Veja abaixo parte da conversa que rolou com eles (ela foi editada para melhor entendimento):
Pergunta: Quanto tempo demora para vocês ficarem bons na moderação? Nós testamos e vimos que é bem difícil...
- Você passa por um processo de graduação. Faz duas semanas de treinamento inicial para saber as políticas gerais do Facebook, o que para eles é certo e errado. Você aprende simulando em casos reais que já foram discutidos. Nessa fase, não pegamos os casos do nosso mercado, já que a gente trabalha só com conteúdo brasileiro. Depois, você vai para a floor [como eles chamam o trabalho em tempo real].
- Lá, você precisa manter o acerto em 98%. Estamos ao vivo, então tem que ser muito rigoroso. O Facebook não quer que a gente interfira na capacidade de as pessoas discutirem livremente as coisas. Então o nível de qualidade que o Facebook exige da gente é alto, porque a gente trabalha com debate público. Não podemos ficar livres para tomar as decisões e apagar coisas de acordo com o que eu acredito. Nosso trabalho é muito interpretativo e, por isso, precisamos justificar a ação e manter o nível alto.
- Quem tem métricas melhores, acaba ganhando mais responsabilidade e recebendo tickets mais sensíveis, de alta prioridade.
Pergunta: Como isso é medido? Vocês podem pedir ajuda?
- Tem um controle de qualidade. Há um supervisor sempre revisando as nossas decisões, e recebemos um retorno das decisões que não batem com as da revisão. Mas sempre podemos argumentar cada decisão num campo [do SRT] e isso é analisado. Tem muito conteúdo que, como vocês podem imaginar, é ambíguo, cada pessoa leva para um lado. Nosso papel é sempre manter o debate dentro das políticas do Facebook. A gente pede ajuda e trabalha muito em grupo.
Pergunta: Vocês podem dar um exemplo de conteúdo ambíguo que fez vocês errarem?
- Às vezes, é questão de região. Eu sou do interior de Goiás e vejo coisas de forma diferente de quem mora em São Paulo, a vivência é diferente, as expressões são diferentes. Às vezes, são questões gramaticais, erro ortográfico, falta de vírgula. Você tem que se colocar no lugar da pessoa e entender o que ela quer falar. Isso pode ser super tranquilo ou super difícil.
Pergunta: O que acontece se vocês baixam o nível de 98%? Algum de vocês já baixou?
- Sim, sempre. É uma média mensal, então depende mais de quão regular é isso. Se você mantém sempre uma média muito baixa, os gerentes oferecem ajuda e treinamento. Tem treinamentos específicos para algumas diretrizes, então você pode fazer. Eles não avaliam número pequenos, é uma conta maior. Nós trabalhamos como um time.
Pergunta: Alguém já foi demitido por isso?
- Não, até onde a gente saiba.
Pergunta: Como vocês foram escolhidos?
- Você manda o currículo e é chamado para entrevista. Não pedem nenhuma especialidade, o mais importante é você demonstrar que tem conhecimento sobre a cultura brasileira e comprovar o idioma [português e inglês]. Não precisa ter ensino superior, mas todo mundo aqui tem. A grande maioria é muito qualificada, muita gente com mestrado. Não é fácil encontrar fora do seu país uma equipe como essa. As formações são muito variadas, mas precisa saber outra língua, tem que saber escrever... Isso ajuda a manter o nível de qualidade.
Pergunta: No que vocês são formados?
- Sociologia
- Arquiteto
- Rádio e TV e parei o Direito para vir para cá
- Relações Internacionais
- Aeromoça
- Servidor público na área de educação física
Pergunta: Vocês sentem esse clima que foi reportado pelo The Verge?
- No meu WhatsApp, eu recebo a mesma coisa que vejo aqui, uma porrada de porcaria. Se você está na internet, está sujeito ao que a gente vê aqui.
Pergunta: Mas vocês recebem assassinato, pornografia infantil no WhatsApp? Vocês, com certeza, recebem coisas aqui que a gente não recebe...
- Pornografia infantil não, mas pornografia...
- Eu, ainda bem, não tenho esse tipo de grupo no meu WhatsApp. Mas eu vejo aqui vídeo de assassinato, de gente executando pessoas. A gente precisa se prender à parte técnica do trabalho: tem uma política e temos que aplicá-la. O fato de eu saber ou não que tem uma coisa ruim acontecendo não impede que ela aconteça. Aqui, obviamente, a gente está vendo, mas eu tenho de ser prática. Eu tenho a sorte (ou azar, dependendo da pessoa) de ter as ferramentas para impedir que essas coisas fiquem ali ou não.
- É como policial. Ele está vendo um monte de coisas, mas alguém precisa fazer esse trabalho.
- Ou como um cirurgião que fica vendo o dia todo corpo aberto, mas ele está ajudando.
- Eu sou da periferia de Belo Horizonte, já tive amiga assassinada. Talvez uma pessoa do norte da Europa não tivesse a capacidade de trabalhar com conteúdo brasileiro. Mas a gente não veio da Noruega, a gente sabe o que é o Brasil.
- Na entrevista, a gente conversa com psicólogo. Então, se a gente está aqui é porque consideram que a gente é capaz de lidar com as coisas que vemos.
Pergunta: Você já chegou em casa e chorou?
- Não.
- A gente tem suporte de psicólogo o tempo inteiro, mas eu saio daqui e esqueço o que eu vi. Nunca chorei por algo que vi aqui.
- Se amanhã eu vou ficar abalada com algum conteúdo eu não sei, mas até hoje eu não fiquei.
- Eu chorei uma vez com um vídeo de um menino que ficou cego. Mas ele não tinha uma violação, era só uma história triste.
- Você não é obrigado a ficar vendo um conteúdo. Você pode sair, procurar o psicólogo, o wellness [sala de bem-estar]...
Pergunta: Vocês acham que ficaram insensíveis?
- Não acho que fiquei insensível ou fria.
- Eu fiquei mais cuidadoso e medroso. Ando de bicicleta com mais cuidado. Antes eu trabalhava com obra, hoje eu não faço nada sem capacete porque eu sei o que um fio pode fazer com a minha cabeça. Fiquei mais consistente das coisas. Acho isso até bom para mim. Estou ficando mais preparado.
- A gente aprende a separar, senão não vive. Por outro lado, fica mais sensível com o outro. Você aprende a enxergar as situações e sabe que pode ajudar. Bullying, por exemplo. Eu passei a reagir diferente a uma pessoa que fala que está com depressão, hoje eu sei a que isso pode levar. Você se torna mais cuidadoso.
- A questão é trazer o pessoal para o trabalho. Se você teve um pai que levou um tiro e vê um vídeo disso, pode ficar abalado. Já vi casos assim. O lance são os gatilhos.
- Tem dias que a gente modera mais a netinha que reportou o post da avó, porque ficou com vergonha. Em outros a gente trabalha muito porque acontecem eventos que afeta muito a mídia, como o massacre de Suzano ou as eleições.
Pergunta: Vocês perderam um pouco da fé na humanidade?
- Eu acho que reconstruí a fé na humanidade. De 50 conteúdos que as pessoas reportam, 40 são coisas bacanas. A gente vê muita coisa boa também em meio a conteúdos difíceis.
- É que as pessoas têm liberdade de reportar o que quiserem.
- Ah, eu perdi um pouco a fé na humanidade. A gente se choca com as coisas que as pessoas podem publicar, sem precisar da mídia. É um poder... As pessoas se sentem livres para fazer coisas que a minha geração consideraria absurdas. Pelo menos aqui conseguimos barrar.
- Aqui a gente pode ajudar alguém que está pensando em suicídio. Eu encaro o trabalho como uma forma de ajudar as pessoas. Se eu consigo mandar um alerta para uma pessoa que está pensando em suicídio, eu estou ajudando.
Pergunta: Vocês acham que um robô vai fazer o que você fazem?
- Nunca que um robô vai fazer nosso trabalho! Nosso trabalho é muito analítico, depende de contexto...
- Ah, acho que uma parte eles vão fazer...