Raça é ficção compartilhada

Alê Santos | Por Helton Simões Gomes, editor de diversidade do UOL

O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Alê Santos:

Não temos toda essa história. Então, com os testes, a gente tenta montá-la para descobrir um pouco da nossa identidade e construir o ideal de ego"

Este é um capítulo da série

Origens

Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?

Finalista do Prêmio Jabuti 2020 com o livro "Rastros de resistência", feito a partir das histórias de personalidades negras esquecidas que ele resgatava e contava a seus milhares de seguidores no Twitter, o escritor e roteirista Alê Santos, 34, olha para o teste de DNA com a fé de quem confia na ciência e o ceticismo de quem sabe que métodos científicos foram usados para justificar políticas de exclusão.

Mas, ainda que não veja os resultados genéticos como a palavra final sobre sua ancestralidade, ele já fez da descoberta mais uma peça para remontar sua história e desvendar a maior pergunta que tem: "quem sou eu, um negro de pele clara, nesse rolê que é o Brasil".

Agora ligue o som, no canto superior direito.

No interior de Minas Gerais e São Paulo, onde foi criado, ele percebe que a maior parte dos negros vem de famílias multirraciais, como ele, e isso bagunça ainda mais a busca por uma identidade. "A configuração brasileira mudou. Era afro-brasileira, agora a maior parte é negra. E a gente é jogado no meio dessa conversa, no meio de toda essa discussão étnico-racial, tentando descobrir uma história e uma ancestralidade", explica.

Entre os parentes, negros, brancos e indígenas, o papo sobre os antepassados corria solto, mas sequer chegava à África. Ele conta que a árvore genealógica fica confusa e vaga quanto mais para cima vai. "Minha avó falava mais das irmãs e das histórias que viveram, não da ancestralidade", diz. "E a galera te identifica por coisas que nem tem certeza, porque não dá para olhar para uma pessoa e saber exatamente o que está no sangue dela."

Por outro lado, os elementos de conexão com o continente africano eram evidentes naquele núcleo que se unia em torno dos sambas de roda improvisados na calçada da casa da avó. "Essa é a maior riqueza que eu peguei do meu avô, que nem conheci. É um traço da nossa negritude", afirma.

Nerd, curioso e fã de ciências declarado, o escritor salta das ideias do historiador Yuval Noah Harari para as aventuras de Alladin como quem escorrega os dedos de uma corda do violão para outra. É assim que ele vai explicando como sempre correu atrás de quem era, buscando respostas sobre raça, etnia e biologia.

"A sociedade nos identifica pelo fenótipo. Você cresce sendo chamado de neguinho, mulatinho. Foi aí que eu comecei a sacar o quanto raça é mais uma ficção compartilhada."

Lendo "Sapiens: Uma Breve história da Humanidade", best-seller de Harari, Alê topou com o conceito de ficção compartilhada e muitas fichas caíram: a negritude, analisa, é uma crença, em torno da qual são construídas estatísticas sociais brasileiras, que lhe dão corpo de fato consumado. "A nossa identidade é muito mais reforçada pela narrativa dentro de um país do que por aquilo que está no seu sangue"

Alê começou a se perguntar, então, até que ponto sua identidade fora afetada por essas crenças —o que era missão pessoal virou livro (o segundo já está a caminho). Nesse embate com conceitos, o escritor começou a pirar com as consequências de depender de um teste de DNA para obter respostas. E não era medo de os dados dele serem vendidos a uma farmacêutica. "Aqui no interior não conseguem nem atender pelo WhatsApp ainda", brinca.

"Talvez eu tivesse receio de entender: e se, de repente, aparece que você não é tão negro quanto imagina? Há dissonância entre a narrativa social que se estabeleceu e o que o DNA mostra."

Apesar de crítico, Alê não esconde a surpresa com os detalhes de seu perfil genético. "Saber a área geográfica exata dos seus antepassados faz a gente confabular e ter ideias reveladoras de um futuro (...) O teste traz essa multiplicidade da existência negra na África e mostra que eu posso ter mais de uma identidade negra", ressalta. Ele diz que o Brasil, por ter recebido muitos iorubás (etnia da região que hoje é a Nigéria), tende a olhar só para uma parte, a associada ao candomblé. "Mas lá tinha o pessoal do Islã. E a Etiópia, por exemplo, foi o maior reino cristão antes de um branco pisar lá."

O exame trouxe também uma experiência ruim: a baixa porcentagem de material genético indígena. Para ele, que veio de quatro gerações que viveram em uma reserva nativa, isso mostrou que o resultado não é suficiente e que a ancestralidade deve ser explorada para além da análise do sangue. "É um apagamento da minha história ter aparecido tão pouco. Eu fui atrás do pessoal que fez o exame para falar sobre isso", contou.

"Esse exame de DNA é importante inclusive para perceber que você não precisa dele para construir essa história."

Aqui entra também o roteirista nerd falando: a onda de testes genéticos, diz, poderia descambar para realidades distópicas. Esta história, Alê não está disposto a escrever, pois vê a possibilidade da reedição de teorias eugenistas do começo do século 20.

"Uma delas dizia que povos fora da Europa eram incapazes de produzir algo artístico ou intelectual. Isso permite até hoje quilombos serem alvo de ataques, inclusive do governo, por acreditar que é uma estrutura social inferior, que não tem riqueza."

Para o escritor, essas "crenças devastadoras" só podem ser combatidas com mais ciência. "O racismo científico é muito forte, mas a única ferramenta aceitável para confrontá-lo está dentro do campo científico", defende.

"Eu prefiro focar na construção da minha identidade e no que eu vou deixar para os meus descendentes a partir do que eu tenho feito aqui nesse país. Quero colocar essa experiência negra brasileira como o foco da minha construção, e não acho que o DNA está ligado à isso."

Testes de DNA:

  • Como o teste é feito: o DNA é coletado pela própria pessoa que esfrega uma haste flexível com algodão na parte de dentro da bochecha. Na sequência, este material deve ser enviado para a empresa;
  • O que o teste mostra: As empresas fornecem detalhes da ancestralidade, que pode retroceder de cinco a oito gerações, e pode mostrar a linhagem de pai e mãe ou até busca de parentes;
  • Quem oferece no Brasil: Genera, meuDNA (Mendelics) e MyHeritage;
  • Quanto custa: os testes variam de R$ 200 a R$ 500.

Publicado em 6 de maio de 2021.

Reportagem: Helton Simões Gomes e Lola Ferreira

Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes

Produção: Bárbara Therrie

Arte: Suellen Lima

Fotos: Keiny Andrade

Este é um capítulo da série

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