Traçar novos caminhos
MC Carol | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
MC Carol | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, MC Carol:
Agora eu quero ir lá ver como é a parada [nos países africanos]. Acho que vou ficar, não prometo voltar"
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
Dona de letras que vão da reflexão histórica (Ninguém trouxe família / Muito menos filho / Porque já sabia / Que ia matar vários índios) ao sexo (A piroca não cantou / Muito menos era grossa / Eu caí legal na propaganda enganosa) e não esquecem da violência doméstica que preferimos não ver (Presenciei tudo isso dentro da minha família / Mulher com olho roxo, espancada todo dia), MC Carol, Carol Bandida ou Carolina Lourenço canta o que viveu.
Carol conta que foi o funk que a salvou aos 14 anos. Até então, tinha sido criada pelos bisavós no Morro do Preventório, em Niterói (RJ), mas se viu sozinha ainda adolescente, morando em barraco, passando fome e longe da escola. "Eu vivia numa casa com biscoitinho, quatro refeições. De um dia para o outro, eu tive que me adaptar (...) Graças a Deus, o funk chegou primeiro que o crime", conta. Hoje, ela quer que a irmã mais nova, de 11 anos, vença pelo estudo. E quer o mesmo para outras pessoas próximas.
Agora ligue o som, no canto superior direito.
Gorda e preta, MC Carol, de 26 anos, aprendeu a lidar desde cedo com o racismo, o machismo e a gordofobia. Conta que sempre se sentiu um corpo estranho em lugares como saguões de hotéis ou aeroportos, e mesmo em restaurantes. "É uma parada que dói."
"Me sinto constrangida. É entrar no avião e me sentir desconfortável. Fazer uma viagem internacional e todo mundo ser branco. Descer para o café da manhã do hotel ou entrar no restaurante, todo mundo branco, e a galera olha pra você", explica. Curiosamente, foi seu bisavô (a quem chama de vô) que a preparou desde cedo para o que estava por vir. Detalhe: ele era branco e tinha os olhos azuis.
O bisavô conseguiu. Carol se tornou uma mulher independente e, do seu jeito, fugiu da sina reservada às mulheres da família: cozinhar, passar e limpar. Foi difícil seguir pelo caminho do funk, ela conta que muitas pessoas próximas viraram-lhe as coisas. Mas o exemplo que quer deixar para irmã é parecido: corra dos estereótipos.
Carol já quis ser policial e juíza. Além disso, estudar é um sonho que não morreu, mas hoje ela se realiza no funk. Aos 15 anos, descobriu no palco que podia deixar de ser invisível. Até então, a aluna nota 10 só era notada na escola quando aprontava ou questionava.
Antes do teste de DNA, o mais perto que tinha chegado dos antepassados eram as histórias do cemitério de escravizados em Preventório e da casa da princesa Isabel na região do morro. Histórias que, de tão superficiais, a irritavam. Na escola, ao ouvir a versão oficial sobre a chegada de Pedro Álvares Cabral, chegou a comprar briga. Hoje, ela entende a dificuldade de ensinar 40 alunos numa escola pública. Tanto que até procurou a professora para pedir desculpa pela "rebeldia".
A discordância com os livros, no entanto, não foi esquecida. Virou uma de suas músicas mais famosas. Em "Não foi Cabral", ela manda a real sobre o descobrimento do Brasil e exalta a figura de Zumbi e Dandara dos Palmares. "Os livros só mostravam uma foto e um textinho. Não tinha idade, mãe, pai, esposa, avó. E eu queria saber mais."
Carol diz que não botava muita fé no teste de DNA, mas, depois que viu o resultado, foi tomada pela curiosidade de conhecer Angola. "Chegar num lugar onde vou ver uma galera preta, acho que nem volto mais pra cá", diz.
A cantora não deposita no teste a esperança para mudar o futuro de crianças negras, mas enxerga nele um incentivo para outras pessoas se conectarem com suas raízes e descobrirem que o amanhã pode ser mais promissor.
Publicado em 30 de abril de 2021.
Reportagem: Helton Simões Gomes, Ismael dos Anjos e Lola Ferreira
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Produção: Barbara Therrie
Arte: Deborah Faleiros
Fotos: Lucas Seixas
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?