Nasce um novo gigante

Em entrevista a Tilt, diretor-geral do ESO explica como maior telescópio do mundo vai mudar a astronomia

Gabriel Francisco Ribeiro De Tilt, em São Paulo

Uma revolução na astronomia está acontecendo aqui do lado, no deserto do Atacama (Chile). Ali, o ESO (sigla em inglês de Observatório Europeu do Sul) constrói o maior telescópio de seu tipo no mundo, que abrirá os olhos da humanidade para conhecimentos ainda mais profundos do Universo.

À frente da empreitada está o catalão Xavier Barcons, diretor-geral do ESO. Formado em física pela Universidade de Barcelona, com pós-doutorado na Universidade Cambridge e há 25 anos no Conselho Espanhol para Pesquisa Científica, ele tem experiência suficiente para tocar esse "trem".

Em visita recentemente ao Brasil, ele bateu um papo exclusivo com Tilt e falou das dificuldades para construir o ELT (sigla em inglês de Telescópio Extremamente Largo), previsto para durar 30 anos. Ele comentou ainda sobre a falta de interesse do governo brasileiro de fazer parte do consórcio, o que impede que nossos cientistas usufruam de toda essa potencialidade.

ESO / Y. Beletsky

"O maior olho no céu"

É assim que o diretor do ESO chama o novo telescópio, um gigante de 39 m de diâmetro e mais de 73 m de altura, com infravermelho, montado a 3,046 metros acima do nível do mar, no Atacama —um dos melhores pontos para o posicionamento de uma lente dessas por sua altitude, baixa frequência de nuvens e céu sem poluição luminosa.

Tanta perfeição resulta, como era de se esperar, em uma construção difícil e cara —o custo estimado é de 1,2 bilhão de euros (cerca de R$ 5,8 bilhões). O observatório europeu até sonhava com um telescópio ótico de 100 metros, mas precisou abandonar a ideia para torná-lo viável e uma realidade até 2025.

"Sempre há percalços. O começo foi lento, por conta de problemas de fundo. É um grande desafio do ponto de vista do tamanho e da tecnologia. Temos esse projeto gigante e, ao mesmo tempo, precisamos manter os telescópios atuais em operação. Tivemos que atrasar em um ano, mas agora já é um trem em alta velocidade", disse Barcons.

Quando for inaugurado, o telescópio vai superar todos os outros equipamentos que o maior consórcio astronômico mundial já mantém na região —responsáveis por descobertas dignas de nota, como a recente primeira foto tirada de um buraco negro.

Quebra-cabeça à prova de terremotos

Para você ter noção de como o processo de construção é difícil, as partes são construídas na Europa e depois montadas no Chile, um país cheio de terremotos. Isso quer dizer que um mínimo erro pode significar ter de reconstruir toda uma estrutura, milimetricamente pensada levando em consideração os abalados sísmicos.

Segundo o ESO, o risco de tremores foi levado em conta em todos os aspectos de design do objeto. Dois estudos foram feitos e quatro empresas independentes contratadas para desenvolver isolamentos para o telescópio e o domo, a fim de proteger a infraestrutura de danos.

"Uma das dificuldades é de um telescópio profissional desses é ele ser único, com centenas de painéis, cujas intersecções da superfície precisam ser frações de micrômetro. Você precisa ter certeza que de que tudo está muito bem alinhado", explica Thiago Gonçalves, astrônomo do Observatório do Valongo na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e blogueiro de Tilt.

O diâmetro de 39 metros —escolhido para garantir mais captação de luz e detalhes e, consequentemente, imagens mais muito mais nítidas— limita o espaço necessário para abrigar 798 espelhos hexagonais de 1,4 metro cada um. Eles são a base do telescópio e precisam ser encaixados perfeitamente.

É mais ou menos como numa câmera de fotos: quanto maior a lente, mais luz consegue a máquina consegue captar e mais longe você consegue ver.

Temos um novo Galileu, produção?

Então, poderemos ver muito, muito longe mesmo, certo? Em seu site, o ESO diz que o novo telescópio causará uma revolução na astronomia similar à provocada por Galileu Galilei, responsável por melhorar o telescópio e fazer grandes descobertas de astros.

O próprio Barcons acha a comparação um pouco "exagerada", uma "empolgação" da equipe de comunicação do observatório, mas não nega que o instrumento tem potencial de, literalmente, ampliar muito o que podemos ver:

É uma transformação em quase todos os núcleos científicos da astronomia. Vai ser capaz de fazer muita ciência em exoplanetas, algo que mal podemos fazer agora. Vai poder olhar buracos negros bem de perto, algo que acabamos de fazer no centro da nossa galáxia. Vai ser capaz de resolver mistérios, como a população estelar em galáxias próximas...

Vivemos tempos de grandes avanços neste campo: outros três telescópios gigantes estão sendo construídos no momento, mas o ELT é o maior de sua categoria. Com ele, os astrônomos poderão ampliar o leque e investigar o que hoje é desconhecido. Se os telescópios da geração anterior, de 8 a 10 metros, permitiram achar planetas orbitando outras estrelas fora do Sistema Solar, sabe-se lá o que o novo "brinquedinho" poderá fazer.

O astrônomo brasileiro concorda:

Serão tantas novas descobertas que, sim, nesse sentido pode ser igual ao Galileu. Abre um novo olho no Universo para descobrir coisas inesperadas. E a grande diversão é o inesperado, descobertas que são difíceis de prever porque não temos dados nenhum
Thiago Gonçalves

O que vem de bom por aí

Exoplanetas

O ELT pode analisar atmosferas de exoplanetas e olhar traços de biomarca neles --possíveis indícios de que o exoplaneta sustenta vida. Motivos para estudar exoplanetas: entender onde nos encaixamos no Universo e saber as condições para a existência de sistemas análogos ao nosso.

Primeiras galáxias

Com a mais luz, o ELT poderá observar galáxias mais distantes e antigas para entender a formação desses conglomerados de estrelas. Hoje só captamos uma luz fraca. Motivo para estudar essas galáxias: entender a taxa de expansão do universo e a energia escura.

Buracos negros

O ELT abrirá uma nova era na exploração dos buracos negros supermassivos (a primeira foto de um buraco negro foi tirada recentemente por um telescópios do ESO). Motivo para estudar buracos negros: flagrar eventos, como nuvens de gás, em torno deles na nossa própria Via Láctea.

A grama do vizinho...

Pena que, apesar de tão perto, o telescópio deve ficar longe do nosso alcance. A entrada do Brasil no consórcio, pleiteada em 2009 pelo governo Lula, está parada desde sua aprovação do Congresso, em 2015. Faltou a chancela da presidente Dilma Rousseff (PT), que sofreu um impeachment, e ninguém depois dela fez o processo andar. O ESO chegou a convidar dois observadores brasileiros para visitar as instalações chilenas, mas a dupla nunca foi nomeada.

"Não existe nenhuma conversa neste momento. Tivemos contato com os ministros da Ciência, mas a última vez que isso aconteceu foi em 2014. Em 2018, tentamos novo contato, mas não houve sucesso. Não posso julgar se há ou não interesse, mas estamos abertos ao Brasil. Entendemos que a situação é muito difícil, então decidimos pausar", explicou o diretor do ESO.

Na época das negociações, críticos da entrada do Brasil no ESO questionavam o gasto em meio a uma situação econômica difícil e citavam outras parcerias que poderiam ser feitas com telescópios de locais mais distantes do mundo. Segundo a Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), 87% dos astrônomos filiados eram a favor da parceria.

O presidente da SAB, Reinaldo Carvalho, diz que membros do governo sinalizam uma intenção do atual ministro da Ciência, o astronauta Marcos Pontes, de retomar as negociações, mas não qualquer prazo para que isso ocorra.

"Ele [Marcos Pontes] falou em 2019 que acha o projeto excelente, capaz de transformar a ciência astronômica do Brasil. Combinamos de fazer uma comissão envolvendo a SAB, o ESO e os Ministérios da Ciência e Economia. Esses quatro agentes precisam sentar e discutir, mas ficou para 2020, porque ele teria uma ideia melhor da situação econômica do país", afirma Carvalho.

Procurado por Tilt, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações não respondeu aos questionamentos feitos acerca da parceria com o ESO.

Gasto ou investimento?

Para fazer parte do ESO e ser coproprietário do telescópio, o Brasil teria que desembolsar 256 milhões de euros, pagos em parcelas anuais —valores da época que seriam atualizados de acordo com o PIB do país interessado. A construção do ELT é paga pelos países-membros do consórcio, que têm prioridade em tempo de pesquisa nos telescópios e no envolvimento durante a construção do projeto. No Chile, por exemplo, houve contratação de mão de obra civil local.

"Dizem que é dinheiro para ver telescópio, não é isso. Poderíamos participar de tudo quanto é projeto lá dentro, seríamos mais ativos e teríamos mais expertise. Se você olha a região em torno do ESO em Munique [Alemanha], vê um parque tecnológico. Aquilo é desenvolvimento de pesquisa de altíssimo nível", diz o presidente da SAB.

O ESO faz de um jeito que no final todos os países envolvidos têm de volta 75% do dinheiro investido. Isso é interessante especialmente para o Brasil, que têm indústrias com um tremendo potencial para entrar nessas competições. Não são 256 milhões de euros gastos, já que 200 milhões de euros voltam diretamente para empresas, além de gerar tecnologias de ponta da área espacial e correlatas
Reinaldo Carvalho

O Brasil estava previsto para ser usado durante a construção, e a demora no acordo foi um dos fatores para o atraso do ELT. Segundo Carvalho, engenheiros do ESO vieram conhecer as empresas, entender o potencial e garantir que haveria um retorno do investimento —se impressionaram especialmente com a Embraer. Ao todo, 25 empresas brasileiras tinham interesse em receber projetos do observatório.

Para Barcons, um sinal forte de que o Brasil não fará parte do grupo são os recentes cortes na ciência nacional, com a suspensão de bolsas e apoio para pesquisadores.

"Não é o foco central do governo atual. A economia do Brasil não é o que esperávamos em 2010, ouvi que não se sabia se as bolsas seriam pagas. Como posso fingir que ser membro do ESO é mais importante? Nada é mais importante do que pagar os pesquisadores", falou o diretor.

Mas, Reinaldo Carvalho acredita que os recentes cortes na ciência não afetam tanto a entrada do Brasil no ESO por serem "dinheiros diferentes".

O que vem depois do ELT?

Com a construção do ELT, resta pensar: o que vem depois disso na astronomia? Um telescópio ainda maior? Não necessariamente.

"Não estou convencido de que a próxima etapa será construir um ainda maior. Talvez, mas não sei. A ESO há 20 anos considerou um telescópio de 100 metros, mas, depois de uma análise, percebemos que não era uma fabricação viável. Acho que isso não mudou. Precisamos ser mais imaginativos e olhar em outras áreas e outros instrumentos", opina Barcons.

Já Tiago Gonçalves aponta que será preciso primeiro ver como os novos telescópios gigantes trabalham em parceria com o telescópio espacial James Webb, que será lançado pela Nasa em março de 2021. Há quem diga que os telescópios espaciais façam muito mais sentido do que os "terráqueos" por terem menos poluição visual, mas a ideia é trabalhar ambas as ideias em parceria.

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