Do céu ao inferno

Facily virou unicórnio fornecendo produtos baratos para classes CDE; agora, encara reclamações e demissões

Guilherme Tagiaroli De Tilt, em São Paulo Arte UOL

Uma das glórias de uma startup é virar um "unicórnio": atingir um valor de mercado acima de US$ 1 bilhão. Isso mostra que a empresa é vista com grande potencial pelos investidores.

Ainda que seja um símbolo de status, a Facily entrou neste seleto rol em meio a uma grave crise de imagem. A companhia, que vende itens direto de produtores a preços baixos para a classe CDE, acumulava mais de 150 mil reclamações no Procon-SP. A maioria, relacionada a produtos não entregues e reembolso.

Quando as queixas caíram (a última rodada de investimento ajudou a melhorar o atendimento e pagar reembolsos), veio outra bomba. Em abril, a Facily demitiu cerca de 300 funcionários (a companhia não especifica o número exato), quase 10% do efetivo.

Isso quer dizer que as queixas vão voltar? "Não, a equipe seguirá trabalhando incansavelmente para que nada volte a afetar a operação e a experiência dos clientes", afirma Diego Dzodan, presidente-executivo da Facily. Ele explica que, no ano passado, houve uma explosão de pedidos e os processos da Facily não estavam "maduros" o suficiente.

É possível dizer que o argentino Dzodan já está "graduado em Brasil". Não só por ter família no país e pela repercussão de sua startup. Antes de fundá-la, foi líder do Facebook para a América Latina, entre 2015 e 2018. Acabou ficando preso por um dia sob acusação de não cooperar com a Justiça brasileira em um caso envolvendo o WhatsApp - algo sem precedentes, mas que foi rapidamente resolvido.

Problemas à parte, a Facily passou a ter relevância em um cenário de crise por oferecer itens como arroz, feijão e óleo a preços acessíveis e frete baixo.

Em entrevista a Tilt, Dzodan falou sobre as recentes demissões, a revolução do Pix para a classe CDE e como a companhia tem lidado com os obstáculos dos últimos meses.

Demissões e reclamações no Procon

Tilt: No ano passado, a Facily foi alvo de milhares de reclamações registradas no Procon-SP. O que houve?

Diego Dzodan: Atendemos o maior mercado consumidor do país, e quando as coisas se encaixam, tudo cresce numa velocidade incrível. Em dezembro de 2020, entregamos cerca de 100 mil pedidos em um mês. Em outubro de 2021, foram 7 milhões. É um crescimento de 70 vezes.

No mundo digital, você pode contratar mais nuvem. No mundo físico, é necessário maturidade de processo e infraestrutura. Sem contar que, ao comprar algo, a pessoa tem que entender que deve ir até um ponto de retirada usando o app.

Uma série de coisas fez o negócio explodir antes de ter alcançado maturidade. Por isso, nossa resposta final foi pedir desculpas ao consumidor. Montamos um processo massivo para devolver o dinheiro para todo mundo que pediu.

Tilt: No ReclameAqui, vi muita gente se queixando de pedidos cancelados. Por que isso acontece?

Dzodan: A principal razão acaba sendo parceiros que não conseguem entregar a tempo e nós colocamos um SLA [acordo de nível de serviço]. Se ele não consegue cumprir o prazo, pedimos para cancelar o pedido e retornamos o dinheiro ao consumidor. Sempre damos a opção: um cupom (valor da compra mais 30%) ou o reembolso.

Tilt: A Facily foi considerada um unicórnio em dezembro. A última rodada de investimento não foi suficiente para segurar os funcionários recém-demitidos?

Dzodan: O mercado de startups esteve extremamente aquecido nos últimos anos, o que nos possibilitou no final do ano passado receber um aporte significativo. Porém, isso não significa que não tenhamos que conter gastos e sermos mais assertivos no nosso quadro de funcionários.

A Facily busca constante evolução e eficiência para melhorar a experiência de todos que fazem parte e interagem com a empresa. Mudanças e priorização de projetos, inclusive em times, são necessárias para isso.

Do Facebook para a Facily

Tilt: Como você veio parar no Brasil? Há quanto tempo está por aqui?

Dzodan: No total, são 15 anos de Brasil, pois vim em algumas ondas. Minha esposa é brasileira e tenho filho brasileiro. Tenho este sotaque feio [risos] de quem veio de fora, mas o resto é puro Brasil. Da parte pessoal, foi a questão típica do argentino: vir de férias para o Brasil e amar o país.

Da parte profissional, oportunidades de carreira foram me trazendo para cá. Meu primeiro trabalho foi numa empresa argentina que tinha base aqui. Depois fui para a SAP [empresa de software corporativo], ocupando um cargo de liderança para a América Latina e posteriormente a presidência no Brasil.

Antes da Facily, ocupei o cargo de liderança no Facebook [agora conhecido como Meta] para a América Latina.

Tilt: Lembro que, no seu tempo de Facebook, ocorreu sua prisão ligada a uma decisão judicial para obtenção de dados de criminosos que se comunicavam pelo WhatsApp. Como foi essa experiência?

Dzodan: Do ponto de vista pessoal, foi super tranquilo. Um juiz estava solicitando dados do WhatsApp para pesquisar uma situação que parecia boba e tinha um ato criminal.

Foram pedidos dados que não existiam e o Facebook tinha explicado isso. Mesmo assim, houve esta ordem de detenção, como uma forma de forçar a empresa a entregar as informações. O fato é que não tínhamos mesmo esses dados e a situação foi resolvida em pouco mais de um dia.

Tilt: De onde veio a ideia de sair do Facebook e fundar a Facily?

Dzodan: Fui visitar uma empresa na China e eles estavam usando serviços de mensagens para permitir que pessoas se juntassem para fazer pedidos de produtos em grupo, diretamente de produtores ou fabricantes.

Pensei: putz, isso no Brasil seria perfeito. Imaginei as pessoas compartilhando uma boa oferta para que os amigos também se beneficiem. Depois dessa visita, quis fazer algo de impacto direto, pois, no geral, existe muita ineficiência de intermediação.

Tilt: Como é isso de tirar a intermediação da venda de produtos?

Dzodan: Um caso típico são as frutas e verduras. O produtor nunca vende para o consumidor. Quem é pequeno, às vezes, não consegue encher um caminhão, pois o custo do frete é caro. Aí, ele acaba vendendo para um intermediário, e este, por sua vez, leva até um Ceasa ou a um mercado.

Nossa ideia é tornar esta venda direta mais eficiente e, assim, conseguir comercializar itens mais baratos do que as pessoas estão acostumadas. Um produto que sai do produtor custando R$ 2 chega muitas vezes no mercado por R$ 8.

Pensamos neste modelo de "desintermediação" para levar preços menores justamente para a base da pirâmide de consumidores, que hoje é quem mais precisa, e são excluídos do comércio eletrônico.

As classes C, D e E praticamente não compram online, pois não conseguem pagar o frete. Se você tem pouco dinheiro, você caminha 2 km para fazer sua compra e não ter gastos a mais.

O Pix mudou tudo

Tilt: Como é empreender no Brasil?

Dzodan: Tem sido muito positiva a experiência. Se você conseguir algo que faz sentido, cresce em escala global.

Gosto sempre de contar para os estrangeiros sobre o Pix. Estamos acostumados, mas é uma forma de pagamento impressionante. Praticamente todos têm acesso e o dinheiro sai da conta na hora para a outra pessoa.

Antes do Pix, a execução de pagamentos era um tema complicado. Pense que a base da pirâmide não tem cartão de crédito. E boleto era muito caro de processar. O Pix resolveu todos os problemas.

Tilt: Lembro que, no início, vocês se vendiam como um "Uber da beleza", e não um app para compra de produtos. O que aconteceu?

Dzodan: A verdade é que achávamos o conceito de "compras em grupo" muito complexo. Começamos como um marketplace de serviços, e o que mais ganhou força foi o de manicures [era possível encontrar um profissional próximo da sua casa].

Paralelo a isso, estávamos fazendo o marketplace de produtos. E quando ele entrou no ar, começou a funcionar com um crescimento vertical desde o dia 1. Em uma startup com pouco recurso, onde você vai investir? No negócio com maior potencial.

Tilt: A que você atribui a popularidade da Facily?

Dzodan: Pense numa pessoa que tem uma renda de R$ 2 mil, que tem família e outras contas para pagar. Ela não consegue pagar R$ 5 no kg de laranja, mesmo sem pagar frete. Na Facily, ele conseguia por R$ 1,50 com frete incluso.

Para atender a estes consumidores, criamos um modelo de logística de baixo custo. Entregamos nossos pedidos por meio de pontos de retirada - geralmente, comércios locais. Temos 10 mil pontos espalhados nas 9 cidades em que operamos. Deixamos os itens lá, e o cliente vai até o local buscar. Isso nos permite ter um custo de logística baixíssimo.

Se você compra no Mercado Livre, o motorista fica dedicado a entregar apenas o seu pedido até o produto chegar até você. Nós entregamos dezenas de produtos juntos num ponto de retirada. Com isso, conseguimos atender a base da pirâmide sem cobrar frete.

Por outro lado, teve a pandemia, que causou queda de renda para as famílias devido à redução de vagas e à inflação. O efeito colateral é o encarecimento dos itens.

Oferecer um preço menor para uma massa excluída de e-commerce, e que agora pode comprar Pix, gerou uma onda de consumidores usando o app.

Tilt: Como vocês ganham dinheiro?

Dzodan: Somos um marketplace. O coração do negócio é de longo prazo, e muitos dos itens à venda somos nós que compramos para gerar liquidez.

Este negócio de compra e venda gera uma dinâmica, que permite chamar outros parceiros e mais clientes. No fundo, cobramos uma pequena comissão das transações feitas pelo app de quem quer vender na nossa plataforma.

Com essa comissão, pagamos as contas de logística e não precisamos que nem o vendedor nem o cliente paguem custo de frete.

Estamos também desenvolvendo um sistema de propagandas dentro da plataforma. Se você tem um vendedor de bananas e quer vender um pouco mais, esses produtos podem ser priorizados para que tenham um pouco mais de volume.

O que vem a seguir para a Facily

Tilt: Atualmente, a Facily está focada em produtos. A ideia é ser uma solução completa de mercado ou um app para compra casual?

Dzodan: A ideia é atender o maior número de demanda de nossos clientes e com o melhor preço que pudermos. Temos inúmeras categorias que podemos entrar, mas que a desintermediação não cria valor.

Um exemplo: um setor que não tem valor muito grande é o de recarga de celular. Não tem muito o que "desintermediar". Mesmo que a gente ofereça recarga, a operadora é extremamente eficiente para chegar ao consumidor. Nessa cadeia não criamos valor. Então, é um setor que provavelmente tem pouco sentido.

Agora, papel higiênico e detergente para lavar a louça são itens diferentes. Você conecta o fabricante diretamente com o consumidor e dá para vender esses produtos a 40% do preço do supermercado.

Tilt: O que falta para a Facily crescer ainda mais? Precisa de mais gente conhecer o aplicativo? O que você pode falar do futuro da Facily e o que vocês vislumbram?

Dzodan: São duas coisas: em primeiro lugar continuar amadurecendo o modelo de operação logística. A forma em que nós operamos não existe no resto do mundo. Nem a Pinduoduo, a empresa chinesa que nos inspirou, lida com logística. Tem operadores logísticos de baixíssimo custo que permitem que eles só se concentrem na parte transacional. E que a parte física seja operado por outra empresa.

Nós não temos isso. Tivemos que montar tudo. Sempre vai precisar de melhoria contínua para que seja mais confiável o tempo de entrega e que possamos reduzir este tempo.

Outra área que está crescendo são os revendedores na plataforma. A gente está oferecendo um canal de baixo custo para os lojistas que querem vender online.

Tilt: Já vi usarem o termo "compra coletiva" para definir a Facily. Em meados de 2010, havia vários serviços do tipo e a maioria deles fechou ou perdeu relevância. O que aconteceu?

Dzodan: Tem uma diferença fundamental entre os dois modelos. Exemplo: a gente consegue vender a dúzia da banana por R$ 2 em vez de R$ 8. A principal razão é tornar a cadeia mais eficiente. Eliminamos um intermediador - o mercado central ou centro de distribuição.

Naqueles modelos de compra coletiva, o que você tinha era, na verdade, uma agregação de demanda.

Se você, cliente, pagava metade do preço em uma pizza, não era por que a pizzaria gastava menos para fazer seu alimento. Ela ia gastar o mesmo, só que teria muito mais fregueses. Então, você agregava clientes, mas não mudava o que a gente chama de unit economics - o quanto você ganha ou perde por transação.

No caso da pizza, o unit economics é o mesmo, pois o custo da pizza não era alterado. Era uma estratégia para atrair mais clientes. No nosso modelo, tentamos ter eficiência. É muito mais barato vender uma banana na nossa plataforma que no mundo físico.

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