Cobrindo feridas abertas com DNA
Paula Lima | Por Guilherme Tagiaroli, repórter de Tilt
Paula Lima | Por Guilherme Tagiaroli, repórter de Tilt
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Paula Lima:
Sempre foi uma questão para mim: quem sou eu, por que eu sou assim, por que eu estou aqui? Agora eu tenho uma ideia"
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
A cantora Paula Lima, 50, já rodou o mundo fazendo shows. Mas a paulistana, nascida e criada no bairro do Ipiranga, na zona sul de São Paulo, lembra que foi em Angola que percebeu algo diferente. "Fui tocar num festival de jazz e falei: eu estou jogando em casa, esses são meus parentes". A semelhança, agora explicada pelo exame de DNA, estava na cara.
Filha de um metalúrgico e uma professora, ambos negros, Paula diz que ficou impressionada com as lacunas que o teste ajudou a preencher. O resultado genético confirmou as origens africanas e deu detalhes surpreendentes, mas, acima de tudo, respondeu as perguntas que carregava desde criança. "Era um ponto de interrogação, eu ficava inconformada", explica.
Agora ligue o som, no canto superior direito.
Paula conta que sua família era da "classe média negra" —ela faz essa ressalva, porque entende que o acesso não era igual ao dos brancos. Havia conforto: escola particular, casa própria, parentes com ensino superior. A educação, inclusive sobre a origem negra, foi a marca deixada pelo avô materno, que sempre reforçou que independência financeira era sinônimo de poder. "Isso deu outro caminho para todos nós", acredita.
No colégio de 800 alunos, onde estudou a vida toda, ela sempre foi a única pessoa negra e logo viu as diferenças no tratamento, nas referências culturais e também na relação com os antepassados. Ela passava os sábados nas feijoadas "na casa do meu tio Beto, ouvindo samba e Djavan", coisa estranha para os amigos brancos. "Não tinha esse tipo de troca", lembra.
A busca por detalhes sobre os antepassados começou justamente nessa fase da escola, pois os colegas, filhos de imigrantes, sabiam tudo muito suas famílias. E ela só tinha as informações das aulas da escola —"a lei dos sexagenários, a lei do ventre livre", lembra. Quando tentava perguntar, encontrava outra barreira: "Tinha uma ferida aberta para as pessoas mais velhas negras. Era muito dolorido falar da escravidão, de quem foi escravo", explica.
A cantora ficou muito feliz com o resultado, que considerou "super específico e uma pesquisa profunda e verdadeira no tempo e no espaço".
Paula comemorou cada pedaço de informação. "Polônia é surreal", disse. "Tem índios, Gâmbia, Gabão e Camarões, fiquei encantada", completou. E tudo se resumiu em uma frase: "Fiquei me achando muito brasileira", porque até a parte europeia é um pedaço importante da história do Brasil: Portugal e Espanha representam os colonizadores.
Agora, ela pretende se jogar nas pesquisas e, futuramente, nas viagens. "Eu acho que é muito importante saber de onde a gente veio para saber qual é o próximo passo que vamos dar. A próxima geração já não vem com o vazio e o inconformismo que eu tive", ressalta.
O teste fez "tudo borbulhar" e começou a iluminar o passado, mas Paula não sabe como se deu o processo de mistura com europeus e nem como seus antepassados chegaram ao país. Desde a saída da África até a chegada ao Brasil, escravizados ganhavam novos nomes, eram proibidos de professar suas crenças e, após a abolição, houve um processo de "apagamento da história".
Por outro lado, acredita ela, o exame de DNA é acessível e pode ajudar muita gente a entender quem é e se aproximar de outras referências. "Nos países africanos, pessoas pretas têm todos os tipos de profissão e estão em todos os lugares. Apesar da discrepância social, o dono da companhia aérea, o dono do banco, o cara do hotel e a pessoa que limpa o chão são pessoas negras. É muito diferente do Brasil", diz.
Publicado em 13 de maio de 2021.
Reportagem: Guilherme Tagiaroli
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Produção: Barbara Therrie
Arte: Suellen Lima
Fotos: Júlia Rodrigues
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?