Decifre-me, se for capaz

Já vazou senha, email e CPF? O DNA cria novas fronteiras para os cuidados que precisamos ter com privacidade

Letícia Naísa De Tilt, em São Paulo Arte/UOL

A curiosidade e as dúvidas são os nossos motores, a tecnologia é o que nos permite ter as respostas mais precisas. Um dia, um grupo de cientista teve a brilhante ideia de sequenciar o genoma humano para saber do que somos feitos e isso, trinta anos depois, virou uma ferramenta quase banal de entendimento da nossa identidade. Destrinchar aquilo que nos torna únicos num padrão de As, Cs, Gs e Ts, as bases nitrogenadas do DNA, abriu caminhos inimagináveis, mas também transformou nossa identidade mais íntima e incorruptível numa espécie de "código de barras" fácil de entregar.

Até bem pouco tempo, isso não era lá uma grande questão na nossa vida — era preciso um pedido da Justiça e um exame caríssimo para achar o pai biológico de alguém, e colher saliva ou fio de cabelo era coisa de investigador de filme policial ou programa de auditório. Hoje, qualquer pessoa entrega seu DNA na farmácia para saber, em questão de horas, se carrega o coronavírus. Chegamos num ponto em que precisamos repensar as fronteiras do acesso à informação pessoal.

Em 2019, um levantamento publicado na revista "MIT Technology Review" dizia que 26 milhões de pessoas já tinham cedido amostras para exames genéticos de saúde ou ancestralidade. Difícil saber com precisão em que pé estamos agora, em meio à pandemia, mas um levantamento da organização brasileira Coding Rights aponta para 100 milhões de testes feitos até o final de 2021.

Existe um banco gigantesco de DNA, e precisamos, no mínimo, falar sobre cuidados e estabelecer algumas regras.

Os mais populares

  • Teste para diagnóstico

    O sequenciamento genético identifica a presença de doenças raras ou de vírus agindo em nosso corpo

  • Testes de paternidade ou busca por parentes

    Requeridos na Justiça, comparam o material genético de pessoas para achar semelhanças que apontem parentesco

  • Teste de ancestralidade

    Compara seu DNA com amostras de bancos de dados e indica de qual região vieram seus antepassados. No Brasil, é feito pela MeuDNA (R$ 399), da Mendelics, e Genera (R$ 199)

Por trás do código

A partir da amostra enviada, os laboratórios usam supercomputadores para ler a sequência de letras (bases nitrogenadas) que formam seu DNA e transformar essa sua identidade em números, que ficam armazenados no banco de dados da empresa ou da instituição de pesquisa, pública ou privada.

Ao contrário do seu RG, CPF ou telefone, esse dado é imutável. Então, se vazar ou for roubado, você não troca por outra sequência ou consegue emitir uma segunda via.

Já pensou se a sua propensão a ter alguma doença genética cair nas mãos do plano de saúde e seguro de vida? Não dá para ir ao cartório e mudar"
Michel Naslavsky, professor de genética do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo)

Ainda estamos no campo das hipóteses, mas o debate sobre os riscos precisa acontecer para minimizar problemas futuros. Quem lida com os nossos genes sabe que segurança e transparência são fundamentais para estabelecer essa relação comercial. Mendelics e Genera informaram que os dados sequenciados são colocados na nuvem, criptografados e anonimizados —ou seja, eles separam as informações genéticas daquilo que pode te identificar (nome, idade, gênero ou raça). Você também pode pedir que as informações sejam apagadas do sistema após o resultado.

Nas pesquisas acadêmicas o rigor também é enorme. Segundo a pesquisadora Kelly Nunes, do Instituto do Biociências da USP, que conduz estudos com dados genéticos de quilombolas, todos os procedimentos de coleta e análise passam por um conselho de ética e servem para um único trabalho, não podem ser compartilhados.

Cuida do que é seu

O risco sempre existe. Em 2018, emails e senhas de 3,3 milhões de brasileiros vazaram do site MyHeritage, que faz exames genéticos nos Estados Unidos. Nenhum DNA foi exposto, mas deu para saber quem fez o teste.

Banco de dados desse tipo fazem os olhos de muita gente brilhar. Da polícia, por exemplo.

Uma grande polêmica surgiu quando dados genéticos colhidos na cena de um crime foram jogados, anos depois, no site da GEDMatch e apontaram primos do suspeito, que haviam feitos testes de ancestralidade sem saber que poderiam ser usados para outros fins. A partir dos parentes, ficou bem mais fácil confirmar quem era o assassino.

O caso inspirou investigadores e um deles conseguiu na Justiça da Flórida mudar as configurações de privacidade da empresa, que detinha na época 1,2 milhão de amostras, e usar o banco para um trabalho feito para uma consultoria privada —o Brasil mantém banco genético de pessoas condenadas por crimes hediondos, que não pode ser cruzado com outros bancos, e um banco de cenas de crimes.

Ninguém quer a impunidade, mas há um temor de abrir precedentes que expõem dados ultrassensíveis de quem nunca autorizou esse uso para os dados genéticos. Há ainda um risco de se criar uma espécie de "banco de estigmas" com dados sobre sexo, etnia e doenças —isso é especialmente grave em países menos democráticos ou religiosos, por exemplo.

Nas mãos erradas, as informações podem nos colocar no cenário discriminatório do filme "Gattaca" (1997).

Ainda estamos muito longe disso, mas, apesar de improvável, não é impossível

Michel Naslavsky

Dois exemplos concretos

  • FamilyTreeDNA

    Foi duramente criticada por convocar na TV quem fez seu teste de ancestralidade a ceder os dados para ajudar na captura de criminosos nos EUA.

  • 23andMe

    Empresa que detém um dos maiores bancos de testes caseiros entregou o acervo para duas gigantes farmacêuticas que querem desenvolver medicamentos a partir de dados genéticos. Estava previsto nos termos de uso, nem todo mundo viu.

Provar um culpado ou inocentar alguém é um bom uso do DNA, mas a preocupação é: como ele está sendo usado e por quem. É uma linha tênue entre fazer justiça e prejudicar grupos

Danilo Roque, advogado especialista em direito digital e privacidade, sócio da FAS Advogados

A que custo podemos atravessar a questão da privacidade? As pessoas enviam seus DNAs para testes de ancestralidade com o intuito muito específico

Michel Naslavsky, pesquisador especialista em genética evolutiva

A busca por informações

Um dos principais usos dos testes de DNA é achar predisposições e alimentar a nossa vontade de viver cada vez mais e melhor. Desde o início do Projeto Genoma Humano, a busca era por doenças e possíveis curas. Mais recentemente um novo filão se abriu com a busca pelos antepassados perdidos —e isso é especialmente importante para aqueles que tiveram essas lembranças arrancadas.

Em Tilt, já mostramos dois casos concretos de usos revolucionários que o exame de DNA nos trouxe:

DNA revisitando a história

  • Projeto "Origens"

    Distribuímos testes de ancestralidade para 20 personalidades negras, como Maju Coutinho, Fernando Holiday e Daiane dos Santos, descobrirem suas raízes apagadas pela escravidão no Brasil, explicamos quais lacunas o resgate dos antepassados pode preencher e o que isso significa para um país racista como o nosso.

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  • Uma nação se faz na cama?

    Na reportagem especial, esmiuçamos como o maior banco de dados genéticos do Brasil comprovou nossa origem violenta e miscigenada. Não foi por romance, mas dentro de uma guerra de poder, que os genes dos homens brancos e das mulheres negras e indígenas foram passados para as futuras gerações.

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Dado sem cara, isso existe?

Ganhamos uma chave para o baú da família —ou a caixa de Pandora. Agora nos resta saber como usar esse acesso.

Pode parecer bobagem fritar a cabeça com a possibilidade de ter seu DNA vazado ou usado inadvertidamente por empresa, mas pense que esta é mais uma informação valiosa (talvez a mais valiosa hoje) que se soma ao balaio de dados sobre você. Esse balaio não para de crescer e alimentar, por exemplo, uma série de golpes virtuais e ações marketing direcionado. Quanto mais dados uma empresa tem sobre os clientes, mas poderosa e valiosa ela fica.

"O DNA é um exame de identificação e qualquer informação corre o risco de vazar. Mas, se o dado não estiver atrelado a dados sensíveis, você não faz nada com aquilo. É só a descrição de algumas características. A questão é saber quais informações estão atreladas a esse dado genético", diz Cíntia Friedman, geneticista e professora de medicina legal da USP.

O problema é que você pode até jogar fora o nome ao guardar a informação, mas não é impossível achar a identidade se souber outras coisas. Por exemplo: você dá a biometria no aeroporto e ela fica associada ao seu telefone. Esse número, em outro banco, entrega seu nome. Se alguém souber cruzar esses dados de forma eficiente, consegue saber quem é você, para onde você viajou, qual sua origem (e provavelmente sua raça ou religião) e até seu irmão gêmeo.

Como anonimizar dados genéticos que, por natureza, têm fim de nos identificar? E mais: identificar parentes ou quem nunca fez um teste de DNA

Joana Varon, diretora executiva da Coding Rights

As regras do jogo

As empresas argumentam que os sistemas são pensados para evitar qualquer tipo de vazamento. "Quem trabalha com informações privadas tem que estar preocupado com isso o tempo todo", diz David Schlesinger, CEO da MeuDNA. Ele ressalta que 99% do DNA é igual para todos, então não é tão simples te identificar.

Mas é aquele 1% que nos torna únicos e deve ser protegido. "Não existe nada mais sensível do que um dado de DNA", afirma Christian Perrone, coordenador do ITS (Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). "Proteger o DNA é crucial, porque é o que temos de mais íntimo."

Para isso, existe desde 2018 a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que inaugurou uma tentativa de instaurar uma cultura de privacidade e segurança no Brasil. Ela determina que qualquer dado que te identifique é considerado sensível, porque pode ser usado contra você.

"A história nos mostra que há uso desse tipo de dado para implementar políticas discriminatórias", lembra Roque.

Quando falamos sobre dados sensíveis, estamos falando de uma troca de confiança. É isso que precisa ser construído, com o apoio de uma lei eficiente. Por enquanto, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que funciona como xerife da LGPD, ainda não está a pleno vapor, mas a ideia é que ela garanta que essa cultura no Brasil.

  • Pontos que a LGPD aborda:

    É preciso consentimento explícito para utilização das suas informações e armazenamento dos dados e pra repassar seus dados a empresas terceiras.

  • Alguns exemplos do que isso significa:

    Os dados de DNA não podem ser usados por planos de saúde para precificar seus serviços, a farmácia não pode repassar sua lista de compras associada ao seu CPF para a indústria farmacêutica ou consultorias de RH sem avisar, e uma rede social precisa de autorização para cruzar os dados contidos nas suas fotos com seus deslocamentos guardados no seu celular.

Então, leia sempre os termos de uso e peque pelo exagero. Cuidado nunca é demais.

Da parte dos especialistas, estudiosos e ativistas da proteção de dados, há uma pressão constante para que as empresas sejam claras sobre todos os possíveis repasses de informações e cuidados com armazenamento.

É complexo dizer se é seguro ou não, mas tem que ser uma decisão muito bem pensada e informada

Christian Perrone

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