E te direi quem és

Brasileiro autoridade na reconstituição facial explica como dá rosto real a Santo Antônio, Jesus e D. Pedro I

Lucas Carvalho De Tilt, em São Paulo

Quando Cícero Moraes saiu de casa para visitar a mãe e o padrasto em Sinop (MT) naquele dia, não imaginava que estava prestes a tomar outro rumo na vida. O designer, então com 28 anos, foi rendido por uma dupla de assaltantes que havia invadido a casa da família e, sem pensar direito, reagiu ao assalto. Depois de partir para cima dos invasores com socos, acabou levando um tiro de raspão na cabeça. Os criminosos foram embora, e ele ficou. Vivo, mas traumatizado.

Foram semanas sem sair de casa, com crises de pânico e uma costela quebrada. "Só conseguia pensar que quase morri e coloquei minha família em risco reagindo ao assalto", lembra. Nessa época, estudava para vencer o medo e a dor. Quando viu, estava digitando "reconstituição facial" no Google e mergulhando num hobby da adolescência: a arte forense.

Mesmo ele, um ateu, sorri quando seus (hoje muitos) amigos religiosos falam em "intervenção divina". Até então, ele era um freelancer que fazia avatares, mascotes e ilustrações tridimensionais usadas em propagandas. Mas, estudou tanto as técnicas para retratar graficamente pessoas desaparecidas ou mortas que desenvolveu extensões (plugins) para programas de modelagem 3D, como o InVesalius e Blender.

Tudo começou de forma amadora, mas os primeiros trabalhos já chamaram a atenção. Ele passou a colaborar com a Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) e foi notado por arqueólogos que usaram o software para digitalizar fósseis. Três anos depois, já veio o convite que mudou tudo: o grupo Arc-Team, da Itália, contratou-o para um projeto do Museu de Antropologia da Universidade de Pádua.

O que Cícero não imaginava (de novo) é que estava prestes a revelar a verdadeira face do santo casamenteiro mais venerado no Brasil e no mundo: Santo Antônio de Pádua.

Propositadamente, ele só sabia que tinha em mãos o crânio de um homem branco, de 36 anos, parte da história italiana - o osso foi retirado em 1981 do túmulo onde o religioso foi enterrado em 1232, na Itália.

Me disseram que era uma mostra com 24 reconstituições faciais da evolução humana e cinco figuras históricas de Pádua. Depois que o trabalho estava pronto, contaram quem era. Fiquei sem palavras, literalmente pasmo. Embora não seja uma pessoa religiosa, senti uma grande responsabilidade. Milhões de pessoas no mundo poderiam ver o rosto de seu santo

Do crânio, ele criou as imagens 3D e usou uma técnica inovadora, elaborada por ele, para calcular com precisão a quantidade de músculos, pele e cartilagem que colocaria. No fim, apresentou "uma das mais fiéis reconstruções do rosto de Santo Antônio", segundo os envolvidos no projeto. O mistério em torno do nome garantiu uma imagem nova e realista, sem a bagagem cultural e religiosa.

Esta reconstrução limpa de seu rosto aquilo que nós queremos ver e nos mostra como ele realmente era
Nicola Carrara, curador do Museu de Antropologia da Universidade de Pádua na época

Do trabalho do Cícero, também saiu um busto do Santo Antônio feito numa impressora 3D que está exposto no museu de Pádua até hoje. A peça foi pintada pela artista plástica brasileira Mari Bueno e revelou um jovem de rosto mais largo do que se acreditava, olhos profundos, nariz proeminente e lábios grossos.

Foi a primeira vez que especialistas usaram a fotogametria somada a estudos de arcada dentária e crânio para montar moldes 3D assim, então este foi um trabalho considerado fundamental para a área. Desde então, o designer ganhou fama, autoridade e montou um portfólio de peso. Confira abaixo algumas das figuras mais interessantes nele.

Tipos de reconstituição facial

  • Forense

    Usada para desvendar crimes, identificar corpos e fazer retratos falados de pessoas desaparecidas. O designer precisa ter acesso aos restos mortais da pessoa, como crânio (ou uma parte dele), arcada dentária ou fotos antigas do procurado.

  • Histórica

    Usada para entender a ancestralidade de um povo em certa época ou região. É mais trabalhosa, porque une pesquisas históricas com material de quem já morreu há séculos ou milênios --e os restos mortais podem estar em estado avançado de decomposição.

  • Religiosa

    É mais artística, pois usa elementos não comprovados cientificamente. Nem sempre baseia-se em restos mortais, porque personagens bíblicos, por exemplo, podem não ter túmulos conhecidos ou comprovados. A base do trabalho são relatos e crenças, e as lacunas são preenchidas pelo designer.

Como digitalizar o crânio

O que você vê acima é o crânio do Homem de Perak, um adulto do sexo masculino cujo fóssil foi encontrado nos anos 1990 no Vale Lenggog, Malásia. Estima-se que ele tenha vivido há mais de 10 mil anos. Esta reconstituição facial, a mais recente de Cícero, serve para ilustrar bem o primeiro passo: fotografar o crânio (ou o que sobrou dele) com um celular e transformar as fotos 2D em um vetor 3D.

Para isso, Cícero e seu parceiro Paulo Miamoto, da Faculdade de Odontologia da USP, criaram um software inovador que usa fotogrametria e marcadores de profundidade de tecido, que indicam as posições do nariz, dos olhos, das orelhas e da boca. A precisão é de 1 mm. A imagem digital em três dimensões é manipulada no programa Blender, muito usado em games e animações para cinema e publicidade.

Quando não há restos mortais, em reconstituições históricas ou religiosas, usa-se crânios de pessoas que viveram na mesma época ou região. O algoritmo computacional também trabalha com três grandes grupos já pré-definidos: asiáticos, africanos e europeus.

Como rechear o bolo

Na hora de cobrir esse crânio com músculos, sangue e pele virtuais, é como brincar com massinha digital. O segredo de Cícero é alcançar com muita acurácia o volume e o formato da massa mole e caprichar nos detalhes que precisam ser preenchidos a partir de relatos.

Para saber o quanto desse "recheio" a pessoa tinha em cada parte do rosto e acertar nariz, bochechas e outras características, Cícero pode usar material obtido pelos investigadores (no caso da reconstrução forense), como pele e cabelo, ou fotografias.

Segundo ele, não basta cobrir o crânio virtual igualmente com as camadas de músculo que conhecemos dos livros de anatomia, porque as espessuras variam de pessoa para pessoa. "Se você se guiar só por isso, o sujeito vai ficar com a aparência de alguém doente, que perdeu massa e ficou com a cara ressecada", diz.

Quando não há amostras, o designer usa um cálculo aproximado, que considera a espessura média das camadas dos rostos dos seres humanos. Essa matemática foi feita décadas atrás quando legistas espetavam os rostos de cadáveres com agulhas para saber quão fundo elas iam —e, consequentemente, qual era a espessura da massa muscular que cobre o crânio.

Como dar acabamento

Falta o acabamento: cabelo, barba, sobrancelha, cílios, espessura dos lábios e mais. Aqui, é na base do "chutômetro" mesmo —ou melhor, de informações coletadas de outras fontes com um toque artístico do designer.

No caso da reconstrução forense, prevalecem os relatos de testemunhas ou pessoas próximas que confirmam se o retratado tinha uma cicatriz ou outra característica facial. "Em investigações, mostramos um rosto em preto e branco, porque muitas vezes não sabemos qual é a tonalidade da pele, a menos que haja amostras de tecido na cena do crime ou seja feito um exame de DNA para orientar sobre a cor dos olhos e do cabelo. Mas é raríssimo, porque é muito caro e inacessível", explica.

Em reconstruções religiosas ou históricas, vale a informação descrita nos livros sagrados ou no conhecimento acumulado por historiadores e arqueólogos sobre a cultura da região e época em que o personagem retratado viveu.

Rosto para quem desapareceu

O Santo Antônio foi o pontapé da carreira do brasileiro, que virou professor e especialista em reconstituição religiosa. Desde então, Cícero já deu cara para diversas figuras históricas, retratou a evolução humana e nossos antepassados. Mas é um caso forense que o emociona.

Lucas Junqueira tinha 26 anos quando desapareceu em Lajeado (RS), em 2016. Ele saiu de casa às 15h de um sábado, dizendo: "Vou ir ali e já volto". Sua mulher estava grávida, e a criança nasceu semanas após o sumiço. A polícia procurou sinais por meses, e o pai César Junqueira peregrinou incansavelmente de cidade em cidade em busca por informação. Na época, disse ao jornal "A Hora": "Ele é meu único filho, não vou descansar enquanto não encontrar ele ou o corpo dele. Precisamos de uma resposta."

A resposta veio quatro anos depois, quando Cícero chegou ao Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul para ajudar a identificar uma ossada achada em Estrela (RS). A reconstituição facial confirmou se tratar de Lucas, que morreu de causas ainda desconhecidas. A busca tinha enfim terminado.

O especialista cita esse caso para mostrar como fotos feitas com celulares simples, manipuladas em softwares livres e cobertas com uma pitada de arte podem trazer conforto às famílias que perderam entes queridos. O trabalho foi destaque na revista científica "Journal of Forensic Sciences" em outubro de 2020.

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