa. Por isso, agora quer deixar um legado para a família Marçal e tornar mais fácil o acesso dos seus descendentes à história de quem já se foi.
Publicado em 7 de maio de 2021.
Reportagem: Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Produção: Barbara Therrie
Arte: Deborah Faleiros
Fotos: Keiny Andrade
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?