Seremos chipados?

Você pode até torcer o nariz para esse futuro que está na palma da nossa mão, mas há opções interessantes

Fabiana Uchinaka e Matheus Pichonelli De Tilt, em São Paulo Ricardo Davino/UOL

Um biochip implantado na pele pode resolver de vez a sua rotina de pegar chaves e carteira antes de sair de casa. É o adeus a chaveiro, crachá, passaporte, cartão de crédito, RG ou bilhete único. A liberdade está na palma da sua mão, que também vira token de banco ou senha de email, destrava seu celular e liga ou tranca seu carro.

Ok, esse papo parece muito surreal. Mas, se você pensar, as pessoas usam gadgets vestíveis, como smartwatchs e pulseiras inteligentes que monitoram sinais vitais 24 horas por dia e não precisam ser tiradas nem para dormir ou tomar banho. Ninguém vê problemas apocalípticos num marca-passo, em contraceptivos implantados sob a pele, na lente de contato que ajuda diabéticos... Fora que o celular virou uma extensão do corpo e já moldou nosso cérebro.

Então, há quem defenda que a tecnologia está aí para ser incorporada... literalmente. Você topa este futuro?

Ricardo Davino/UOL

Mário Gazziro costuma esconder dos alunos e conhecidos o "chipzinho" instalado na mão esquerda. "As pessoas passam a ter medo de mim, e algumas até se afastam", conta o professor de Engenharia de Informação na Universidade Federal do ABC (UFABC) e especialista em projeto de circuitos integrados digitais e RFID (Identificação por Radiofrequência, em inglês).

A razão para o horror sempre que a palavra biochip ou microchip aparece é uma velha fake news, que se espalhou com o pastor norte-americano Paul Begley num vídeo de 2012 (visto por mais de 1,4 milhão de pessoas). Ele mistura o implante na mão com uma passagem bíblica que diz que as pessoas serão marcadas quando o apocalipse estiver chegando.

"A primeira coisa que me dizem é que se trata da marca da besta", confirma Gazziro. "Daí você vê a resiliência de uma notícia em não sair do inconsciente popular. Até alunos do segundo grau, que eram muito pequenos para terem acompanhado essa história na época, sabem do assunto."

A história fez inclusive o professor passar por apuros: uma pretendente, com grandes chances de virar namorada, fugiu do segundo encontro quando soube do chip. A moça era muito religiosa, lembra ele. Não deu nem tempo de explicar que a chance do chip ter um número 666 era ínfima.

"Não tem qualquer nexo acusar um chip sob a pele, que carrega números de 13 dígitos, todos diferentes, gerados em fábrica justamente para diferenciar na identificação", gostaria de ter dito. "Eventualmente poderia aparecer um 666 em meio a todo esse fluxo de números, do mesmo jeito que pode aparecer um número 666 no seu extrato bancário."

Os biochips costumam ser todos muito parecidos, seguem a lógica da imagem acima. Em geral, eles possuem uma memória programável de menos de 1.000 bytes, que funciona como um pen drive de arquivos digitais (cartões de visita, informações de saúde etc.), e uma área criptografada, onde ficam senhas e códigos de acesso.

Cada chip tem um número de identificação único (UID), que deve ser cadastrado nos leitores que serão usados —por exemplo, a fechadura inteligente da sua casa ou a catraca do seu trabalho. A troca de informações chip-leitor acontece por ondas de rádio:

  • RFID (Radio Frequency Identification): a etiqueta só responde a interrogações enviadas pelo leitor, numa distância que pode chegar a dezenas de metros;
  • NFC (Near Field Communication), subdivisão do RFID criada por fabricantes de celulares: etiqueta e leitor trocam informações em duas vias, numa distância de no máximo 10 cm.

O alcance limitado oferece maior segurança na comunicação e dificulta ataques.

Sem GPS, chips não são capazes de monitorar você

Profecias religiosas e lendas urbanas à parte, o uso de chips em seres humanos poder ser, sim, controverso. Mas por outros motivos: vamos ser monitorados? É o fim da nossa privacidade? Grandes empresas vão controlar muito mais nossos dados?

Em primeiro lugar, é importante deixar claro que, do jeito como é feito hoje, o biochip não pode ser rastreado, porque não possui sistema de georreferenciamento acoplado, ou seja, não tem GPS. Sua antena é tão pequena que não consegue enviar um sinal de satélite.

Além disso, ele sequer conta com fonte de energia própria ou poder de processamento para se comunicar com as redes 3G, 4G, 5G —ao contrário do celular que você tem nas mãos, que provavelmente está enviando sua localização para o Google e outros sistemas de GPS o tempo todo.

Pode ser que um dia ele rastreie pessoas, mas para isso seria necessário montar uma rede de detectores, que ainda não existe. Os leitores de RFID atualmente instalados em portas de lojas e supermercados para evitar furtos, por exemplo, passariam a informar a entrada e saída de pessoas.

"Embora viável, isso talvez nunca se torne uma realidade, pois esses leitores fazem parte de sistemas de baixo custo dedicados para evitar furtos apenas", acredita Gazziro. "Seria algo como o rastreio de pessoas por detecção da íris, como no filme 'Minority Report'. No filme, isso serve tanto para apresentar aos clientes produtos de seu gosto pessoal mediante uma identificação automática, quanto para alertar autoridades em casos de pessoas procuradas."

O monitoramento por câmeras e reconhecimento facial, neste sentido, já está muito mais avançado. Na China, inclusive, ele já acontece em larga escala. Nos EUA, 50 milhões de câmeras de segurança podem ser usadas pela polícia associadas a tecnologias de identificação de pessoas.

Biochip é vendido por R$ 349,90 pela internet

Ter um biochip é muito mais simples do que você imagina: basta entrar num site e comprar o seu. A Project Company, que atua desde 2013 no Brasil, vende-o por R$ 349,90 (com seringa estéril para implantação inclusa), por exemplo. Os EUA aprovaram o dispositivo para aplicações médicas desde 2004 —e nunca registrou problemas. Por aqui, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) disse que não há regulamentação específica para esse tipo de procedimento.

Há uma seção no site da Project Company dedicada a responder perguntas comuns de interessados. Selecionamos algumas clássicas:

É possível clonar o chip? Talvez.

Faz mal para o corpo? O chip deve ser colocado entre os ossos do polegar e dedo indicador, local ideal por seu baixo risco de danificar nervos, vasos sanguíneos e tendões. Deve-se evitar dobras, que podem causar problemas de ruptura e rejeição.

O implante deixa cicatriz? Fica uma cicatriz pequena, que se torna imperceptível após algumas semanas. Não há sutura na implantação.

É fácil de remover? Sim. Ao contrário dos implantes para animais, os chips para humanos não são revestidos com biobond. Basta uma pequena incisão de cerca de 3 a 6 mm para tirá-lo.

Rola praticar esportes ou lutas marciais? Os implantes são encapsulados em vidro bio-seguro, mas não são indestrutíveis. Das centenas de chips instalados corretamente no local sugerido (entre o polegar e o dedo indicador da mão) não há relatos de quebra, segundo a empresa.

Quem tem implante sofre com detectores de metais ou exames de imagens? Não, a quantidade de metal do chip é a mesma de uma obturação e eles são compatíveis com máquinas de raio-x e ressonância. Só há um pequeno desfoque da imagem na área em torno do implante.

O procedimento de implante dói? Dói como uma beliscada.

Se animou? Quem deve colocá-lo é um profissional de modificação corporal experiente, desses que atuam em estúdios de piercing e tatuagem, ou médicos, enfermeiros e profissionais da saúde. Ainda não está provado que os implantes não causem infecções ou reações do sistema imunológico humano.

Ao Tilt, a empresa não soube dizer quantas pessoas já implantaram o chip por aqui, só falou que "são muitas pessoas". "As atividades mais comuns são compartilhar redes sociais, websites, cartões de visitas (bem como qualquer outra informação particular), desbloquear a porta de casa e controle de acesso no trabalho", informou.

Usar para pagamentos, que parece ser a coisa mais útil a se fazer com um chip implantado, ainda não é algo corriqueiro, porque as operadoras de cartões não deram permissão para que o biochip seja usado em maquininhas —embora a tecnologia seja a mesma de quando você paga algo apenas aproximando seu celular da máquina de cartão.

Nada disso é novidade

Em 2001, a Applied Digital Solutions instalou seu VeriChip em humanos, para armazenar registros médicos. Logo depois "chipou" o procurador-geral do México e 160 funcionários de um grupo anticorrupção para identificar e controlar gastos corporativos. Desde então, já implantou milhares de chips em humanos.

Mais abertos ao compartilhamento de dados pessoais, os suecos são os que mais usam biochip para simplificar a rotina. Estima-se que 3.000 deles usem para acessar os serviços de transporte sem precisar comprar passagem --a maior empresa de trens e a maior companhia aérea de lá incorporaram a tecnologia.

Nos EUA, a empresa Dangerous Things é umas das mais conhecidas e vende chips de US$ 200 há quase 15 anos. Seu fundador, Amal Graafstra, ajudou a popularizar o implante e defende que ele em breve será aceito como são piercings e tatuagens.

Bruno Scatena/Folhapress

Evgeny Chereshnov, CEO da Biolink.Tech, ex-Kaspersky e um dos maiores especialista em segurança digital, tem um chip na mão desde 2015 e virou um defensor da causa. Ele previa que "dispositivos vestíveis" fariam 1/5 dos pagamentos até 2020. Na China, o mobile já substituiu o cartão.

"Mais cedo ou mais tarde seremos chipados"

Em 2017, a Three Square Market, empresa de Wisconsin (EUA), anunciou que havia substituído os crachás de seus funcionários por microchips. A medida foi atacada por especialistas e autoridades que viam ali uma possibilidade de o empregador condicionar a vaga ao uso do chip —e, com ele, monitorar cada atividade do funcionário, inclusive pausa, idas ao banheiro, duração do seu almoço, quanto tempo durou sua folga. Isso seria possível com a instalação de leitores RFID/NFC por todos os cantos da empresa.

Na época, o CEO da companhia, Todd Westby, disse que a adesão era totalmente voluntária. "Somos uma empresa de tecnologia, e os funcionários naturalmente se interessam pelo que é novo", disse ele à BBC Brasil. Ele também contou que dois hospitais brasileiros haviam demonstrado interesse em realizar testes com o chip em pacientes com doenças degenerativas. "O Brasil será nosso próximo mercado", anunciou.

Claro que houve quem suspeitasse que o anúncio era uma jogada de marketing. Mas, no auge do frisson, a professora de sociologia na Universidade de Wisconsin-Milwaukee Noelle Chesley defendeu, em extensa reportagem do "USA Today", que a humanidade já deveria se acostumar com a ideia: dez anos atrás, os funcionários também não conferiam os emails corporativos no fim de semana, mas isso foi sendo incorporado aos hábitos, "gostemos ou não". Os chips, afirmou a especialista, serão onipresentes —seja debaixo da pele ou acoplados em algum gadget vestível.

Michel Daoud Yacoub, professor titular de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), concorda: "Mais cedo ou mais tarde seremos 'chipados'"

Apesar de ser taxativo, o especialista contou em entrevista ao Tilt que não está animado. Para ele, apesar dos prós, estaremos perdendo, e não ganhando, liberdade. "Eu, particularmente, não gostaria de viver este tempo. Tudo bem que hoje já se vive parte disso com as redes sociais. Mas elas são opcionais. Uma vez instalados, os chips serão parte integrante (dos corpos)."

Os chips tolherão a sua liberdade e você deixará de viver a sua individualidade

Mais do que isso, afirma ele, no futuro poderemos ser "chipados" com inteligência artificial, numa tentativa de suprir uma demanda de habilidades exigida pelo mercado. "A conversa pode ir longe, mas chegará sempre na filosofia, na ética e na moral", completa.

Calma, não é para hoje

Mas, respira fundo. Mesmo entusiastas, como Gazziro, não acreditam que o biochip decole tão cedo. Como acontece com a maioria das tecnologias revolucionárias, o ponto de inflexão dos implantes virá quando eles se tornarem tão úteis que serão difíceis de recusar.

Isso parece estar longe quando falamos da nossa rotina —talvez num momento em que a internet das coisas estiver difundida? No entanto, quando olhamos para o campo da medicina, a mesma vigilância que é temida pode ser bem-vinda, como parte de um tratamento ou da prevenção de problemas futuros.

A bioelétrica e a biocomputação vêm sendo estudadas para auxílio de pessoas com Alzheimer, monitoramento de nível de glicose em diabéticos, detecção de biomarcadores que sinalizem se a pessoa está doente ou perto de um infarto, entre outras coisas. Com o chamado implante coclear, um chip no tronco do cérebro, pacientes surdos consegue perceber sons.

Esse tipo de biochip não soa tão assustador, certo?

Por outro lado, se chegou até aqui com a sensação de que eliminar chaves, senhas e cartões, apesar de menos grandioso, não é má ideia, saiba que tudo isso já é possível com seu celular.

Não quer ser tão dependente do aparelho? Um anel com NFC, apesar de não ser a coisa mais linda do mundo e custar R$ 149,90, já nos coloca para pensar sobre novas possibilidades.

Brasil tem projeto de lei sobre chip

No Brasil, não há uma lei que proíba ou autorize o uso do chip —só um projeto de lei na Câmara dos Deputados, que, inspirado pelas alegações bíblicas já citadas, tenta coibir o implante dispositivos eletrônicos de identificação de humanos. A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado aprovou a proposta em 2017 e ela deveria ser analisada, em caráter conclusivo (sem passar pelo plenário), pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Só que está parada desde então aguardando um novo relator, após mudança de mandato.

O antigo relator disse que a proposta passou, no entanto, porque a implantação de chips em humanos, embora seja uma evolução tecnológica no combate ao crime, dependerá de autorização da pessoa, para não configurar violação à sua intimidade ou privacidade. Ele disse concordar que a implantação serve para facilitar e consolidar o sinal da besta, mas ressaltou que a comissão era responsável por analisar a proposta sob a ótica da segurança pública.

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