Entre o céu e a terra

Enquanto quer virar "WeChat da América Latina", Rappi diz que tenta atender às críticas de entregadores

Gabriel Francisco Ribeiro De Tilt, em São Paulo

Nem só de entregas vive um aplicativo de... entregas. A Rappi, que surgiu como uma plataforma de delivery conhecida por "entregar" qualquer coisa, agora mira ir muito mais longe: virar algo próximo ao que o superapp WeChat é na China, mas aqui na América Latina.

O ambicioso desejo foi compartilhado ao Tilt por Sergio Saraiva, presidente do aplicativo no Brasil. Os primeiros passos neste sentido já foram dados, após incluírem no app funções que vão bem além do delivery, serviço cada vez mais concorrido na pandemia de coronavírus.

Ao mesmo tempo que faz planos de alcançar o céu, o app tem que lidar com questões mais pés no chão: o último mês de julho foi marcado por greves e paralisações de entregadores, revoltados com a maneira como são tratados por plataformas de entregas como a Rappi. Para Saraiva, essa nova relação de trabalho é uma realidade apreciada até por quem faz entregas.

Startup, "mêo"

Fazer a entrevista com Saraiva é ouvir ao longo do papo vários "mantras". São palavras-chave que vão sendo ditas a cada resposta e que sintetizam a "alma" da Rappi —algo cada vez mais comum no mundo corporativo, com seus jargões como "missões" e "frentes".

Entre as principais, no caso da Rappi, estão "ecossistema", "verticais", "superaplicativo", "mente de startup", "experiência"... Não faltam definições para a empresa. A impressão que dá é que para vestir a camisa do app é preciso assumir essa nomenclatura e focar nas "missões".

"Dizemos que na Rappi todo mundo tem cabeça de dono e de empreendedor. Isso significa que as pessoas com esse perfil têm atitude, enxergam oportunidade, perguntam, exploram, buscam melhorar", define Saraiva.

Os planos com essa "mentalidade de startup"? Nada simplórios: virar o maior aplicativo da América Latina.

"Nosso setor não pode ser a solução para uma crise da sociedade"

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Muito mais do que entregas

Tilt: Como você avalia o atual momento da Rappi? O quão consolidada a plataforma está?

Sergio Saraiva: Somos um superaplicativo e queremos estar em vários momentos da vida dos usuários. Começou com supermercado lá atras, depois restaurantes, entraram farmácia, bebidas, ecommerce neste ano e há poucas semanas a parte de entretenimento. Estamos ampliando o ecossistema. E tem uma parcela relevante que é o entregador parceiro. Na maioria dos casos ele é o ponto de conexão com o usuário.

Vamos entendendo os consumidores. Muitas vezes eles não sabem o que querem. Temos um botão chamado "qualquer coisa" que faz com que entendamos os pleitos dos usuários. É uma grande fonte de ideias para desenvolvermos. Então temos várias verticais, um conceito cada vez mais robusto de ecossistema para consolidar posição como o grande superapp da América Latina.

Tilt: Os exemplos de "superapps" costumam vir da China e o mais icônico é o WeChat, que é uma plataforma com transferência de dinheiro, ecommerce, chat e por aí vai. A intenção é chegar a algo nesses moldes, com o usuário começando e terminando a vida na Rappi?

Sergio Saraiva: Queremos isso. Começou mesmo na China: temos verticais muito parecidas, mas para a realidade brasileira. Buscamos estar do acordar do usuário até ele dormir. Por isso que surgiu a vertical de entretenimento. Tem games, eventos ao vivo, música, vídeo. Para exatamente estar ali o dia inteiro.

Tilt: Desde o começo a Rappi é definida como um aplicativo que "entrega qualquer coisa". Ao expandir para games e lives, até onde vocês querem chegar?

Sergio Saraiva: Não tem limite na criatividade. À medida que escutamos, desenvolvemos novas oportunidades para atender usuários. Os jogos surgiram em uma conversa em que a pessoa disse "às vezes faço um pedido, estou esperando e não tenho muito o que fazer, queria me distrair". Aí fizemos um experimento de três meses para as pessoas jogarem ali e foi bem aceito. E aí nasceu a vertical de entretenimento. Já são 260 mil usuários únicos semanais nos joguinhos. Imaginamos que esse mercado seja muito maior.

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Tilt: Uma das novas funções foi o Live Shopping, que é uma febre na China. O influenciador apresenta o produto e as pessoas podem comprar instantaneamente. Como vocês querem fazer as pessoas se acostumarem a isso no Brasil?

Sergio Saraiva: Vamos pegar tendências, os influenciadores, cantores, artistas, chefs. Você pensa em roupa e maquiagem, mas imagina um evento ao vivo com um chef de cozinha famoso. E aí avisamos que vai fazer um prato e que você pode comprar antes ou na hora os ingredientes. Você pode até fazer junto com o chef. Pode fazer perguntas como "por que o meu não está tão dourado como o seu?" no chat. É isso que buscamos: entretenimento e engajamento na plataforma.

Tilt: Quais os planos da Rappi para o médio prazo e longo prazo, tanto aqui no Brasil como no exterior?

Sergio Saraiva: Estamos no Brasil há três anos e em nove países da América Latina. Nesses nove países temos presença forte e estamos crescendo, mas o Brasil é uma das prioridades. Não só em oferta de produtos como em cidades; é um casamento de longo prazo. Queremos focar na América Latina. Pode-se até sair do continente eventualmente, mas isso nem se discute ainda. Somos uma empresa de brasileiros, colombianos, argentinos, cada um entregando serviços no seu pais.

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E o lucro?

Tilt: A Rappi não obteve lucro nos seus cinco primeiros anos de existência. Isso é uma tendência entre apps de mobilidade como a Uber. Os novos serviços no app são uma forma de tentar trazer lucratividade para a plataforma?

Sergio Saraiva: Quando você fala que não atingimos o lucro, o que é verdade no momento, é porque estamos investindo para crescer. Pensa que a Amazon ficou 15 anos sem gerar caixa e agora virou a maior empresa do mundo. Estamos lançando verticais, pegando tendências, conquistando usuários. É mais importante do que olhar o curto prazo. É uma fórmula diferente de pensar gestão de empresas. Senão olha-se o quanto investiu, quanto é o retorno e no final tem uma visão de muito curto prazo. E não cresce a experiência do cliente como deveria.

Tilt: Quando há manifestação, diz-se que as empresas têm lucros milionários, mas isso não acontece. Por que é tão difícil uma empresa que não têm tantos ativos físicos, como por exemplo motos ou bicicletas próprias, dar lucro? De onde vem o maior gasto?

Sergio Saraiva: Quando a gente cria esse ecossistema, de fato não temos nenhum ativo. Restaurante, supermercado ou farmácia são operações independentes, o usuário é independente e o entregador é um parceiro que trabalha para várias plataformas ao mesmo tempo. Entendemos o usuário e sabemos como atender a demanda dele. Aí ele compra no restaurante e ganhamos uma comissão. Todo mundo se beneficia e ganha um pouco. Se o sistema não for saudável para uma das partes, não funciona.

Tilt: Analistas falam que os dados da Rappi são o maior ativo para gerar lucro. O que é possível fazer com esses dados respeitando leis como a LGPD? É possível prever o que a pessoa vai querer comprar?

Sergio Saraiva: A gente respeita muito a LGPD. Os dados [no app Rappi] nunca são transacionados ou manipulados de forma nominal, só no agregado [reunindo dados anonimizados]. É um potencial porque sabemos o comportamento da pessoa de manhã e à noite. Aí com isso conseguimos antecipar necessidades. Alguém que tenha um hábito pode receber uma oferta. Se uma pessoa compra sempre leite, pode ter uma criança em casa para ofertarmos uma fralda.

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Rappi e a greve dos entregadores

Tilt: Na pandemia os entregadores foram considerados serviço essencial. E sensibilizaram a população com reivindicações e paralisações não só contra a Rappi, mas contra outros aplicativos. Como vocês avaliam esses atos?

Sergio Saraiva: Vivemos em uma democracia, então todo mundo tem o direito de se manifestar de forma organizada, sem violência. É justo. Essa é uma nova economia, colaborativa. Você tem o lado de demanda do usuário e a oferta de entregadores, assim como restaurantes e mercados também. É uma economia que se autoequilibra. A parte do seguro oferecemos desde o ano passado. Sobre descontos e convênios, temos alguns e vai aumentar.

Tilt: E quanto a demandas específicas da Rappi, como o sistema de pontos, que os obrigaria a trabalhar quase todos os dias para terem as melhores chamadas?

Sergio Saraiva: O sistema de pontos nasceu de uma demanda de entregadores perguntando como poderiam ter preferência se tiverem um engajamento maior. Ele já existe no mercado de passageiros, em que todo mundo avalia e há uma priorização para os parceiros mais engajados. Com essa manifestação, vimos que precisamos melhorar. O sistema previa que o acúmulo de pontos duraria uma semana. E aí pode ter um problema: quebrou moto, ficou doente, algo impediu de trabalhar, perdia pontos. Agora vamos fazer o acúmulo por um mês. Se não der certo, mudamos para dois meses. Vamos melhorando gradualmente.

Tilt: Existem algumas demandas também relacionadas à pandemia...

Sergio Saraiva: Um dos pedidos são máscaras. Logo depois do Carnaval, na primeira semana de março, autorizamos a importação do primeiro lote de máscaras para os entregadores. O governo brasileiro não demandava máscara e até nos questionaram por que iríamos importar. Resolvemos ser precavidos. Criamos 14 centros de prevenção onde o entregador recebe produto químico que desinfeta a roupa, a bolsa. Se o entregador tiver sintomas, pode notificar em um botão de emergência e orientamos a procurar serviço público de saúde. Se não fizer o teste, pega um atestado dizendo que tem sintomas, afastamos por 14 dias e pagamos comissão média do período anterior. Quem processa e avalia tudo é a Cruz Vermelha brasileira.

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Tilt: Uma crítica comum é que a sociedade ganhou vários direitos trabalhistas ao longo do último século e agora os apps "removeram" esses direitos, pois os entregadores precisam trabalhar muitas horas seguidas. Como vocês avaliam um cenário mais justo, entre ser autônomo e CLT?

Sergio Saraiva: Na manifestação de 1º de julho, o próprio movimento não demandou ser CLT. A economia compartilhada traz muito benefício relevante: flexibilidade, remuneração por hora, gorjeta de forma diferente. Isso começou com as empresas de transporte de passageiros, não é novo. Também não está restrito a essas áreas: tem o cara de manutenção, pintor, várias profissões autônomas. Se tivesse CLT, certamente teria um número menor de empregados, ficaria mais caro para o ecossistema, teria menos flexibilização de horas trabalhadas. Com a formalização dos apps de transporte, nosso setor passou a pagar imposto em uma atividade que não era vista pelo fisco. Acho que tem uma evolução bacana, mas é um processo que pode melhorar.

Tilt: Os aplicativos de delivery provavelmente sofrerão alguma regulamentação em breve. Existem dezenas de projetos na Câmara, leis de vereadores em SP... O que seria uma norma adequada para vocês?

Sergio Saraiva: Não queremos o fim de um tipo de serviço que gera tanto emprego e que passar por uma evolução. Todo projeto de lei passa por fóruns de discussão, tem que ouvir todas as partes, ouvir valores agregados e valores que atrapalham. Assim como os aplicativos de transporte de passageiros passaram por esse processo, deveríamos passar também.

Tilt: A Rappi tem uma certa fama entre usuários e entregadores de ser a empresa que paga menos a esses trabalhadores. Você teria números do pagamento dado atualmente?

Sergio Saraiva: Essa parte eu não sei se reconheço. Já ouvi de todos os lados. Já ouvi de outros, da nossa. Faltam talvez mais dados para discutir. Não nos beneficiamos do frete cobrado, repassamos tudo. A pandemia também afetou: imagina que tinha um número X de pedidos em fevereiro e cresceu bastante depois disso. Mas tinha um número de desempregados em fevereiro, e também autônomos, que multiplicou por cinco ou seis. Tem muito mais entregador de fato do que entregas sendo feitas. É muito desproporcional o crescimento.

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Tilt: Pedi para os entregadores mandarem perguntas. Uma delas é esta: por que não deixam claro para o entregador o motivo do bloqueio? Como têm certeza que a culpa é do entregador e não do sistema?

Sergio Saraiva: Tínhamos uma forma de contato, cresceu demais e aí gerou dificuldade para o entregador receber a informação correta. Então investimos. O atendimento está mais parrudo e estamos comunicando de uma forma muito melhor do que antes em função dessa demanda exponencial. Temos investido bastante e estamos retomando o patamar de antes.

Tilt: Já a outra pergunta é: por que não dão transparência para o entregador saber quanto está ganhando? Não no sentido do valor total, mas por quilômetro, por espera e por ponto (local de retirada e entrega). E quando o entregador pode saber que o algoritmo está errado?

Sergio Saraiva: Essa eu não tenho resposta na ponta da língua. Tentamos informar quanto está ganhando e quanto está ganhando por hora. Quando você começa a quebrar o algoritmo, você começa a dizer: esse ponto é isso, tal ponto aquilo, começa a comparar e aí tem outras consequências. Mas a ideia é ter uma relação próxima com os entregadores.

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Como a pandemia mudou o delivery

Tilt: O setor de delivery nunca foi tão importante como agora, em meio ao coronavírus. Como a pandemia mudou a Rappi? Qual foi o crescimento da plataforma?

Sergio Saraiva: Em janeiro e fevereiro, quando começou a sair [a epidemia] da China, na Coreia e Itália, fizemos um plano para todo o ecossistema. Contratamos muita gente antes, nos preparamos vendo o que acontecia em supermercados da Europa com gôndola vazia. Aumentamos o tamanho da entrega. Tínhamos poucos carros porque estávamos testando isso. Quando vimos o que acontecia na Europa, com as compras maiores, começamos a trazer carros porque mudou o perfil do consumidor. Geralmente fazia compra para uma semana, fim de semana, mas o pessoal começou a comprar mais porque não sabia se iria ter.

Tilt: Acha que o ato de pedir algo por app em casa vai ser algo que permanecerá um costume maior mesmo após a pandemia?

Sergio Saraiva: Acho que sim. É cedo, nenhum país conseguiu sair de forma estruturada exceto a China. Mas achamos que sim. Você muda um hábito de uma pessoa quando passa um período sendo repetido. Já estamos há cinco meses, não sei quanto tempo mais fica. Mas é um período longo o suficiente para as pessoas se acostumarem com o novo hábito. Uma parcela de fato vai voltar a sair, mas uma boa parte continua.

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