YouTube como você nunca viu

Sob pressão inédita, site muda para proteger crianças de publicidade, mas tira receita de youtubers

Helton Simões Gomes De Tilt, em São Paulo

Você pode não ter notado, mas o YouTube fatura alto com a atenção das crianças. Tudo faz parte de uma engrenagem: os pequenos assistem a vídeos altamente cativantes feitos por youtubers (sem lá muito controle do Google), isso alimenta os algoritmos da plataforma, que capta as preferências e manda mais e mais sugestões de vídeos sedutores. Entre um e outro, estão as propagandas. Quanto mais as crianças ficam vidradas na telinha, mais pinga na conta da empresa e dos criadores.

Só há um probleminha nesse arranjo. Pais ou responsáveis não consentiram que os dados de suas crianças alimentassem este arranjo financeiro. Isso inclusive viola orientações da ONU e uma lei nos Estados Unidos protege crianças e adolescentes. As autoridades finalmente perceberam isso, e o YouTube vendo sendo pressionado como nunca ocorreu em seus 15 anos de vida.

Tilt ouviu os vários personagens dessa história e todos alertam que a mudança, ainda que bem-vinda, deixará sérias marcas na plataforma —além de forçar o Google fazer remendos e não atacar alguns problemas graves.

O que rolou?

Em 2015, quando o Google lançou o YouTube Kids, sua versão apenas para crianças, foi quase uma confissão pública de que elas usavam a plataforma com tanta frequência que valia a pena criar algo segmentado. Pesquisa de 2017 mostrava que 80% das crianças entre 6 e 12 anos viam o YouTube diariamente. Mas foi só em 2018 que as autoridades norte-americanas abriram uma investigação, após a pressão de mais de 20 grupos da sociedade civil, para apurar a coleta de dados sem autorização dos pais.

Em 2019, a Comissão de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) e a procuradoria de Nova York finalmente multaram o Google em um total de US$ 170 milhões por usar as informações dos menores para direcionar publicidade segmentada.

O dinheiro nem foi uma questão. Como a Alphabet, empresa-mãe do Google, faturou US$ 40,5 bilhões só no terceiro trimestre do ano passado, levantar a grana para pagar a multa demorou só sete horas e meia. Mas fazia parte do acordo com a FTC e a procuradoria de NY que o YouTube deixasse de coletar os dados que violavam a lei.

Isso começou a ser feito agora e, consequentemente, atingiu em cheio a remuneração dos influenciadores digitais que produzem vídeos vistos por esse público. Sem dinheiro, sabe-se lá como ficarão as carinhas que você está acostumado a ver na telinha.

Por que é importante?

O YouTube finalmente mexeu na estrutura da plataforma para solucionar um problema, e a chacoalhada é de grande alcance, já que abala pessoas e empresas com diferentes níveis de conexão com os vídeos, dos usuários aos youtubers, passando pelos anunciantes.

Até então, sempre que um vídeo gerava polêmica, a plataforma resolvia criando regras para produção de conteúdo (presença ou não de palavrão, por exemplo), escondendo materiais problemáticos (como conteúdos com teorias da conspiração) ou alterando critérios na remuneração aos criadores.

"O debate estava invertido. Não cabe à plataforma ficar decidindo qual conteúdo é legítimo ou não", diz Marina Pita, coordenadora do Intervozes, grupo que defende a comunicação como direito no Brasil. Segundo ela, a mudança significa é o YouTube passar a ser responsabilizado pelas decisões que toma.

O lance é que, quando surgiu, o site era só para maiores de 18 anos. Com o tempo, deixou crianças a partir de 13 anos entrar mas isso sempre funcionou como a desculpa perfeita. Sempre que questionado, dizia que não era para crianças. Ainda hoje, se defende dizendo que a plataforma evoluiu com o tempo.

"Vários dos usos não foram previstos quando a plataforma foi desenvolvida, nem mesmo o fato de gerar receita com publicidade. Há uma curva natural de desenvolvimento do YouTube, que envolve os criadores e anunciantes. Quando montamos o YouTube, não estava claro que ele seria usado para distribuir conteúdo para menores de 13 anos", afirma um porta-voz da companhia.

O que vemos hoje, portanto, é uma adequação muito tardia de uma situação irregular, e muito lucrativa, que se arrastava há anos.

"O Google nunca reconheceu que crianças usavam o YouTube, mas elas estavam lá sim", diz Pedro Hartung, coordenador do Instituto Alana, que defende os direitos das crianças. "Durante anos, ele aceitou e estimulou a produção de conteúdo para as crianças sem se adequar à legislação, o que é gravíssimo. A aplicação da lei demorou anos para chegar, e só veio após a sociedade exigir muito", completa Pita, do Intervozes.

Público fiel, mas clandestino

O YouTube se esquiva, mas se vangloriava de seu público infantil para cativar potenciais anunciantes, notadamente marcas de brinquedo. Para encantar a Mattel, afirmou ser o principal destino online para crianças de 6 a 11 anos. Com a Hasbro, o papo continuou o mesmo. Mudou a faixa de idade: de 2 e 12 anos. Além disso, aplicava classificação etária nos vídeos para facilitar o envio de anúncio segmentado. Entre as possibilidades de rotulagem, havia faixas de 0 a 7 anos, para maiores de 10 anos e para todas as idades —tudo isso enquanto uma lei dos EUA, a Coppa, na sigla em inglês, proibia que os dados de crianças com até 13 anos fossem coletados e usados comercialmente sem que os pais permitissem.

Hoje, a audiência dos vídeos infantis, além de representar um volume gigantesco de visualizações, é uma das mais fiéis —e, por tanto, valiosa.

Entre os cem maiores canais brasileiros, metade é produzido para crianças ou consumido por elas. Qualquer mudança focada em criança afeta metade do YouTube no Brasil
Luciana Correa, pesquisadora associada do Media Lab da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), pesquisador que lançará neste ano um livro com dados sobre o uso infantil da plataforma desde 2015

A pedido de Tilt, a Celebryts, uma startup de inteligência que monitora a plataforma de vídeo, analisou o engajamento de diversos nichos e mostrou que os vídeos para crianças possuem uma audiência mais cativa que os de games, gastronomia e beleza:

  • canais infantis: 9,34% dos inscritos veem os vídeos (um canal com um milhão de inscritos tem média 93,4 mil views por vídeo);
  • canais de games: 7,97%;
  • canais de moda e beleza: 6,14%;
  • canais de gastronomia: 4,89%.

Propaganda limitada

"Se o criador admite que aquele vídeo é para criança, o YouTube tem que aplicar políticas do YouTube Kids", diz Hartung. Isso quer dizer que o público infantil (ou quem mais assistir a esses conteúdos pensados para ele) não será exposto a publicidade de produtos de beleza, fitness, apps de namoro, bebidas, alimentos, comunidades virtuais, propaganda política, instituições religiosas ou videogames.

É essa a mudança em curso. As novas regras entraram em vigor no começo de janeiro, mas desde setembro de 2019 os youtubers precisam dizer se os vídeos enviados são ou não direcionados às crianças. Essa espécie de classificação indicativa está no centro de tudo, porque é a partir dela que as outras diretrizes serão aplicadas —o YouTube criou um sistema de inteligência artificial para checar se a rotulagem está correta.

A restrição a certos tipos de anúncios certamente fará a receita dos youtubers cair, mas não é só isso. Para cumprir a exigência de não explorar comercialmente os dados das crianças, o YouTube deixará de exibir para essa parcela também as propagandas segmentadas —aquelas que usam seus gostos, sua localização ou por onde você navegou, por exemplo, para mostrar conteúdos muito certeiros. E quando a efetividade da peça publicitária cai, a remuneração também cai.

Temos uma expectativa de que, para muitos deles [youtubers], haverá uma queda na receita

porta-voz do YouTube no Google

Interação limitada

Outra consequência é que foram proibidas várias ferramentas que os youtubers usavam para interagir com o público infantil, como:

  • os comentários (o YouTube já havia desabilitado a função para alguns vídeos que mostrassem crianças, para impedir a ação de pedófilos que o espaço para indicar os momentos em que podiam sexualizá-las);
  • o super chat, bate-papo ao vivo no qual o usuário interagia diretamente com o criador e até oferecia dinheiro a eles;
  • o sino de notificação, que avisa quando há um vídeo novo;
  • as histórias, os vídeos curtos que parecem os Stories do Instagram.
  • poder salvar os vídeos em playlists.


Todas essas funções também coletavam dados das crianças para oferecer novos conteúdos.

Sem engajamento, lembra Leandro Bravo, sócio da Celebryts, as visualizações também caem —o que afeta diretamente o faturamento dos influenciadores fora da plataforma, ou seja, eles deixam de ser tão atraentes para empresas que buscam parcerias publicitárias.

Nem todo youtuber será atingido da mesma maneira, explica Bravo. Os menores tendem a ser atingidos com mais força, porque perdem a capacidade de chamar a atenção e disputar espaço com quem já está estabelecido e possui uma base de fãs cativa. "Já vemos um movimento de criadores menores indo para plataformas concorrentes, como o Twitch ou a Discord, que não têm essas restrições ainda", afirma o especialista.

O que muda para quem vê

Para quem está só assistindo, a mudança não será grande. Uma ou outra função deve sumir de alguns vídeos, já que o fim da coleta de dados em conteúdo acessível por crianças vale para todos, inclusive adultos. Nos outros vídeos, nada muda.

Há quem defenda que o fim dessas ferramentas de engajamento são um ponto importante na relação dos baixinhos com as telas. Como o sistema cognitivo deles está em formação, eles são mais propícios a cair nas arapucas da atenção:

Esse tipo de 'design persuasivo' não deveria ser usado em crianças. Elas são mais vulneráveis, e a atenção é facilmente captada. É neurológico. O controle inibitório da criança, ainda em construção, não resiste a estímulos potentes
Pedro Hartung, coordenador do Alana

Mas há quem veja isso com ceticismo. Para Luciana Correa, pesquisadora da ESPM, a restrição de algumas poucas funções não fará o YouTube perder seu encanto: "O YouTube é uma rede social, tem mecanismos interativos como dar 'like', compartilhar, assinar canal. Mas nenhuma criança o vê assim, o que ela mais faz ali é consumir [vídeos], não interagir", diz.

O que muda para quem anuncia

O fim do uso de dados em uma parcela tão grande de vídeos deve tornar a propaganda na plataforma menos efetiva, mas dificilmente isso vai afugentar os anunciantes interessados em um veículo com mais de 2 bilhões de usuários. Outras mudanças aconteceram no passado para deixá-los felizes, e assim o YouTube cede, sem se comprometer muito.

"O Google vai se adaptando para que a coisa fique dentro do ganha-ganha", diz Bravo. "Ele chega nos criadores e diz: 'se continuar do jeito que está, os anunciantes vão parar, então tem que mudar'. Se não tivessem barrado conteúdo que ensina como matar pessoas, é óbvio que o anunciante não iria se sentir à vontade para colocar dinheiro na plataforma. Mas também é óbvio que os anúncios vão continuar [agora], não existe almoço grátis. O YouTube ganha com isso."

Você é o consumidor, e o produto

No Brasil, o problema é ainda mais embaixo, porque a publicidade é autorregulada e a lei que protege dados pessoais só entra em vigor em agosto de 2020. O que tem sido feito para conter o uso indevido da coleta de informações infantis por aqui é aplicar a sessão contra publicidade abusiva do Código de Defesa do Consumidor (CDC) —a ideia é que, apesar de ninguém pagar para usar sites gratuitos com o YouTube, todos somos seus consumidores por darmos nossos dados pessoais em troca do acesso.

Foi o que fez a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que instaurou um processo para o Google explicar suas práticas no YouTube em relação às crianças. "A questão da coleta de dados em si não é uma prática ilícita. Mas temos que entender que a criança é tratada pelo CDC como alguém sem experiência, e o código fala que são abusivas as publicidades que explorem essa falta de prática", diz Leonardo Albuquerque, do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, da Senacon.

Esse também foi o caminho do Ministério Público de São Paulo ao abrir ação civil pública contra o Google e empresas que tinham seus produtos propagandeados por youtubers mirins. "A questão principal era a monetização, porque funcionava como um taxímetro. Mostrava que tinha gente ganhando dinheiro e isso foi gerando um comércio sem regulação nenhuma e que abusava das crianças", diz o promotor Eduardo Dias.

Ainda no ano passado, o MP-SP chegou a um acordo com o Google para produzir um manual de boas práticas junto com o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Para o promotor, é complicado combater a publicidade abusiva infantil no Brasil sem uma lei específica. Há uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente, mas ela não tem força de lei. Para deixar o debate menos nebuloso, o MJ-SP abriu consulta pública para criar regras para a publicidade infantil no Brasil.

O Brasil não tem uma regulamentação pormenorizada, então temos a obrigação de regulamentar como fazer. O que eu percebo como problema é que há uma lacuna [de regras] das mídias digitais em relação às mídias analógicas

Leonardo Albuquerque, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor

Unboxing e youtuber mirim na mira

Para o diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, os vídeos mais problemáticos são aqueles de abertura de produtos, os chamados "unboxings", e aquele que mostram produtos sendo usados sem aviso de que se trata de publicidade.

Os youtubers mirins são outra reclamação de ativistas. "São crianças que realizam atividade constante, remunerada ou monetizada pelo modelo do YouTube, com uma expectativa de performance externa. Elas deveriam ser enquadradas dentro do regime de trabalho infantil artístico, que depende de autorização judicial. O Google tem a responsabilidade de garantir que essas crianças tenham essa autorização ainda que já contem com anuência dos pais", diz Hartung, do Alana.

Em alguns países, como Suécia, Noruega e Canadá, a propaganda infantil é completamente proibida. O promotor do MP-SP não acha que esse seja o caminho, só defende que não se deixe tudo do jeito como está. No futuro, espera Dias, a estabilização do ambiente regulatório sobre anúncios voltados às crianças deve vir de uma convenção da Organização das Nações Unidas.

"Não dá para ser oito ou oitenta, nem a casa da mãe Joana nem haver uma restrição absoluta de liberdade."

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