Novas fronteiras

Como a tecnologia está moldando o futuro da educação no Brasil e transformando a sala de aula

Marcella Duarte Colaboração para Tilt

Cinco horas ou mais na escola todo dia, grade curricular engessada, provas em papel, apostilas, quadro negro, carteiras enfileiradas. Isso até funciona, mas não é de hoje que essa educação é questionada. Existem muitas iniciativas, dentro e fora do Brasil, que trabalham para traçar outros caminhos, mas nunca foi tão urgente aposentar, pelo menos em parte, velhos modelos.

O que vivemos agora, com aulas presenciais suspensas e distanciamento social provocado pelo coronavírus, é uma excepcionalidade. Não quer dizer que todas as escolas passarão por uma mudança profunda de método. Mas, fica uma lição: muitas tarefas escolares podem, sim, ser resolvidas online.

"Já faz tempo que o modelo de um professor transmitindo conteúdos que podem ser acessados em apenas um clique perdeu o sentido", diz Lilian Bacich, cofundadora da Tríade educacional, coordenadora de pós-graduação em metodologias ativas no Instituto Singularidades e especialista no "Movimento pela Base", que articula iniciativas pela melhora da qualidade e equidade da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Fica ainda mais evidente que a função do espaço de aprendizagem é outra: passa por desenvolver habilidades cognitivas mais complexas, exigir que os estudantes colaborem e interajam na produção do próprio conhecimento e construam ferramentas que só a sociabilidade pode trazer.

Especialistas ouvidos por Tilt defendem metodologias que colocam o aluno como protagonista, e não como expectador, uso inteligente do aparato tecnológico e um debate maior sobre quais habilidades serão valorizadas daqui para frente. "A tecnologia ajuda muito, não como fim em si mesma, mas como uma ferramenta para estimular investigação, colaboração e produção de conhecimentos, para engajar os estudantes e motivá-los a querer aprender", diz Bacich.

O que é um escola moderna?

Educar bem é apenas fazer contas rapidamente e tirar notas altas? Ou é saber programar sistemas e se preparar para um mercado de trabalho que sequer existe ainda? Ou é alcançar conhecimentos sem fronteiras? Todas essas habilidades podem ser melhoradas com o uso da tecnologia e, especialmente na quarentena, há muitos alunos ocupando grande parte do tempo com vídeos, lives, roteiros de estudo e afins. "Mas também não é só essa educação que queremos", diz Vinícius Moisés, CEO da startup Alice Education e especialista em adaptações e inovações de conteúdos educacionais. "Os pais devem estar vendo a falta que a escola faz. O desenvolvimento que vem com a socialização é insubstituível."

No ensino fundamental 1 (até 10 anos de idade), os especialistas consideram inclusive que o mais importante é o convívio social. No fundamental 2 e médio (10 a 17 anos), a escola tradicional é parcialmente substituível na parte do conteúdo programático. Já no superior, recursos tecnológicos podem ajudar a formar cada vez mais pessoas e transpor sérios obstáculos de acesso.

"Crianças e jovens precisam de trabalhos em grupo, projetos, atividades culturais e sociais, interagir com entorno da escola, quebrar os muros, desenvolver coletividade, respeito e habilidades socioemocionais, como parte da escola e não como recreio. Isso é educação integral"
Vinícius Moisés

O home schooling involuntário mostrou que cabe repensar o ensino e abrir espaço para computadores, gadgets e até inteligência artificial, robôs e outros recursos que tragam mais conexão com habilidades do futuro. Mas, enquanto a aula for baseada num professor que fala e escreve na lousa e em alunos que estudam um livro e fazem uma prova, os avanços que tecnologia pode proporcionar serão muito limitados.

A educação do futuro não depende de dispositivos sofisticados ou projetos caros —e, definitivamente, não vem de migrar a sala de aula para o virtual. "A escola precisa repensar a forma de ensinar, porque é onde preparamos os alunos para a vida. Não é sobre os óculos 3D, que são forçação de barra, já que ninguém usa no mundo real, é sobre práticas mais modernas de pedagogia, que estão moldadas de um jeito que a tecnologia faça sentido", diz Günther Mittermayer, especialista em tecnologia da informação e cofundador da rede Escola Mais.

"As lousas digitais foram febre nos anos 2000 e viraram um simples quadro branco. As TVs em sala de aula não prendem mais a atenção dos jovens. Os tablets são legais se usados em uma ou outra aula, mas em todas cansam"
Victor Sobreira, professor de história e pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais da Universidade de São Paulo (USP)

Ele, que encabeça projetos criativos de ensino com apoio de tecnologias no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, defende que o objetivo das iniciativas deve ser transmitir aos alunos habilidades como cooperação, pensamento global e engajamento para questões do mundo real, independentemente os dispositivos usados.

Minecraft como estímulo

Sobreira achou uma solução criativa e de baixo custo para tornar as aulas mais envolventes: celulares e Minecraft. Com blocos do game, os alunos reconstroem monumentos históricos para poder "visitá-los". Numa das atividades, a garotada do 7º ano reproduziu o Mosteiro de St. Gall, na Suíça. "Pesquisadores acharam a planta original, que tem mais de 1.200 anos. Divididos em grupos, os alunos cooperaram entre si por quase um mês para construir esse conhecimento", explica o professor.

Com os celulares, criou uma atividade lúcida inspirada no método clickers —a ideia original é usar controles remotos para clicar nas teclas e responder perguntas de múltipla escolha, mas isso já pode ser feito com smartphones e o app Plickers.

Sobreira faz uma pergunta e todos os alunos levantam cartões impressos com ilustrações que funcionam como um QR Code (cada posição representa uma alternativa). O professor usa seu celular, como se estivesse filmando a cena, para que o app leia as imagens e gere as estatísticas, automaticamente e em tempo real.

"É possível saber quem acertou cada questão e qual delas teve mais acertos. Se vejo que muitos acertaram, passo para a próxima; se muitos erraram, explico mais", contou, ressaltando que os cartões podem ser usados em todas as aulas e em diferentes turmas —não é preciso imprimir novos, o que ajuda a diminuir custos.

Mão inteligente amiga

O bom uso da tecnologia pode ser revolucionário, especialmente quando pensado para tornar o ensino mais personalizado, flexível, motivador e também mais inclusivo. Na escola, defende Bacich, cabe juntar muitas estratégias para buscar conhecimentos onde for, no tempo e no modo de cada aluno —seja usando gamificação, explorando o mundo maker, estudando robótica, trabalhando em projetos ou partindo outras áreas que estimulem o aluno a construir algo e ir atrás.

A tecnologia inclusive barateia e aumenta o acesso à educação, diz Moisés, na medida que facilita a formação de professores, profissionaliza gestores de escolas, agiliza processos a partir de evidências baseadas em dados e pode até economizar muito tempo gasto com avaliações —uma das grandes apostas no curto e médio prazo é no uso de inteligência artificial para correção de provas, por exemplo.

"A verdadeira disrupção é quando conseguimos democratizar uma tecnologia que até então era centralizada, quando levamos do sistema privado para o público e ganhamos escala. Aí não é um problema de tecnologia ou dinheiro, o problema é que os desenvolvedores não entendem o sistema escolar e não acham uma solução para colocar na escola pública", afirma ele.

Isso é especialmente relevante num país com as dimensões e desigualdades do Brasil, onde 30% da população sequer tem acesso à internet, segundo pesquisa TIC Domicílios de 2018. Diante da falta de condições mínimas para um enorme contingente de alunos e de metade das escolas desconectadas, tudo que vier para ajudar a transpor barreiras é válido e inovador.

Assim como o livro didático funciona porque, apesar da produção centralizada e distribuição cara, atinge um volume considerável de escolas, outras plataformas podem ter essa função de simplificar e garantir ainda mais capilaridade. "Qualquer área de conteúdo que passa por uma transformação digital acaba por democratizar sua lógica de produção e baratear sua distribuição. Isso aconteceu com a música, os jornais e vai chegar ao mercado editorial de educação", prevê o especialista.

Dados otimizam recursos

Na Escola Mais, a tecnologia é fundamental para levar educação integral e de alto nível para bairro mais periféricos da cidade —a média da mensalidade é R$ 700. Todo aluno do ensino fundamental e médio tem à disposição um Chromebook (notebook da Google) para usar em roteiros de estudos preparatórios para as aulas. A turma primeiro acessa videoaulas e exercícios online, para estudar no próprio ritmo, dentro da escola. Depois, assiste à aula presencial.

"Não precisamos equipamentos caríssimos para criar uma estrutura escolar inovadora. O learning analytics [análise de aprendizagem] é o principal recurso tecnológico que usamos para deixar o ensino mais individualizado", diz Mittermayer, referindo-se ao sistema de mineração de dados educacionais que gera relatórios sobre o aprendizado de cada aluno. Isso serve para personalizar o ensino e otimizar o tempo do docente, o recurso mais importante e caro da escola.

As estatísticas feitas a partir do Big Data servem para ajudar o professor a ter o controle, por exemplo, de quem teve mais dificuldade, quem precisa de reforço, quanto já foi absorvido e quais ferramentas foram mais úteis para ensinar. "Quando chega para dar aula, ele não precisa começar do básico. Pode partir para conteúdos mais interessantes e com a turma equalizada, para evoluírem juntos", explica. "Ele sabe em qual sala precisa ir mais devagar ou em qual parte pode ser mais ousado. O aluno já chega com dúvidas e provocações, não precisa de uma prova."

Inclusão pelo ensino superior

Dar acesso a tecnologias é fundamental para colocar os estudantes no caminho das oportunidades, especialmente quando chegamos ao ensino superior. Nesse sentido, o EAD é um grande aliado. Antes, ele era privilégio de poucos que tinham acesso a computadores, internet e podiam pagar um curso online nas poucas instituições privadas que os ofereciam, hoje o cenário começou a mudar —ainda que esteja longe de quebrar todas as barreiras geográficas e socioeconômicas.

Em 2019, o número de calouros em cursos de graduação a distância superou pela primeira vez os presenciais e virou a modalidade educacional que mais cresce no país. Foram mais de 1,4 milhão de alunos inscritos no EAD (52%) contra 1,2 milhão (48%) na modalidade tradicional, segundo projeção da consultoria educacional Atmã Educar feita a partir dos números oficiais do MEC (Ministério da Educação) do ano anterior. Em 2013, essa proporção era 22% para 78%.

Além da chance de conciliar com um emprego, ter horários alternativos e evitar deslocamentos para quem tem dificuldades de locomoção, os valores mais acessíveis e o reconhecimento do mercado ajudaram a impulsionar esta procura. Segundo o levantamento da Atmã, a média da mensalidade de uma faculdade no EAD é de R$ 250, contra R$ 550 da presencial, mas em alguns casos a versão a distância custa um terço da tradicional.

Estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) feito em 2018 mostrou que, só no ensino superior, já são cerca de 15 mil polos de EAD privados e públicos no Brasil. Um crescimento vertiginoso deste significa que as opções são as mais variadas, inclusive em relação à qualidade e preços. Algumas das faculdade mais renomadas já possuem opções de cursos virtuais, embora só 5% das matrículas no EAD são nas públicas.

A USP, por exemplo, não tem cursos de graduação a distância, mas mantém parceria e cede professores para a Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), uma única instituição nacional exclusiva para graduação remota. No Rio de Janeiro, há um consórcio de instituições, o Cederj, que oferece cursos online por meio de entidades como UFRJ e UERJ. Desde o início deste ano, o MEC permite que todos cursos presenciais tenham até 40% de sua grade online (exceto o de medicina, que pode ter até 20%), contribuindo para a tendência do modelo híbrido também no ensino superior.

A questão aqui não é substituir a faculdade tradicional, mas garantir que ela chegue a mais gente e de forma cada vez mais uniforme num país de dimensões continentais. O Brasil tem uma das piores taxas de ensino superior do mundo, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Apenas 21% dos brasileiros entre 25 a 34 anos tem formação superior, índice inferior ao registrado na Argentina (40%), no Chile (34%), na Colômbia (29%) e na Costa Rica (28%). A média entre os 45 países que fazem parte da OCDE é de 44%.

Quem é o estudante do EAD:

  • 38% deles têm de 31 a 40 anos
  • 29% têm acima de 40
  • 62% dos alunos são mulheres
  • 42% dos que prestarem Enade trabalhavam 40 h/semana ou mais
  • 70% são a primeira geração de universitários da família

* Dados de estudos da Abmes e do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)

Frentes de IA na educação até 2030

  • Tutores inteligentes

    Sistemas serão usados para ensino personalizado. Eles identificam se o aluno conseguiu aprender e qual sua emoção em relação ao tema --está cansado ou feliz? A partir daí, detectam falhas no aprendizado e sugerem, de forma autônoma, a melhor estratégia pedagógica.

  • Sem limite de idioma

    No processamento de língua natural (PLN), um computador entende e interpreta a linguagem humana. Com fones tradutores, um professor na China pode dar aula a brasileiros que não sabem mandarim, automaticamente em tempo real, eliminando barreiras geográficas

  • Jogar para aprender

    Gamificação não é usar videogame ou jogos educativos. É levar para a sala de aula conceitos usados em games, como o lúdico, a melhoria constante do "jogador" e o senso de progressão, para incentivar aprendizado, frequência e pontualidade, além de instigar o cérebro a sair da zona de conforto.

  • Robótica na grade

    A aula de robótica devem invadir o currículo escolar para fortalecer a capacidade de inovação e raciocínio lógico por meio de uma experiência criativa, com competições desafiadoras que resolvem problemas da vida real e tenham missões específicas.

  • Learning analytics

    Interpretação de ampla gama de dados produzidos por estudantes permitirá avaliar o progresso acadêmico, prever o desempenho e detectar problemas no aprendizado. É possível saber os pontos de maior dificuldade de compreensão do conteúdo ou tendência para o abandono

  • Criatividade computacional

    Atualmente ligada à produção artística, ela usa programação com modelos matemáticos e da ótica. Na educação, vai gerar exemplos e exercícios criativos automaticamente para enriquecer os conteúdos educacionais online. No longo prazo, os sistemas vão reconhecer e avaliar atividades criativas dos alunos.

* Estudo "Tendências em Inteligência Artificial na Educação", elaborado pela professora Rosa Maria Vicari, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), analisou bases de patentes em EUA, União Europeia, Canadá e Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) no Brasil, além de artigos científicos e documentos de congressos. A previsão é que, até 2030, as tecnologias listadas estarão difundidas em até 50% das escolas públicas e privadas do Brasil.

Tutores de tempos cada vez mais preciosos

É verdade que algumas profissões irão desaparecer nas próximas décadas, quando a inteligência artificial invadir ainda mais nosso cotidiano. Não é o caso dos professores. Em uma nova arquitetura pedagógica, de educação integral com recursos tecnológicos, ele assume um papel cada vez mais importante, de mentor e curador. Em vez de ser o detentor supremo do conteúdo, ele vai direcionar os alunos rumo à construção do conhecimento —e isso inclui escolher os recursos tecnológicos e digitais mais apropriados. Além disso, falta muito para que um sistema computacional seja capaz de olhar no olho de um aluno e perceber que ele está com problemas emocionais.

Para Moisés, a principal tecnologia da sala de aula ainda é o próprio professor. "Ele é a interface entre o aluno e o conteúdo. Tudo o que o ajudar a ser uma interface melhor vai entrar. Mesmo quando falamos em aulas online, é bem diferente assistir um vídeo gravado ou participar de uma transmissão pelo Zoom, por exemplo, em que o professor interage e tira as dúvidas dos estudantes. A segunda, um recurso síncrono, dá melhores resultados que um assíncrono, sem interatividade."

Para Mittermayer, essa transformação na educação também passa pelo papel do aluno. "Ele não senta na carteira e espera o professor falar. Ele vai atrás das informações, bota a mão na massa, faz a lição antes de ir para aula. Assim, gastamos o tempo mais precioso da escola, que é quando o aluno está com o professor, com atividades que só um educador pode proporcionar. A aula se torna muito mais importante e rica".

Já as plataformas e dispositivos passam a se adaptar às necessidades do corpo docente e discente, ajudando a tomar decisões mais assertivas e tornando o estudo ultrapersonalizado, sempre com o objetivo de usar recursos robóticos e a IA para tornar também as pessoas mais inteligentes.

Quando a informação está muito mais acessível e todos estão aprendendo novas habilidades, o diferencial será a habilidade de argumentação baseada em dados e de desenvolvimento de soluções para os problemas contemporâneos. Para chegar a essa capacidade analítica, os estudantes e profissionais do futuro poderão todos os recursos que tiver às mãos —mas respeito, trabalho em equipe e equilíbrio sócio-emocional nunca sairão de moda.

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