A dor de saber que o opressor está no seu sangue
Kenia Maria | Por Guilherme Tagiaroli, repórter de Tilt
Kenia Maria | Por Guilherme Tagiaroli, repórter de Tilt
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Kenia Maria:
Eu odeio ter sangue português e o nome 'da Gama', porque provavelmente era do cara que estuprou a minha avó."
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
"Caramba, quase que eu corro dessa entrevista." Foi assim que a nossa conversa com a ativista, atriz e escritora Kenia Maria, 45, começou. Era um sinal do turbilhão de sentimentos que vinha a seguir. Sem dúvida, ela foi a personalidade do projeto Origens que reagiu de forma mais enfática ao resultado do exame de DNA e, como você vai perceber, tem motivos para sentir tanta dor. Olhar para seus detalhes genéticos foi como cutucar feridas deixadas pelos antepassados.
Depois de decantar um pouco as informações, ela decidiu abrir e analisar o resultado para a reportagem, embora tema que a discussão em torno das porcentagens possa tomar caminhos desonestos sobre o racismo no Brasil.
Kenia conta que viveu no subúrbio do Rio de Janeiro, onde as referências africanas predominavam: Del Castilho, Realengo, Catumbi. Sua família sempre esteve muito envolvida com movimentos culturais negros e tinha alta consciência racial. Ela foi iniciada no candomblé logo cedo, conviveu com o tio-avô, mestre Celso, um dos mais respeitados capoeiristas do Brasil, e se orgulha de ser sobrinha da Dida, que dá nome ao Bar da Dida, um famoso ponto de encontro na praça da Bandeira.
Ainda jovem, foi morar em Laranjeiras, bairro da elite carioca, porque o pai virou segurança particular de uma família da alta sociedade. "Claro que não deu certo. Nos colocaram num lugar que minha mãe, educadora, muito consciente das questões de raça, não aceitou", diz. De volta ao subúrbio, entendeu o que a cercava: os negros estão nos locais de maior violência e vulnerabilidade, mas também é ali na comunidade que a cultura negra está concentrada —no candomblé, no samba e nas tradições.
Na adolescência, sentiu o que significava ser uma menina negra no país que está sempre "caçando uma Globeleza". "Eu era a imagem tão adorada pelo Brasil colonizador, que desumaniza o nosso corpo". Foi nesse movimento de se afastar daquilo que impunham que começou a estudar história, reviver registros e buscar quem realmente era. "Os brancos vão te classificando, você precisa descobrir o que é ser negro e o que te compõe". Um dia, ao visitar uma colega, se deparou com um tipo de decoração que até então nunca tinha visto.
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Sobre seus ancestrais, Kenia tinha algumas pistas, passadas pela oralidade, mas nada muito detalhado. Por parte de mãe, sabia que tinha uma mistura mais indígena, um avô que foi importante na luta sindical pelos direitos trabalhistas da era Vargas e alguma origem europeia. Já por parte do pai, ouviu histórias misteriosas sobre seu bisavô, aquele que comprou o terreno no subúrbio.
Ela ressalta que os negros crescem achando que vieram "do nada", porque as informações da família são mantidas em sigilo. "A religião era proibida, o samba era proibido, não sei o que era proibido. A nossa história causa desconforto e vergonha", diz.
"Quando falam que meu avô tinha um dom de magia, eu acredito, porque carrego isso. Essa magia nada mais é do que tecnologia, conhecimento das ervas, do ar, da água. Isso tudo que o branco chama de magia, para nós, é respeito à natureza."
Duas questões preocupavam a escritora antes de fazer o teste: ter pouca ligação com a África e carregar sangue português. A primeira não se confirmou, mas a segunda foi a informação que a fez chorar diversas vezes durante a entrevista. "Sou muito sensível. Meu marido tentava me mostrar todos os povos antigos [que também estão no seu DNA], mas eu nem conseguia ouvir. Quem conhece muito a história, fica assim como eu."
Como já contamos aqui, o projeto "DNA do Brasil", encabeçado pela USP (Universidade de São Paulo), analisa o genoma de milhares de brasileiros e mostra que a relação entre europeus, africanos e indígenas foi violenta e deixou descendentes marcados geneticamente por esse passado de opressão. Grande parte da herança genética materna das pessoas é indígena e negra, enquanto a herança paterna é 75% europeia. Ainda que pudesse haver relação consensual, estes números apontam para um sistema de estupros.
"Até ontem a gente se orgulhava de ter sangue ou nome italiano. Para você ver a sofisticação do racismo brasileiro: ele faz com que eu tenha um nome, um orgulho, mas 'da Gama' era provavelmente o cara que estuprou, que laçou a minha avó. Esse Gama que eu vou trocar, com certeza, me faz muito mal."
O outro lado do mapa genético, no entanto, foi "só felicidade", diz. Ela percebeu, por exemplo, que tem um pouco de DNA do país que leva o seu nome, muita ancestralidade de Togo, Benim, Nigéria e Angola, países de onde vieram grande parte dos escravizados que desembarcaram no Brasil, um pouquinho de Etiópia, um povo que nunca foi colonizado, e uma pitada dos incas, que trazem a América Latina para seu sangue. "Eu morei dez anos em Peru, Equador, Venezuela, onde minha filha nasceu. Sempre admirei esses povos, sentia atração."
Para Kenia, estes exames de DNA poderiam servir para ter um debate honesto no Brasil sobre o racismo. Por muito tempo, houve um orgulho de se ter linhagem europeia, mas quase nunca foi discutido de forma clara a violência da colonização, como a população negra foi impedida de saber sobre sua própria história e o processo de "clareamento" do país com o incentivo da imigração europeia.
Nos EUA, houve segregação entre brancos e negros, e isso fez com que lideranças do movimento criassem instituições para eles próprios, criando um ambiente para explorar suas identidades e culturas coletivas. A atual vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, estudou na Howard University, que é uma faculdade historicamente negra. No Brasil, a miscigenação torna a situação mais complexa, e o "colorismo" (a discriminação que se intensifica conforme o tom de pele escurece, mas que nem por isso estende privilégios aos mais claros) cria diferentes níveis de racismo, complicando uma união e a criação de identidade entre os negros.
O jeito, acredita ela, é discutir mais racismo no Brasil e o que significa ser negro por aqui, num debate entre pessoas conscientes, ativistas e pesquisadoras. "No Brasil, ainda é uma questão de melanina. É cor. A cadeia está cheia de pardos, porque os retintos são mortos antes de entrar", ressalta. "Antes de incentivar esse exame de DNA, precisamos discutir o que é ser negro socialmente e o que é ser negro geneticamente."
Publicado em 26 de maio de 2021.
Reportagem: Guilherme Tagiaroli
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Produção: Barbara Therrie
Arte: Deborah Faleiros
Fotos: Julia Rodrigues
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?