Ameaça profunda

Rússia amplia operações no fundo do mar, e a nossa internet pode ser um de seus alvos

Marcos Bonfim Colaboração para Tilt

Quando você acessa um site hospedado em outro continente dificilmente imagina que os dados precisaram cruzar o oceano para que isso fosse possível. Apesar de os satélites serem uma grande promessa, hoje 99% das conexões passam por cabos submarinos de fibra ótica. Agora, essa gigantesca rede de fios parece estar em risco.

Segundo alertas de forças militares e de inteligência de países como Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda e Noruega, a Rússia tem desenvolvido atividades no fundo do mar próximas aos cabos, em especial no Atlântico Norte e no Ártico. Isso levou especialistas a temerem danos à internet mundial, seja por meio de cortes, espionagem ou grampos feitos pelo governo russo.

Há cenários em que seria vantajoso para a Rússia cortar completamente as comunicações. Em outros, seria mais útil entrar nos cabos, interrompendo ou espionando. Todas essas possibilidades de intervenção precisam ser evitadas
Keir Giles, especialista sênior em Rússia na Chatram House, importante observatório britânico de análise geoestratégica

Qual o potencial russo?

Oficiais da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aliança militar intergovernamental de 30 países, estão constantemente chamando a atenção para o papel da Rússia no grande jogo da política internacional. Eles ressaltam que o país conduz suas maiores movimentações desde o fim da Guerra Fria, com investimentos elevados em submarinos espiões.

H. I. Sutton, especialista naval, escreveu recentemente que o governo de Vladimir Putin conta hoje conta com minissubmarinos de mergulho profundo e com propulsão nuclear, com a função de alcançar o fundo do mar a 3.000 pés de profundidade (ou cerca de 900 metros). O modelo mais conhecido é o Losharik, que possui uma espécie de patins na parte inferior, que ajuda a andar na superfície do oceano, e braços manipuladores, que poderiam inspecionar ou cortar nos cabos em locais difíceis de consertar.

Para chegar ao fundo do mar, esses miniaparelhos precisam de um submarino hospedeiro, como o Podmoskovye BS-64, o mais moderno na Rússia. Existe ainda o Belgorod, apresentado no ano passado, projetado para ser o mais longo do mundo —seu objetivo final de atuação segue em sigilo.

Toda essa estratégia é conduzida pela Gugi (sigla em russo para Direção Principal de Pesquisa em Águas Profundas, em tradução livre), uma divisão ultrassecreta ligada diretamente ao Ministério da Defesa, e não à Marinha do país.

"As atividades da Gugi eram antes classificadas. Agora, como o esforço para investigar os cabos tornou-se tão intenso desde 2015, a organização se tornou muito mais visível. Mesmo assim, ainda hoje é difícil avaliar exatamente o que a Rússia é capaz de fazer só por meio das informações disponíveis", explica Giles.

A reportagem solicitou à embaixada da Rússia no Brasil informações sobre a atuação da Gugi e as atividades desenvolvidas nos cabos submarinos. O órgão não respondeu às dúvidas, mas sugeriu contatar o Departamento de Informação e Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, além do Departamento de Informação e Comunicação Social do Ministério da Defesa do país, mas nenhum deles retornou o contato até o momento.

Dinheiro e poder

Proteger os cabos é vital para a economia digital —por eles, passam, por exemplo, mais de US$ 10 trilhões por dia (mais de R$ 55 trilhões) em transações financeiras e comerciais. Mas a grande preocupação nas comunidades de segurança, principalmente nos EUA e na Inglaterra, é outra.

Em recente apresentação, James Foggo III, ex-comandante das Forças Navais dos Estados Unidos na Europa-África e da Otan em Nápoles (Itália), defendeu que os países precisam fazer mais por essa "infraestrutura crítica", porque a situação mudou nos últimos anos. Foggo foi o responsável pelo maior exercício realizado pela Otan desde o fim da Guerra Fria, o Trident Juncture, que reuniu mais de 50 mil militares de 31 nações na Noruega entre outubro e novembro de 2018. Era uma operação de defesa, mas que tinha um propósito adicional: mandar uma mensagem clara para a Rússia.

"Melhoramos a nossa capacidade para defender a nossa aliança e nós queríamos que eles soubessem", disse o oficial.

Os EUA contam desde o início deste ano com o Cable Ship Security Program (Programa de Segurança para Navios de Manutenção a Cabos), que permite à Marinha pagar uma bolsa a navios comerciais para que façam reparos de emergência em cabos. O problema é que isso está limitado a duas embarcações, que recebem US$ 5 milhões cada uma. Ou seja, em casos mais graves, não resolve.

A iniciativa demonstra, no entanto, que o país acompanha a situação mais de perto. As movimentações russas (acompanhadas das chinesas) apareceram entre as justificativas para o pedido de aumento do orçamento que o Pentágono encaminhou ao Congresso para o ano de 2021.

No documento, o órgão apresenta um mapa em que se nota o tráfego naval russo ao longo dos cabos, principalmente no Atlântico Norte, em regiões próximas à Irlanda, Inglaterra e aos EUA.

O centro de gravidade do capitalismo é o espaço cibernético. Os cabos submarinos são considerados vitais para a economia de um país porque os dados são os ativos estratégicos mais importantes do século 21

Bernardo Wahl, professor de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Precisamos ter certeza que nossos bens e dados podem viajar quando e para onde eles precisarem, mas ao longo da última década isso se tornou mais desafiador. Entramos na quarta batalha do Atlântico

James Foggo III, em referência às duas grandes guerras e à Guerra Fria

Lembranças do passado

A preocupação com as atividades russas é recente, mas elas encontram ressonância em estratégias no passado. Na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, a Inglaterra cortou diversos cabos telegráficos da Alemanha, limitando a comunicação do país inimigo. Como tinha domínio da infraestrutura telegráfica internacional, o império britânico conseguiu acompanhar melhor as mensagens que transitavam pelos cabos restantes após o corte, criando uma rede global de vigilância e interceptação.

Mais recentemente, os especialistas chamam a atenção para o caso da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, como um exemplo de desconexão. Na ocasião, as forças do governo de Vladimir Putin tomaram o principal ponto de internet em um momento crítico do conflito, mas também houve hacking de celulares e ataques a emissoras de TV.

"Essas ações têm o potencial de destruir os cabos, deixando países desconectados. A tomada da Crimeia pode ser considerada uma espécie de laboratório em uma guerra entre grandes potências", explica Bernardo Wahl, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Para Keir Giles, não se trata apenas de cabos submarinos: satélites civis de telecomunicações no espaço e redes de fibra ótica em terra também estão na mira. "A Rússia tem investigado como interferir ou interditar todos eles", afirma.

"[Ela] não usa apenas desinformação, propaganda e efeitos cibernéticos, mas também a interrupção e o isolamento. O corte de fontes de informações externas foi uma parte fundamental do sucesso da Rússia na apreensão da Crimeia, e desde então, temos visto um programa intensivo de sondagem das vulnerabilidades da infraestrutura de telecomunicações civis em todo o mundo sendo executado pelo país", explica o britânico, um dos maiores especialistas internacionais em segurança russa.

Vale lembrar que um projeto de lei de Vladimir Putin autorizou, no ano passado, a criação de uma infraestrutura própria que permita isolar a rede russa da internet global. Um dos motivos especulados para isso é se livrar da dependência dos servidores norte-americanos.

Há razões para pânico?

Se você chegou até aqui e quer saber se a Rússia é capaz de cortar a internet do mundo todo apenas "tesourando" os cabos marítimos, a resposta é não. Mas eles são, sim, mais frágeis do que parecem.

"Os cabos submarinos correm muito menos risco por parte das atividades do governo russo do que pelas quebras involuntárias provocadas por âncoras dos navios, redes de arrasto e outras atividades regulares no fundo do mar", diz Nicole Starosielski, professora na Universidade de Nova York e autora do livro The Undersea Network (A Rede Submarina, em tradução livre).

Em média, 200 deles sofrem danos assim por ano, de acordo com o International Cable Protection Committee (Comitê Internacional de Proteção aos Cabos). Isso acontece normalmente em águas mais rasas, com menos de 100 metros de profundidade. Como esses equipamentos funcionam com um modelo de redundância (backups), na maioria dos casos não há uma percepção de falha ou interrupção da comunicação.

Para a especialista, os cabos até podem ser cortados, mas seria preciso uma operação muito complexa para atingir em cheio a internet de um país como os EUA, então não é o cenário mais realista. Além disso, grande parte do conteúdo da web está em servidores norte-americanos, portanto um corte nos cabos não a isolaria tanto —isso pode variar de país para país.

Em um cenário mais pessimista, de ataque russo, Starosielski afirma que o reparo de todos os cabos levaria um bom tempo. "Há um número limitado de navios de manutenção a cabos capazes de fazer consertos. Então, levaria tempo para realizar os ajustes necessários e se deslocar pelo oceano para o próximo sistema quebrado. Muitas conexões com o resto do mundo falhariam", explica.

Como é impossível monitorar todos os cabos oceânicos em tempo real com a força militar disponível, é preciso aumentar proteções e investimentos, diz ela. Isso inclui mais redundância, diversificação de rotas dos cabos e descentralização das estações.

Ryan Wopschall, gerente geral da ICPC, também defende que quanto maior o número de cabos e maior a malha, mais difícil fica a interrupção das comunicações.

Embora a pesca e a ancoragem tragam riscos de blecaute potencialmente maiores do que as ações russas, as operadoras de internet têm empregado fortes medidas de segurança cibernética e de criptografia para proteger as informações, com articulação junto a governos.

E o Brasil nisso?

Por aqui, mais de uma dezena de cabos são responsáveis pelo tráfego das informações com o resto do mundo. As principais estações ficam no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Ceará. Mesmo distante do jogo político entre as grandes potências e com questões mais urgentes, o Brasil precisa acompanhar essa discussão, acredita o professor Bernardo Wahl.

"Temos preocupações mais imediatas do que essa. Ao mesmo tempo, o país poderia sofrer um efeito colateral, porque o dano seria global. Como lidaríamos em uma situação como essa? Teríamos sistema de redundância? O país continuaria funcionando? Em termos de hipóteses, é algo que os militares já devem ter discutido entre si", analisa.

Procurado por Tilt, o Ministério da Defesa, por meio da Marinha, informou que monitora o tráfego mercante e aquaviário na Amazônia Azul [como é chamado o território marítimo brasileiro], incluindo as áreas marítimas por onde passam os cabos submarinos. Além disso, diz considerar o fortalecimento dessas ações como fundamental para neutralizar atividades que possam afetar os interesses e a soberania do Brasil.

O órgão também afirmou que, em casos de ataques, "sistemas de redundância deverão ser prontamente acionados pelas autoridades competentes". Quanto à proteção da cidade de Fortaleza, a estação geograficamente mais exposta e com forte presença de links transoceânicos, a Marinha disse fazer o acompanhamento a partir do Centro Integrado de Segurança Marítima (Cismar) e do Comando do 3º Distrito Naval.

Em fevereiro, o país aprovou a Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (E-Ciber), com rumos para a gestão e proteção do espaço cibernético, o que inclui os cabos submarinos. Seu objetivo é definir uma política estruturada sobre o tema ao longo dos próximos anos.

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