Oi, tum, coração pode bater

Muito além da saúde, a biometria cardíaca pode transformar nossas experiências e virar a nova chave do mundo

Matheus Pichonelli e Fabiana Uchinaka De Tilt, em São Paulo

Muito antes de Noel Rosa compor "Coração (Samba Anatômico)", que fala da sincronia do coração do sambista com a batida do pandeiro, já sabíamos que nada fala mais sobre as experiências humanas do que as nossas emoções. Talvez poucos tenham traduzido tão bem essa relação da música com o "cofre da paixão" —Rosa, além de músico, estudava medicina e sabia das coisas, mas o mapa até o nosso coração mobiliza poetas e cientistas desde que o mundo é mundo.

Mais recentemente, adivinhar o que faz nosso coração bater mais forte virou uma espécie de Santo Graal para empresas e a publicidade. Entender essa frequência já não é missão apenas do cancioneiro popular, mas a peça-chave para sobreviver em um mundo conectado, focado na personalização das experiências e cada vez menos dependente das telas e dos nossos polegares e indicadores.

O futuro da tecnologia, quem diria, passa pelo coração. Não apenas num sentido figurado ou na forma de um emoji. Estamos falando de uma métrica ao mesmo tempo universal e individual, que abre possibilidades de ir cada vez mais fundo na forma como consumimos e nos relacionamos com produtos, serviços e informações.

Caminhamos para a era do reconhecimento cardíaco

Já somos capazes de monitorar nossas frequências cardíacas de forma muito mais cotidiana, com pulseiras, relógios e celulares, e extrair informações relevantes a partir desses dados. A Apple, por exemplo, não esconde que está investindo em potencializar o uso do Applewatch para detectar quedas, monitorar qualquer anomalia cardíaca e ajudar idosos, acionando socorro automaticamente (inclusive há casos reais analisados na literatura médica sobre como esse tipo de tecnologia já ajudou a salvar vidas).

Agora, a ideia é usar isso para experiências que vão muito além das questões de saúde. Descobrir que cada pessoa tem um batimento único, assim como a digital, a íris, o reconhecimento facial, nos permite usá-lo para, por exemplo, personalizar e conectar todos os aparelhos "smart" ao redor.

O coração vira uma biometria que serve para destravar gadgets, liberar compras online, abrir fechaduras ou ativar sensores, mas que também "sente" quando você não está numa situação padrão.

Essa história de ter uma chave única começou com a digital. Hoje, já vivemos a era do reconhecimento facial ou de íris. Mas agora estamos nos movendo em direção à era do batimento cardíaco. Pelo menos é isso que defende Eco Moliterno, diretor-executivo da Accenture Interactive. Responsável pela interface entre criação e inovação da maior rede de agências digitais do mundo, ele é um dos porta-vozes dessa nova tecnologia e das consequências da disrupção do mundo como conhecemos. Sua palestra "Como os batimentos cardíacos estão redesenhando as experiências humanas" no festival SXSW, em março, foi aplaudida e repercutida.

Aqui vamos aprofundar com ele as novas aplicações desta forma poderosa de tocar alguém.

Todo mundo reconhece esse som imediatamente. Não importa de onde você é, qual sua religião ou no que você acredita, porque esse som é universal. É o primeiro som que todos nós ouvimos na vida, antes mesmo de nascermos ou antes de nossos orelhas se formarem, dentro da barriga das nossas mães. É o som que ouvimos do recém-nascido antes mesmo de ele nascer. Por isso, este som é tão popular. É o som da vida, significa que estamos vivos ou que outra pessoa está viva

Eco Moliterno

Mecanismo que está dentro de nós --e não pode ser desligado

Antes era preciso uma ação: colocar o meu dedo em algo, olhar para o sensor ou apontar uma câmera para o rosto, explica Eco. "Com o coração, não. Você não precisa ligá-lo de manhã. Ele está o tempo todo ali, a cada segundo ele pode personalizar algo para você, e ele nunca desliga."

É o mecanismo "perfeito", porque está instalado dentro de todos nós e não pode ser desinstalado. Aqui está o potencial para essa nova chave universal: todo mundo tem, todo mundo entende e ela ainda tem um efeito incrível em nós. Pode nos relaxar, como acontece quando bebê ficam no peito da mãe, ou nos dar pânico, quando acontece quando um monitor cardíaco deixa de pulsar e apita. Pode nos unir, como quando todos cantam juntos num concerto de rock e os pulsos chegam a ficar sincronizados.

Se encostarmos no peito de alguém, conseguimos sentir de alguma forma o que a pessoa está sentido: paz ou medo?

O batimento cardíaco é uma frequência que tem a incrível capacidade de se comunicar intimamente com qualquer pessoa. É um som tão poderoso, porque é a linguagem mais universal do mundo e o único meio que temos de realmente medir de forma eficiente as emoções. Ao contrário da música, o batimento não muda de acordo com a cultura

Eco Moliterno

Esse poder transformador (e assustador)

Para entender a dimensão que essa nova biometria traz é preciso apelar para alguns exemplos.

A partir do pulso, você pode saber, remotamente e instantaneamente, se os seus filhos estão bem ou em apuros na escola. Qual o estado emocional do motorista ao pedir o serviço por aplicativos. Se há um ladrão escondido dentro da sua casa. Se está grávida, no segundo que começar um novo batimento dentro de você. E pode também, claro, monitorar 24 horas por dia, de qualquer lugar do mundo, o estado de saúde do seu coração, o que pode ser um divisor de águas para a medicina. Ou se o coração de alguém querido parou de funcionar.

Estamos perto de escolher filmes, séries e músicas por meio de um certo "rating cardíaco", aposta Eco. Saem as curtidas e notas de 0 a 10 e entra em cena o "turu turu turu aqui dentro", que indica como uma produção visual te emociona, faz rir, assusta ou acalma. Isso é usado então para calibrar o algoritmo que vai recomendar o próximo conteúdo —para continuar no mesmo pique ou para encontrar algo no sentido contrário. Isso pode ser aplicado também aos vídeo games, que oferecem fases de acordo com o que o seu coração mandar.

Entre namorados, anéis sensíveis mostrarão a vibração cardíaca da pessoa amada em momentos especiais, como um pedido de casamento. "É a tecnologia enaltecendo nosso lado humano".

Na Apple Store, já é possível baixar um app chamado Aura Pendant, que monitora os batimentos enquanto o usuário narra sua história de amor. O desenho dessa frequência é registrado e transformado em um pingente pelo estúdio do artista Guto Requena, para que você visualize as emoções que aquelas lembranças te trazem.

Por outro lado, tudo isso pode ter usos polêmicos ao ser adotado pelo mundo corporativo ou da educação. Já existem experiências em andamento que envolvem o que o especialista chama de "educação cognitiva", que usa as frequências cardíacas para avaliar eficiência, envolvimento com práticas esportivas ou manutenção de uma vida mais saudável. Isso pode ser usado, por exemplo, para combater a obesidade infantil no ambiente escolar, mas pode transformar a vida de estudantes e trabalhadores num inferno de novas metas a serem cumpridas. Sabe aquilo de dizer que colocou o coração no trabalho? Agora dá para medir isso.

  • 1

    Vibrometria a laser

    Essa tecnologia detecta os movimentos superficiais da pele causado pelo batimento do coração para reconhecer pessoas à distância. Wenyao Xu, pesquisador da Universidade Estadual de Nova York, desenvolveu sistema semelhante, que funciona a 20 metros de distância e usa radar. Ele diz que, comparado com o rosto (que pode levar disfarces), a biometria cardíaca identifica alguém com mais de 98% de precisão e pode ser usada, por exemplo, para identificar arritmias de pacientes quando eles ainda estão a caminho do hospital.

  • 2

    Superautenticação

    A Nymi Inc., uma empresa canadense, lançou uma pulseira que identifica os usuários por meio dos batimentos cardíacos e diminui a dependência de senhas, PINs e chaves. Tudo para fornecer, segundo a companhia, "a solução de autenticação mais forte do mundo". Com o vestíveis, as empresas podem acompanhar as atividades dos colaboradores durante toda a jornada. A tecnologia também poderia facilmente conectar todos os dispositivos "smarts" usados por um usuário.

  • 3

    Vigilância por microsearch

    A empresa de segurança Ensco desenvolveu o MicroSearch, um sistema de inspeção de segurança que detecta a presença humana através de seu batimento cardíaco. A ideia é detectar, com a tecnologia, a presença de pessoas estranhas em veículos ou contêineres. Como lembra Eco Moliterno, é possível prender a respiração ou se esconder em um assalto, mas ninguém é capaz de fazer parar o coração --o que, no futuro, inviabilizará os planos de possíveis invasores.

Personalização elevada à máxima potência

Com a digital, não só ganhamos uma chave para acessar equipamentos eletrônicos, passamos a provar a nossa existência. Agora, num mundo com cada vez mais atividades robotizadas, o coração passa a ser um ponto de diferenciação. Ele carrega nossa identidade —não à toa, lembra Eco, o Homem de Lata, símbolo da mecanização do trabalho, pede um coração em "O Mágico de Oz". "Essa valorização do coração as máquinas nunca vão ter. Capacidade de processamento elas têm, mas de se emocionar, não", diz o publicitário.

Mas não vamos esquecer que tudo isso está sendo pensado para ser usado especialmente pela publicidade. O próximo passo no mundo da criação comercial é juntar a biometria do coração —que identifica os usuários o tempo todo, a cada pulso— com o enorme banco de dados associado a você.

Então, imagine entrar num supermercado e ter a frequência do coração monitorada. Em cada corredor que você passa é influenciado por propagandas altamente direcionadas, a temperatura do ambiente muda para te deixar mais confortável e a música entra no seu ritmo interno. Será possível medir sua emoção no momento da compra sem que você sequer note. Esse princípio já está no radar das novas startups e das empresas que buscam interações, novos jeitos de consumir ou existir.

E lembra? Quando mergulhamos no mundo digital, passamos a produzir, em volume inédito, informações sobre o que curtimos, amamos e odiamos, sobre o que nos espanta, nos entristece e sobre o que queremos compartilhar. Quando juntarmos as duas coisas, teremos a máxima personalização das experiências.

O assustador é que as informações serão produzidas involuntariamente pelo tal "cofre da paixão", aquele que, até pouco tempo, só nos lembrávamos de monitorar quando íamos ao médico. E coração não pode ser enganado.

"No caso das digitais ou do reconhecimento facial, existem formas de enganar os sistemas. Você pode esconder o rosto, entrar na casa em silêncio, a senha também pode ser acessada. O batimento é um sistema de segurança mais efetivo", explica o especialista.

No universo das marcas, essa nova biometria vai mudar profundamente a conexão dos consumidores. A percepção das pessoas vai mudar significativamente as decisões das empresas. Quanto mais sentidos você envolver, maior será a experiência do consumidor. Se a gente colocar a experiência direta para o cérebro, não vai ser tão memorável quanto ter o coração como potencializador da experiência

Eco Moliterno

A emoção é traduzida e interpretada

como já fizeram estes artistas visionários

Mikhail Baryshnikov

O artista russo-americano causou furor nos anos 90 ao dançar pelo ritmo do seu coração. Em "HeartBeat: mb", ele trocou a música clássica de balé por dispositivos grudados ao peito.

Ler mais

Sasaki

O artista japonês desenha os batimentos cardíacos desde 1995, por considerar que o pulso é a origem e a evidência da vida. Recentemente pintou os batimentos do público na Bienal de Veneza.

Ler mais

Rafael Lozano-Hemmer

O artista mexicano-canadense criou o "Pulse Room", uma instalação interativa com 300 lâmpadas conectadas a um sensor que detecta a freqüência cardíaca dos participantes.

Ler mais

Christian Boltanski

Desde 2008, o artista francês captura o batimento para que seja sentido, ouvido e tocado. A ideia é construir um arquivo do coração, com gravações feitas por ele e pessoas de todo o mundo.

Chegamos então à vigilância do corpo

Para a cientista política Fhoutine Marie Reis Souto, que em seu doutorado estudou sistemas invasivos de monitoramento e vigilância após o 11 de setembro, o que é "perturbador", nas palavras dela, é que o monitoramento cardíaco vire uma nova tecnologia de vigilância.

"Já existe a venda de dados na internet, e existe a entrega de dados de forma voluntária. Temos vários problemas de ilegalidades a respeito de monitoramento de informações pessoais e violações das liberdades. Com a vigilância cardíaca, temos um passo além. É uma vigilância que vai ser exercida sobre o corpo", diz.

Ela cita os exemplos clássicos de "1984", de George Orwell, e "Vigiar e Punir", de Michel Foucault, para mostrar que a vigilância costuma vir acompanhada de autoritarismo. "É uma observação do espaço público, para onde você vai, o que você fala", ressalta. Mas, ainda sim, essa sociedade disciplinar passa por uma reconfiguração a partir das inovações tecnológicas. "As pessoas vão oferecer [esses dados] para ter descontos em produtos sob medida. E o mercado vai convencer as pessoas de que aquilo é útil para elas, mas não sabemos como isso pode se desdobrar."

"A tecnologia pode ter aplicações positivas e negativas. O fogo é também uma tecnologia, pode servir para aquecimento ou pode causar incêndios", argumenta Eco. Para ele, é uma troca: você compartilha essas informações e, em contrapartida, tem acesso a um sistema que indica possíveis perigos ou permanentemente informa seu estado de saúde.

O que acontece é que as marcas passam a ser mais assertivas nas respostas que dão aos nossos anseios, porque contam com um medidor muito mais poderoso. Se hoje é preciso perguntar para uma pessoa o que ela acha sobre determinado produto ou serviço (e o simples fato de ela parar para pensar pode resultar em uma resposta enviesada), com os batimentos será uma resposta sincera. Mas, como sempre, a privacidade estará no centro dos debates, prevê ele.

Haja coração.

Topo