O tomate que viajou no tempo

Como um cientista brasileiro voltou ao passado para criar superalimento que pode salvar a humanidade

Matheus Pichonelli Colaboração para Tilt Flávio Moraes/UOL

A má fama dos transgênicos pode fazer muita gente torcer o nariz, mas um tomate geneticamente alterado deve ser o nosso alimento do futuro —e a salvação para o dia em que a humanidade finalmente mergulhar numa distopia. E digo mais: ele veio diretamente do passado para nos encher de nutrientes.

Parece loucura, mas uma das tecnologias mais modernas e inovadoras da genética atual nos permitiu recorrer a uma antiga espécie de tomate do deserto do Atacama, no Chile, e das Ilhas Galápagos, no Equador, para devolver tudo de bom que o tomate perdeu ao longo de sua história.

Tomate bom é tomate selvagem. Não só porque ele é mais rico em nutrientes, mas também porque ele é mais resistente a secas e ao sal. Vai saber quanto tempo falta para sermos totalmente acometidos por crises alimentícias causadas por condições climáticas cada vez mais instáveis no planeta... É bom saber que tem brasileiro pensando nisso.

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Superpoderes

Esse aí da foto é o professor Lázaro Eustáquio Pereira Peres, especialista em fisiologia vegetal na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba (SP), e autor de um dos principais estudos sobre o resgate desse fruto antigo, mais completo e resistente, usando a técnica Crispr —uma edição genética que usa uma enzima de bactéria para "recortar e colar" sequências de DNA.

O brasileiro e sua equipe ganharam fama internacional não apenas por aprimorar a produção do tomate, cientificamente conhecido como Solanum lycopersicum, mas por evoluir a própria capacidade humana de manejar o tempo. A técnica, registrada como "De novo domestication" —que em latim, explica o cientista, significa "a partir do início, sem partir de algo já iniciado", foi publicada em 2018 na prestigiosa revista científica Nature Biotechnology.

Faz duas décadas que Peres estuda algumas variedades de tomate que conseguiram criar resistência à seca, ao excesso de sal ou ao frio, numa tentativa de melhorar os alimentos que temos hoje. Como os animais, as plantas também se domesticam ao longo do tempo e, nessa transição, muitas das características das espécies selvagens se perdem. Os tomates do deserto do Atacama, por exemplo, resistem a seca e temperaturas abaixo de zero e são uma chave para momentos de escassez de água —usar água do mar para alimentar plantas e leguminosas pode ser determinante para economizar água doce e aumentar nossa capacidade alimentar do planeta.

Faz muito tempo que os agricultores tentam passar os genes dessa espécie a outras, para dar resistência à salinidade, mas até então ninguém tinha conseguido.

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Não é feitiçaria

O que Peres fez foi voltar milhares de anos para entender como era a configuração genética do tomate em sua forma selvagem, que parecia uma erva daninha.

Em vez de ajustar uma variedade domesticada de tomate, eles voltaram à estaca zero e usaram o Crispr para eliminar um punhado de genes de uma vez. O desafio era recuperar as características dos ancestrais que pudessem servir para os alimentos do futuro. "Ficamos 20 anos trabalhando nisso. A razão do insucesso é uma questão numérica: essas resistências surgiram há milhares de anos. Às vezes, milhões", explica.

A manipulação começou com o tomate Solanum pimpinellifolium, que é mais resistente, mas produz frutos do tamanho de uma ervilha. Ele passou por um plantio direto (sem arar) e foi melhorado com edição genética, num processo que durou menos de dois anos.

Com o Crispr, a equipe pegou um trecho do DNA e modificou parte da sequência com precisão para colocar a espécie próxima de um tomateiro comercializável, com frutos maiores, mais numerosos e mais nutritivos. Foi como comprimir todo o tempo de evolução, que levou milhares de anos até chegar ao resultado que conhecemos, em poucos meses e controlando os caminhos genéticos tomados.

Assim como as espécies originais do Atacama e de Galápagos, o tomate do futuro é pequeno, mas enfim naturalmente resistente à salinidade e à seca, ou seja, sem precisar de agrotóxicos. Também possui cinco vezes mais licopeno, substância carotenóide que dá a cor avermelhada ao tomate e outras frutas, como melancia e goiaba. "É a coisa mais valiosa do tomate", explica Peres.

"O poder desta técnica é que podemos editar o DNA de uma maneira bastante precisa, escolhendo o lugar do genoma onde queremos que o DNA seja cortado e mutado", explicou a Tilt o professor de genética bioquímica Vagner Augusto Benedito, da West Virginia University (EUA).

"Se fosse um livro, em vez de você inserir uma página nova [como acontece nos transgênicos], você só edita uma letra ou palavra", exemplificou Martín Bonamino, pesquisador do grupo de imunologia tumoral do INCA (Instituto Nacional do Câncer) e especialista em Crispr da Fiocruz, no podcast Deu Tilt.

No Brasil, os principais colaboradores de Peres foram o professor Luciano Freschi, do Instituto de Biociências da USP, e o argentino Agustin Zsögön, seu ex-aluno e hoje professor na Universidade Federal de Viçosa (MG). O texto tem a assinatura também do pesquisador alemão Jöerg Kudla, da Universidade de Münster, e do norte-americano Daniel Voytas, da Universidade de Minnesota.

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Mas, é seguro comer?

Peres tem uma resposta para quem ainda tem resistência para consumir alimentos geneticamente modificados: "já fazemos isso há séculos."

"Uma das grandes inovações da agricultura foi quando se começou a arar a terra. Quando você sulca, expõe as sementes de ervas daninhas que precisam receber luz e germinar. Essas são selecionadas a cada ciclo. Então, tecnicamente manipulação genética é algo que se faz desde o desenvolvimento da agricultura, no neolítico. Tudo é seleção. E seleção é manipulação", afirma. "A planta que deu origem ao milho como conhecemos hoje não é mais da mesma espécie."

Mas, não é só isso. Agricultores e cientistas sempre modificaram os alimentos por meio de programas de reprodução que, muitas vezes, resultavam em uma troca descontrolada de material genético e, sem que você soubesse claramente, usavam radiação e produtos químicos para induzir essas mutações. O que as novas tecnologias de edição gênica propõem é fazer isso de forma mais eficaz e precisa.

A revolução provocada pelo Crispr, que dá uma guinada importante no debate em torno dos alimentos geneticamente modificados, é que a "tesoura genética" mira a subtração, e não a adição de genes —especialmente de genes de espécies não relacionadas (como era na primeira geração).

Segundo Peres, fã assumido do biólogo britânico Charles Darwin, autor de "A Origem das Espécies", é como se a gente controlasse ou impulsionasse as mutações que já acontecem na natureza, mas desta vez "sem agentes mutagênicos, substâncias químicas ou radiação superperigosas e que podem nos fazer mal, inclusive".

Embora ainda exista muita resistência aos alimentos geneticamente modificados, especialmente pelos efeitos teóricos e desconhecidos que eles poderiam gerar, eles são considerados seguros pelas principais entidades médicas e de ciências, como a Academia Nacional de Ciências, a Associação Americana para o Avanço da Ciência e a Organização Mundial de Saúde.

Os benefícios para países em desenvolvimento, que enfrentam fome e desnutrição, são óbvios, mas é claro que nem tudo o que é feito em nome da engenharia genética é louvável —e aqui vale citar um exemplo bem conhecido: as sementes geneticamente modificadas tornadas resistentes ao glifosato, um herbicida que é herbicida amplamente questionado.

Entenda a diferença entre as técnicas

  • Cruzamento

    Antigamente, a evolução da agricultura era feita por cruzamento, ou seja, passava-se o gene de uma espécie para outra cruzando plantas compatíveis e selecionando mutações que ocorriam naturalmente.

  • Transgenia

    Nos alimentos transgênicos, os cientistas passaram a induzir mutações com manipulação externa do gene. Você pega o gene de uma bactéria, manipula em laboratório, e usa a bactéria para passar para a planta.

  • Crispr

    Nesta edição do DNA, você recorta e cola partes da sequência genética que já faz parte da planta. O grau de manipulação pode ser tão sofisticado que você modifica o gene a ponto de ter um gene novo, mas que faz parte da planta (não veio de outra espécie). É como acelerar algo que demorava anos para acontecer na natureza por seleção natural.

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Vem mais por aí

Aos finais de semana, Peres admira de perto seus avanços, diretamente da chácara que mantém na área rural do município de São Pedro (SP). Ao mesmo tempo, é ali que ele tenta achar respostas para outros problemas: em qual gene mexer para aumentar o tamanho do tomate e torná-lo mais resistente a insetos?

"Lá sou chacareiro. Gosto de ficar roçando a terra, e vejo como o tomate é difícil de cultivar sem adição de agrotóxicos. A resistência ao inseto é palpável, porque é uma substância pegajosa que o tomateiro selvagem tem nas folhas e funciona como um pega-mosca. Esse é um grande alvo, porque ao obtê-la, obviamente, você passa a usar menos inseticida. O que mais se usa hoje na cultura do tomateiro é inseticida. Pesadamente."

O pesquisador explica que a dificuldade está em chegar nessa estrutura especial, uma glândula que produz um inseticida natural da planta, que não é tóxico para a gente, porque ela envolve vários genes.

Os caminhos que podem ser seguidos a partir da nova técnica de domesticação de plantas selvagens são muitos, ressalta Luciano Freschi, co-autor do estudo. Ele explica que a descoberta feita pelo grupo foi muito marcante por ajustar vários genes ao mesmo tempo, com isso outra plantas que têm espécies aparentadas podem ser modificadas num período curto de tempo.

"Isso pode levar a uma diversidade maior de opções de culturas, de fontes de alimento, fontes de energia. [O uso da ferramenta] só vai aumentar ao longo do tempo e permitirá coisas que nunca antes foram pensadas", diz.

Vagner Benedito lembra que já há muitos grupos trabalhando, por exemplo, em trigo sem glúten ou arroz supernutritivo. Na Universidade Justus Liebig de Giessen, na Alemanha, cientistas criaram um trigo resistente ao bolor e sementes que produzem mais óleo. Nos EUA, há relatos sobre o primeiro cogumelo que não escurece.

Por aqui, Peres e Benedito trabalham agora na redomesticação de um parente mais distante do tomateiro, o Solanum cheesmaniae, uma espécie com alta tolerância a solos salinos.

O futuro que nos aguarde. Encara?

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