"Então, está explicado, vó"

Daiane dos Santos | Por Helton Simões Gomes, editor de Diversidade do UOL

O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Daiane dos Santos:

Portugueses, italianos, libaneses, israelitas. As outras etnias têm muito orgulho das suas raízes. Por que nós, africanos, não vamos ter? Tenho orgulho de tudo que construímos e quero passar isso para os meus filhos"

Este é um capítulo da série

Origens

Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?

Primeira brasileira a levar uma medalha de ouro no Mundial de Ginástica Artística, em 2003, Daiane dos Santos, 38, virou referência na modalidade e emprestou seu nome a dois saltos: o duplo twist carpado (ou Dos Santos I) e o duplo twist esticado (Dos Santos II). Isso numa época em que mulheres negras eram raras no esporte. De lá para cá, inspirou quem quis (e quer) trilhar seus passos e viu o cenário do esporte mudar.

Por trás do show que dava no tablado, estava a segurança e a educação que recebeu dos pais. Ela conta que eles sempre a ensinaram a reconhecer e amar sua identidade negra, a reverenciar o que diziam os mais velhos. Foi uma dessas histórias que soam a lenda familiar que o teste de DNA comprovou: a avó tinha razão ao falar que os antepassados vieram de Angola.

Agora, ligue o som, no canto superior direito.

Daiane construiu uma carreira de sucesso em um ambiente dominado por pessoas brancas. Rodou o mundo, de cabeça erguida, mas foi no Brasil que viveu os piores episódios de racismo da sua vida. Em treinos, viu pessoas evitarem lavar as mãos na mesma pia que ela ou ficar ao seu lado. Nessas horas, lembrava dos pais dizendo que, em certos momentos, ela teria de ser três vezes melhor, mas já tinha a resposta:

"Ao mesmo tempo, eu tinha muito forte que era meu direito estar onde quisesse e ninguém ia tirar aquilo de mim. As crianças têm que ver essas histórias, mas entender que isso não é culpa da nossa cor de pele. É a ignorância de muitas pessoas."

Para superar esse boicote, Daiane diz que bloqueou muitas dessas memórias e foco apenas no esporte, mas sabe que isso ainda dói fundo na mãe.

"Fico feliz de ter enfrentado todas essas coisas para ver hoje que há muito mais meninas e meninos pretos fazendo ginástica."

Filha de um estoquista e uma emprega doméstica que virou cozinheira, ela nasceu em Porto Alegre (RS), "filha de comunidade, filha da Cohab [Cavalhada]". Com sete anos, passou a viver no quintal da bisavó paterna, a dona Cedália, "que está no tronco da árvore genealógica". Ali, cercada de bisavó, avó, tia, primos e irmãs, no apelidado "condomínio dos Santos", conviveu até com tios-bisavós e ouviu muitas histórias sobre os antepassados dessa grande família —e talvez por isso consiga construir uma árvore genealógica frondosa, apesar dos buracos.

Sempre de turbante, a avó materna de Daiane jurava de pé junto que sua família vinha de Angola e, embora a ex-ginasta perguntasse de onde vinha aquela certeza, nunca houve uma resposta. Mesmo assim ela acreditava, porque as tradições da família no preparo das refeições e os traços dos rostos pareciam comprovar a tese.

A certeza era tão grande que em uma edição dos Jogos Olímpicos a ex-ginasta lembra que não se conteve: viu a delegação angolana e foi lá pedir uma foto. "Fiquei muito orgulhosa, pensei: 'é uma parte de mim'". Em outro momento da carreira, recebeu do cônsul angolano uma carta de crianças do país, que diziam querer virar ginastas por vê-la na TV. A avó justificava: "é nossa ancestralidade, nossa herança genética é da Angola". Veio o resultado do teste genético, e a avó estava certa...

"Fiquei super feliz, porque minha avó nunca falou de outra região da África, ele sempre foi muito firme nisso. Eu falei: 'então, está explicado, vó'."

De um lado, o avô materno falava com orgulho da ascendência indígena. "Falava da tribo, detestava tomar remédio, usava muitas plantas. Até hoje, há milhões de plantas na casa da minha avó, e eles sabem fazer vários remédios a partir delas", diz. Do outro, o bisavô era italiano. "Eu cresci nessa mistura de culturas", diz.

Mesmo assim, a criação que recebeu não deixou dúvidas. Ela lembra de uma cena da infância, quando a irmã, de pele mais clara, chegou da escola dizendo: "falaram que não sou negra, sou morena". "Aqui todos nós somos negros", responderam os pais. "Qual é a cor do teu pai? E da tua mãe? Como você pode não ser negra?"

"Por mais que tivesse uma mistura de sangues, eles sempre trabalharam muito essa questão da negritude e do orgulho de ser negro. Mostraram que éramos negras, capazes, bonitas. Que nosso cabelo era bonito e não tinha essa história de 'não pode'."

"Quando a gente fala em aceitação parece tão negativo... Ah, eu tenho que me aceitar. Não, me vejo bonita. Sou negra com muito orgulho. Meus traços são lindos, todo mundo quer ter cabelão, lábios grossos, corpo mais acinturado. Falo que está na moda ser negro, agora todo mundo quer ser."

Ela gostou tanto da experiência de ter mais dados sobre sua ancestralidade que agora quer ficar cara a cara com suas raízes. "Há muitos olhares sobre a África, não só os que mostram na TV. Quero viver isso, ir a uma terra onde sei que está o meu sangue, e entender um pouco da minha história... Vai ser muito emocionante."

"Não precisava de um papel com o DNA para comprovar de onde vim, minha herança ou quem sou. Sei disso pelos meus pais, meu coração e o que vejo no espelho. Mas é bom ter isso claro e poder mostrar para as crianças: meu maior talento veio da África."

Assim como seus pais fizeram com ela, Daiane quer passar para as crianças à sua volta o mesmo orgulho que tem da sua origem, beleza, força e capacidade —e com mais referências sobre o passado e as raízes. Isso vale para sobrinhos, os filhos que talvez um dia tenha e os pequenos da favela de Paraisópolis, em São Paulo, onde dá aulas de ginástica artística, no projeto Brasileirinhos.

"Saber realmente de onde viemos, os locais das histórias dos tataravós, que lutaram nas guerras pelo nosso povo, para estarmos aqui hoje e entender porque estamos lutando e não podemos desistir."

Para isso, mantém nos seus trabalhos essa "corrente do bem pelas crianças pretas", como chama, para mostrar que os negros podem ocupar espaços importantes dentro do esporte. "Temos pretos no golfe por conta do Tiger Woods, no tênis por causa da Serena e Venus Williams, no automobilismo por causa do [Lewis] Hamilton", lembra. "Quem está aqui em cima leva seu irmão junto. Hoje pode ser muito mais fácil do que foi para as próximas gerações."

Testes de DNA:

  • Como o teste é feito: o DNA é coletado pela própria pessoa que esfrega uma haste flexível com algodão na parte de dentro da bochecha. Na sequência, este material deve ser enviado para a empresa;
  • O que o teste mostra: As empresas fornecem detalhes da ancestralidade, que pode retroceder de cinco a oito gerações, e pode mostrar a linhagem de pai e mãe ou até busca de parentes;
  • Quem oferece no Brasil: Genera, meuDNA (Mendelics) e MyHeritage;
  • Quanto custa: os testes variam de R$ 200 a R$ 500.

Publicado em 19 de maio de 2021.

Reportagem: Helton Simões Gomes e Lola Ferreira

Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes

Produção: Barbara Therrie

Arte: Deborah Faleiros

Fotos: Keiny Andrade

Este é um capítulo da série

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