Raul e seus olhos mágicos

A ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) limitou seus movimentos, mas a tecnologia o reconecta com o mundo

Relato a Bruna Souza Cruz De Tilt, em São Paulo Arquivo pessoal/Arte UOL

O sistema imunológico humano é algo delicadamente complexo. Para tentar fortalecê-lo, temos aquela velha receita: alimentação saudável, atividade física adequada, evitar o estresse. Mas e quando o nosso corpo inicia uma guerra contra ele mesmo?

Raul Horianski, 54 anos, convive com batalhas diárias há quase três anos. Em abril de 2017, foi diagnosticado com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), uma doença que tem como alvo de sua ação o sistema nervoso. Nesta guerra particular, os soldados que disputam a trincheira são as suas próprias células nervosas.

Hoje, Raul movimenta apenas os olhos e levemente os músculos da face. Mas nem por isso deixou de ter uma vida conectada. Ele navega na internet, assiste aos seus seriados favoritos, acessa o Facebook, conversa no WhatsApp e até um livro ele já escreveu. Tudo com ajuda da tecnologia.

Em depoimento a Tilt, Raul, que se comunica com ajuda de um rastreador ocular, fala sobre o tratamento da ELA e como os seus "olhos mágicos" têm transformado a sua vida após o diagnóstico.

Meu nome é Raul, tenho 54 anos, sou da Argentina, e moro no Brasil desde 1999. Faz dois anos e oito meses que recebi o diagnóstico da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), uma doença neurodegenerativa que afeta progressivamente os neurônios motores. Ela causa atrofia muscular, e assim a paralisia [motora]. Não existe uma categoria única para pacientes. Cada uma se apresenta de inúmeras maneiras.

Mas os meus primeiros sintomas foram fadiga nos membros inferiores e superiores e, quase que ao mesmo tempo, minha fala começou a soar arrastada. Tinha 52 anos na época e minha vida, e a da minha família, mudou completamente.

Arquivo pessoal/Arte UOL

À medida que os movimentos falhavam, como, por exemplo, pegar um copo com a mão, eu passava a ser ''vigiado'' em tudo o que fazia, pois eles não queriam que eu me cansasse ou me machucasse.

Quando recebi o diagnóstico, o meu chão desabou. Ninguém está preparado para receber uma notícia inesperada como esta. Foi uma semana de muita tristeza e agonia. Mas, Ele (Jesus), em oração, me falou: 'Raul, não temas. Sua vida está nas minhas mãos. Com ou sem ELA sua vida depende de mim'. A minha alegria voltou. Cada dia é um desafio, mas Ele está comigo.

Acredito que doença é um estado. Uma característica, que não pode nos deter. Uma circunstância. É possível ser feliz, mesmo diante das tempestades da vida.

Arquivo pessoal/Arte UOL

Alguns meses após o diagnóstico, ganhei um computador e um sensor [rastreador ocular chamado Tobii] de uma amiga e irmã em Cristo [Raul é cristão e frequenta o Ministério Vida para Todos, em Santo André], cujo marido, também nosso amigo, teve ELA.

Um tempo depois, o sensor parou de funcionar e fiquei algumas semanas sem ele. Foi quando encontrei uma solução temporária: uma placa com letras coloridas e imantadas [que funcionam como ímã - ver imagem abaixo].

Depois disso, alguns irmãos que viviam em Miami, nos Estados Unidos, me enviaram um novo rastreador ocular. O presidente da associação Pró-Cura da ELA, Jorge Abdalla, nos auxiliou também. E recebi assistência da ONG APPELA (Amigos dos Pacientes Portadores de ELA) para a adaptação desse dispositivo.

Arquivo pessoal/Arte UOL Arquivo pessoal/Arte UOL

Quando aprendi a usar o rastreador ocular, tudo mudou. Os olhos parecem mágicos. Meus familiares queriam que eu contasse sobre os detalhes da doença, dos sintomas, os tratamentos e como prosseguir. Com ajuda do dispositivo comecei a me comunicar novamente com eles, com os amigos.

Voltei a ter acesso ao meu Facebook, Instagram. Hoje em dia, acesso mais aos finais de semana, que são dias mais tranquilos. Aproveito para pôr em dia minhas redes sociais, me atualizar com as notícias e responder mensagens no WhatsApp. Uso mais a versão Web. Ainda consigo controlar os canais da TV com o celular conectado ao computador.

O rastreador ocular é um dispositivo que projeta uma luz infravermelha nos olhos e o reflexo dessa luz é capturado por uma câmera no interior do aparelho. Algoritmos matemáticos, após uma calibração, conseguem identificar para que ponto da tela o usuário está olhando. As letras são acionadas quando as olhamos por um tempo para elas, permitindo, assim, a digitação de palavras por meio dos olhos.

Escrever com os olhos é algo grandioso. Já parou para pensar como seria se você não pudesse falar o que pensa? Ou se as pessoas não te entendessem? É frustrante. A tecnologia torna a comunicação possível. Apesar de ter seus percalços, vou me adaptando. Inclusive, quando quero assistir TV, trocar de canal, aumentar ou diminuir o volume, acessar ao YouTube, e até mesmo ligar ou desligar o ar condicionado, a tecnologia me permite fazer tudo isso sozinho.

Raul Horianski

O tratamento para pacientes com ELA é para melhorar e manter a qualidade de vida, considerando que a doença ainda não tem cura. Conforme o tempo passava, os meus movimentos ficavam cada vez mais comprometidos.

Eu passei então a participar de diversas terapias durante a semana, com uma equipe multidisciplinar especializada em cuidados para pacientes com doenças neurodegenerativas.

Todos os dias da semana tenho fisioterapia motora, terapia ocupacional, fisioterapia respiratória, além de acompanhamento médico, enfermagem 24 horas e nutricionista. É graças a essas terapias constantes e capacitadas que consigo ter a qualidade que preciso para viver.

Arquivo pessoal

A rotina de todos mudou. Minha esposa deixou de trabalhar para poder cuidar de mim. E minhas três filhas [Agustina, Rocío e Romina] a ajudavam no tempo livre.

Apesar disso, sempre fui uma pessoa que tentava ver o melhor lado das coisas. Em tudo! (minha família que o diga). Me lembro até de uma situação engraçada.

Um certo domingo, fomos passear numa praça que fica perto de casa. Ao voltarmos, tínhamos que descer com a cadeira de rodas pela garagem do prédio, que tinha uma descida íngreme. Lá não havia entrada com acessibilidade. Passamos por um desnível e eu tinha acabado de tirar o cinto de segurança. Adivinhem: fui parar no chão. Minha esposa e filhas tentaram me levantar inúmeras vezes, usando todas as suas forças, mas não conseguiram. Tiveram que chamar um vizinho para ajudá-las. Enquanto isso, não parávamos de rir!

Lembro de outra situação com a cachorrinha de uma de minhas filhas. Ela se deitava ao meu lado, e não deixava ninguém chegar perto para tirá-la de lá. Quando eu já não conseguia mexer meus braços [por conta da ELA], a cachorrinha subia no meu ombro e me lambia inteiro. Como eu não conseguia tirá-la de lá, só dava risada. Minhas filhas se divertiam e riam junto.

Arquivo pessoal/Arte UOL

Em relação a minha vida profissional, quando era mais novo trabalhei com meu pai e tive experiências como empreendedor. Mas, atualmente, o meu trabalho principal é ser missionário, é cuidar das pessoas, orando por elas. Participo do Instituto Vida Para Todos.

Também escrevi o livro ''Por que não Eu?'', onde conto um pouco da minha experiência antes e depois do diagnóstico. Ele aborda um breve resumo da minha infância, alguns momentos marcantes da minha vida e sobre a minha fé.

Com ajuda do primeiro sensor ocular, eu comecei a escrever o meu livro. Comecei a escrevê-lo no início de 2018 e finalizei por volta do mês de setembro do mesmo ano. Não tivemos tempo de nos adequar à agenda das editoras, pois queria ter o quanto antes em minhas mãos. Mas sete meses depois, em 14 de abril de 2019, finalmente, fizemos o lançamento.

A renda adquirida por meio dele é destinada a doações para o trabalho missionário e aos gastos básicos da família.

Minha intenção ao escrevê-lo foi transmitir esperança àqueles que padecem de ELA ou de problemas de saúde sem cura. Só que também é para os que não têm nenhum problema de saúde e os que acham que, de alguma forma, a vida é injusta.

Depois de passar por tudo isso, a mensagem que deixo para quem foi diagnosticado com ELA é não deixe que a doença abale a sua vida. Continue vivendo, enfrentando, lutando. E, mais do que isso, busque a Deus. É possível ser feliz, mesmo diante das tempestades da vida, pois há uma esperança que não se limita a esta vida, e ela está em Deus.

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