O presidente internauta

Como a relação de amor de Bolsonaro com as redes sociais dá caneladas na democracia

Helton Simões Gomes e Rodrigo Trindade Do UOL, em São Paulo Arte UOL

Ele faz live e adora um emoji, principalmente o da bandeira do Brasil. Publica vídeo de folião com dedo no ânus e levando um jato de urina. Comenta boas ações de seu trabalho, como a economia de gastos públicos. Pergunta sobre fetiches. Sensibiliza-se com tragédias nacionais. Debate com quem discorda dele. Compartilha os feitos de subordinados. Toma decisões via áudio do WhatsApp. Espalha teorias da conspiração sobre golpes de Estado.

Poderia ser qualquer internauta, mas a atividade descrita acima é a de um usuário bastante importante da rede: Jair Bolsonaro, presidente da República e representante de mais de 208,4 milhões de pessoas.

Algumas de suas últimas postagens chocaram os brasileiros. O UOL Tecnologia conversou com analistas para saber: pode misturar as coisas? E a resposta foi: apesar de esse comportamento aproximá-lo de parte da população, o que pode ser positivo, há sérios riscos às instituições democráticas, às pessoas que não se alinham com seu discurso e até à própria capacidade de ele governar.

Linha direta

Bolsonaro não é pioneiro no uso de redes sociais como ferramenta de governo. Nem é o primeiro presidente a usar a tecnologia disponível na época para falar diretamente com o povo. Getulio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva tinham estratégias semelhantes, mas usavam rádio e TV, respectivamente, lembra Anthony Pereira, diretor do Instituto Brasil do King's College.

O feed de Michel Temer, por exemplo, mostra um misto de mensagens protocolares, anúncios oficiais e textos escritos pela própria assessoria de imprensa com pinceladas de tuítes que denunciavam mais o jeitão do então presidente.

O que Bolsonaro traz de novo é imprimir sua personalidade às contas presidenciais. Foi assim, com esse estilo informal, que ele ganhou o apelido internacional de "Trump dos Trópicos". O UOL Tecnologia procurou a Presidência da República, que não respondeu.

O uso de Twitter, Facebook e WhatsApp é novo, e acho que essas mídias sociais se tornarão cada vez mais comuns na política. As velhas táticas de comunicação política envolviam mensagens extremamente quadradas veiculadas em programas de TV e jornais

Anthony Pereira, diretor do Instituto Brasil do King's College

UOL UOL

Tipo Trump, mas não só...

É bem fácil associar o estilo dos presidentes de Brasil e Estados Unidos, mas embora haja semelhança, especialmente no Twitter, trata-se de um movimento maior do que os dois, acredita Brian Winter, analista de política latino-americana e editor-chefe da publicação Americas Quarterly.

Num mundo dominado pelas redes sociais, diz ele, os eleitores valorizam mais a autenticidade e a comunicação direta dos políticos do que valores, bom histórico, coerência nas ideias ou personalidade moderada.

Seja Trump, Macron, Macri ou Bolsonaro, políticos ao redor do mundo acreditam cada vez mais que Facebook e Twitter são as melhores ferramentas para falar com sua audiência - sem filtro, sem intermediário, só 'papo reto'. Eu acho que eles estão totalmente certos. A mídia tradicional é frequentemente hostil a essa nova geração de líderes

Brian Winter, analista de política latino-americana da Americas Quarterly

Além disso, há uma diferença crucial entre Trump e Bolsonaro, pontua Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas). O presidente americano usa o Twitter para abordar alguns temas com mais liberdade, como política externa, mas mantém uma comunicação formal para "jogar o jogo institucional". Já o presidente brasileiro imprimiu um estilo às suas interações nas redes sociais que tornam esse jogo irrelevante.

Bolsonaro praticamente eliminou as vias tradicionais

Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV EAESP

Celio Messias/Estadão Conteúdo

Presidente com alma de deputado

Ao longo de sua carreira como deputado federal, Bolsonaro colecionou inúmeras declarações polêmicas --algumas, inclusive, o fizeram ser acionado na Justiça. Mas, isso faz parte das atribuições da função:

"No Legislativo, não se pode colocar travas na língua de um representante do povo", afirma Roberto Romano, professor de ética da Universidade de Campinas (Unicamp).

Só que agora ele ocupa não só outra esfera de Poder, como é o chefe do Executivo. "Em um sistema representativo de governo, não cabe a um magistrado a liberdade de fala que possui o senador ou o deputado quando está na tribuna", diz o professor.

Romano observa ainda que o presidente não se acostumou às restrições que o mais alto posto da República exige e se dá as mesmas liberdades de um cidadão comum.

Há toda uma doutrina da razão do estado que mostra que o chefe de estado não pode falar o que vem imediatamente a sua língua. Quando fala o que bem quer, o chefe de estado pode trazer a público assuntos que são delicados e estratégicos. Ele não tem direito de expor para seus eleitores conversas que são de ordem governamental.

Roberto Romano, professor de ética da Unicamp

Reprodução/Twitter Reprodução/Twitter

Segundo os especialistas ouvidos pelo UOL Tecnologia, a confusão entre os limites das duas funções faz Bolsonaro passar longe da liturgia do cargo.

Exemplos não faltam, mas a sequência de postagens do "golden shower" no Carnaval é simbólica. Atitudes assim têm o poder de queimar o filme não só do presidente, mas do Brasil no exterior -- ainda assim, estão longe de poder embasar um pedido de impeachment.

Foi petulante. Pareceu grosseiro e inapropriado para um Estadista

Anthony Pereira, diretor do Instituto Brasil do King's College

É muito vulgar. Não cabe a um presidente postar cenas como essas

Maria Tereza Sadek, professora de ciência política da USP

Não existe liberdade de expressão para um chefe de Estado

Roberto Romano, professor de Ética da Unicamp

Jogando para a torcida

É claro que Bolsonaro adotou esse estilo para aproximar-se da população. "A dúvida é que população seria essa", diz Romano.

O Brasil tem 208,4 milhões de habitantes, mas a internet não é acessada por 100% das pessoas. Das dezenas de milhões de internautas do país, nem todos usam as redes sociais a que o presidente recorre, como Facebook, YouTube, Twitter ou Instagram. Menos ainda são seguidores do presidente.

Ou seja, Jair Bolsonaro é o presidente de mais de 200 milhões de pessoas, mas se comunica só com uma parcela delas. "Ele foi eleito para um cargo que o faz responder diante de todos. Ele não foi eleito para os bolsonaristas ou para os evangélicos, mas para todos os brasileiros", diz o professor da Unicamp.

Seguido por alguns milhões aqui e ali (números comemorados quando sobem), o político aposta forte em temas manjados para engajar seus fãs, reservando espaço menor para assuntos de importância palpável e geral, como o pacote anticrime e a reforma da Previdência. Prefere criticar a Lei Rouanet, o socialismo e a esquerda.

Ele confunde seu público, ou seja, seus eleitores, com a cidadania brasileira. Esse é um ponto que diminui a relevância do cargo -- o que é um elemento gravíssimo de atentado ao direito público, porque reduz a confiabilidade da sociedade na função

Roberto Romano

O tamanho da audiência da Bolsonaro nas redes sociais

  • Facebook

    10,69 milhões de seguidores

  • Instagram

    10,9 milhões de seguidores

  • YouTube

    2,3 milhões de seguidores

  • Twitter

    3,73 milhões de seguidores

Eduardo Anizelli/Folhapress

Atropelo da democracia

Ao jogar para agradar seu público cativo e alfinetar opositores, Bolsonaro reproduz uma estratégia bem-sucedida durante a campanha, mas que, na Presidência, pode ter um custo elevado. As caneladas, como o próprio presidente chama gafes e deslizes, atingem em cheio a democracia.

"Ele fica mais próximo dos brasileiros, sim, mas sem intermediação dos partidos políticos ou todas as instituições representativas. Isso traz riscos", diz Maria Tereza Sadek, da USP.

Bolsonaro endossa grupos sociais de pressão que desprezam estruturas da democracia representativa, acrescenta Romano. "Como a unanimidade da opinião pública é coisa rara, quase impossível, a sociedade se divide em partidos, que são a maneira de parte da população representar os seus objetivos, ideologias e programas." Essa é a essência da coisa.

"O que está ocorrendo é que Bolsonaro confunde o cargo de presidente de todos os brasileiros como o de chefe de uma facção", critica o analista.

Os efeitos disso, você vê com frequência no noticiário. E repetem o mesmo roteiro:

  • o governo federal toma uma decisão;
  • bolha nas redes sociais reclama;
  • rola um desgaste;
  • o responsável pela medida é forçado a voltar atrás.


Esses recuos evidenciam disputas internas e enfraquecem peças importantes da cúpula do governo --caso do ministro da Justiça, Sérgio Moro.

O Twitter toma vida

  • Bolha x Moro

    A bolha reclamou da nomeação da especialista em segurança Ilona Szabó para suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Apoiadores de Bolsonaro até criaram a #IlonaNao. Criticavam o fato de ela ser contrária à flexibilização da posse de armas, um dos primeiros atos do presidente. Resultado: Moro teve de recuar.

  • Olavo x MEC

    A pressão do guru do governo Olavo de Carvalho resultou na exoneração do secretário-executivo do Ministério da Educação, Luiz Tozzi. Ele reclamou no Twitter que o trabalho de seus indicados, como o titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez, estava sendo travado por servidores.

    Imagem: Reprodução
  • Bebianno x Bolsonaro

    Apontado como responsável pelas candidaturas laranjas do PSL, Gustavo Bebianno foi desmentido na rede social pelo filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), que usou um áudio do WhatsApp para rebater o então ministro. Depois vazaram todos os arquivos e ficou claro que Bebianno falava a verdade. Não adiantou: ele foi exonerado.

Hordas de perseguição

A queda de Gustavo Bebianno novamente evidenciou o internauta Bolsonaro sentado na cadeira de presidente: o uso sistemático do Twitter para decidir assuntos do governo. Romano recorre às ideias descritas pelo Nobel de Literatura Elias Cannetti, no livro "Massa e Poder", para explicar o potencial destruidor dessas táticas.

Na internet, você constitui o seu grupo que odeia o outro grupo, é uma horda de perseguição. Ao mesmo momento em que persegue uma horda, você está sendo perseguido também. Quando o líder de uma das hordas é o presidente, há a dissolução dos elos sociais, desaparecimento da lei e ordem, você não tem uma sociedade regida por lei e comportamentos normativos.

Sadek completa: "A democracia representativa está assentada na ideia de que há partidos políticos, Congresso, Câmara. Não é um líder falando com a massa".

Vera Chaia, cientista política e professora da PUC-SP, argumenta que "um governador tem de saber que existem relações entre os poderes". "Bolsonaro está menosprezando isso, ele acha que é só o Poder Executivo e se esquece que existem até dentro de seu governo grupos que não aceitam essa forma de atuar", diz.

E agora? Espere sentado...

Pode ser inconveniente, sem decoro, incompatível com um Estadista, mas fato é que o estilo de um Bolsonaro - ou um Trump - nas redes sociais surte resultado. Por que mudariam o que está dando certo para seus objetivos?

O Trump está nessa há dois anos, [Benjamin] Netanyahu há quase quatro anos. A tendência é durar. Talvez ela se complemente com outras estratégias. Certamente não vai ser uma questão de momento

Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV EAESP

Para os analistas ouvidos pela reportagem, o presidente brasileiro é apenas mais um líder da atualidade com personalidade forte, desbocado, que apela para a divisão em vez da união em sua retórica política. Funciona, porque inflama tanto sua base quanto opositores, que têm estado em constante conflito, sem diálogo, pelas redes sociais.

"Não deveríamos nos surpreender que a comunicação facilitada pelas redes sociais é frequentemente superficial, emocional, conflituosa e estimula um comportamento de rebanho sem reflexão", analisa Anthony Pereira, do King's College.

Pelo visto, quem acredita que isso vai diminuir pode ficar "chupando o dedo" enquanto espera.

Em todo o mundo as instituições estão perdendo força, e indivíduos fortes são a moda do momento. As pessoas amam o choque e a adrenalina da controvérsia online. É uma receita para políticas ruins e polarização, mas ainda não vimos um verdadeiro desastre resultado dessa nova geração de líderes. Até acontecerem consequências severas e negativas, acho que essa moda vai continuar

Brian Winter

A falta de decoro de Bolsonaro inflamou internautas, que cogitaram um processo de impeachment. Até um dos autores do pedido de deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, o jurista Miguel Reale Jr, acha que caberia uma ação. Mas, para Romano, o impeachment da Dilma baseou-se na falta de decoro quando ela não levou a sério as contas públicas.

A ideia de iniciar um processo de afastamento por um tuíte não animou nem os deputados da oposição e é encarada como exagero pelos que, apesar das críticas, apoiam Bolsonaro. "O presidente não precisaria ter externado sua preocupação com os excessos do Carnaval com tantas cores, mas daí a falar em impeachment tem uma distância enorme", disse ao "Estadão" a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), também uma das autoras do impeachment de Dilma.

Diante desse cenário, Winter faz uma projeção preocupante: "Infelizmente nós talvez tenhamos que reaprender algumas duras lições de história sobre o que acontece quando cultos de personalidade e líderes fortes individualmente chegam ao poder."

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