Temos um passado, que foi violentado, e a culpa não é nossa
Conceição Evaristo | Por Helton Simões Gomes, editor de Diversidade do UOL
Conceição Evaristo | Por Helton Simões Gomes, editor de Diversidade do UOL
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Conceição Evaristo:
Já que esse passado nos foi roubado, a gente cria esse passado com ficção. Isso pode valer muito para nossa autoestima"
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
Em toda sua vida, a escritora Conceição Evaristo se agarrou à possibilidade de criar histórias como chance de conhecer um mundo para além do real. A autora de obras como "Ponciá Vicêncio" e "Olhos d'água" viveu a miséria, cresceu cercada de mulheres e cunhou o termo "escrevivência" para resumir sua arte: feita a partir do que se vê e vive, mas também do que se ficcionaliza.
Antes do teste de DNA, ela já encontrava elementos da África em muitas partes de sua vida. Com o resultado comprovando seus laços genéticos com o continente, Conceição acredita que o exame traz apenas uma fagulha do que fomos. Vê, no entanto, que há nele um poder para mudar a forma como lidamos com a história.
Aos 73 anos, Conceição construiu sua carreira imaginando. Suas obras ficcionais têm a mulher negra como figura central. Não é à toa: cresceu cercada por elas, desde sua mãe, passando por suas tias e até suas irmãs. É a linhagem materna que está viva na memória da escritora —nunca teve muito contato com o pai, de quem sabe apenas o apelido.
"Minha família vem de uma nebulosa, um passado que é uma incógnita. É uma árvore genealógica com vários galhos podados. Eu traço com firmeza até as minhas tias, irmãs da minha mãe: tia Maria Filomena, tia Laurinda, tia Lilia, tia Adélia, minha mãe, meu tio Catarino, que foi uma pessoa importantíssima na minha vida, e minha tia Inês, que faleceu recentemente com 93 anos. Até aqui eu traço a árvore, depois disso eu ouvi falar."
A escritora descreve esses parentes mais distantes como quem cria personagens. O avô paterno, que viu uma só vez, era um homem que consertava sombrinhas. "Engraçado que eu fiquei com esse detalhe na minha cabeça", diz. Outra tia, lembra, era muito observadora e falava: "O seu pé é igual ao pé do seu avô". A mãe contava história sobre a vida na fazenda, "uma terra tão grande que quando elas saíam para brincar, se se afastassem muito da casa, não recordavam como voltar".
Em Minas Gerais, ouviu da mãe e da tia, que a criou, muitas histórias sobre a escravização dos povos trazidos da África até o Brasil. O avô materno, pelo que contam, era filho da Lei do Ventre Livre. "A minha mãe é de 1922, minha tia mais velha era de 1914, então é muito recente em relação à assinatura da Lei Áurea", explica. Mas, como acontece com a maioria dos negros brasileiros, não há qualquer comprovação das raízes dessa família.
"Essa minha tia era alfabetizada. A impressão que eu tenho é que ela gostava muito de história. Contava, por exemplo, a história dos bandeirantes, da procura das esmeraldas, da família Borba Gato. Então, eu cresci escutando as histórias dos bandeirantes e da escravização da mesma forma, com curiosidade, sem nenhuma consciência ainda do que significava. Mas ela tinha consciência daquilo que estava contando, do pai e do avô dela. Tinha até um jeito próprio na contação dessas histórias."
Também ouviu que a bisavó era uma índia "que alguém tinha apanhado a laço". "Essa história de violação das mulheres indígenas. Diante da miscigenação do Brasil, é um risco que você corre de, de repente, seu DNA ter alguma coisa que você não quer", pondera.
E para aquilo que a ciência não vai dar conta de resolver, ela já planeja tratar com poesia e romance. "Por mais que esses resultados apontem uma possibilidade, ainda são possibilidades difusas e há um elo difícil de comprovar. Isso me instigou a escrever alguma coisa. A ficção tentando preencher esse vazio histórico", explica.
Antes do teste de DNA, Conceição viu sua vida transpassado pelo continente africano por uma espécie de fio invisível, forte e ancestral. A avó tirava as fibras de árvores para fazer tecidos e costurar roupas, tingidas com materiais "do mato". A família tinha costume de comer amendoim moído em pilão, usavam muita cuia e cabaça. O avô era um nômade inteligente, que, apesar do parentesco não explicado com um fazendeiro, queria distância de um então passado recente.
Outros sinais de reconhecimento vieram. Em visita ao Senegal, viu nos homens locais, "negros muito altos", semelhança com seus tios. Em uma palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mãe angolana de uma colega falou com Conceição em umbundo (língua bantu falada em regiões da Angola), tamanha a crença que tinha de se tratar de uma conterrânea.
Em São Tomé e Príncipe, durante uma visita, ouviu de um grupo de mulheres que "estava sumida" —do mesmo jeito que a gente cumprimenta um parente que fica muitos meses sem aparecer para um café. Em Moçambique, foi recebida com festa.
Anos depois, do lado de cá do Atlântico, Conceição confessa que ficaria muito mal e até duvidaria se o resultado do teste de DNA mostrasse algo diferente de tudo que vivenciou nesses encontros. Mas não aconteceu: 94,5% de seu material tem origem africana e os 5,5% restantes são da região do México.
Com o resultado em mão, ela foi tomada por uma esperança de o DNA ser útil para a juventude, de modo que jovens abandonem a ideia de não haver um passado negro. Também foi enfática ao lembrar que a culpa pela deturpação e pelo apagamento da história de povos escravizados não é deles.
Por saber que laços negros foram roubados, ela vê apenas uma chance distante de se reencontrar com a própria história a partir dos dados genéticos. Mais uma vez, a ficção vira estrela e companheira.
A autora está trabalhando em seu próximo livro com protagonista negra, que passa por temas como descendência, família e reencontros. Sem planejar, o teste veio para somar também nisso. "Esse romance traz uma travessia de sete mulheres, que, de maneiras diversas, vão comprar terras e dar origem a um quilombo. Para quem já estava com essa ficção na cabeça, [esse teste de DNA] é um elemento e tanto", diz.
Em sua literatura, Conceição costuma trazer as histórias da sua família e elementos da cultura africana como pano de fundo para entender o impacto do racismo na vida dos negros. A loucura, ressalta ela, é um desses temas que sai da seara familiar e invade o romance. O avô "nômade", por exemplo, adoeceu, surtou e morreu no Hospício de Barbacena. Uma tia era megalomaníaca, uma irmã mais velha, esquizofrênica. Tudo isso desembocou em uma de suas personagens mais famosas: Ponciá Vicêncio.
Para quem vive as dores do racismo, acredita ela, as religiões cristãs não dão conta de preencher os vazios deixados —nisso, só as religiões vindas de África poderiam ajudar. Conceição então gosta de dizer que é guardada por Oxum, Imaculada Conceição, Santa Rita de Cássia, Iemanjá e Anastácia.
Publicado em 14 de maio de 2021.
Reportagem: Helton Simões Gomes e Lola Ferreira
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Produção: Barbara Therrie
Fotos: Arquivo pessoal e Zanone Fraissat/Folhapress
Arte: Deborah Faleiros
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?