O que o Brasil pode ganhar em acordos científicos com os parceiros de Brics?
Boa parte dos resultados concretos que o governo brasileiro espera ter ao fim do encontro com os chefes de Estado de Rússia, Índia, China e África do Sul na décima Cúpula dos Brics nesta semana estão relacionados à cooperação na área de ciência e tecnologia.
O governo espera anunciar parcerias técnicas em projetos bem específicos, com foco na aplicação comercial, e cuja efetivação pode ser relativamente rápida, segundo o ministro Kenneth Nóbrega, diretor do Departamento de Mecanismos Inter-regionais.
"São projetos bem técnicos, e como a maioria não precisa de aprovação orçamentária, já podem começar no curto prazo", disse ele à imprensa pouco antes do início da cúpula.
Apesar de o principal assunto na mesa ser o avanço do protecionismo e a "guerra comercial" iniciada com a imposição de taxas de importação pelos EUA, os resultados nessa área tendem a ser mais de longo prazo.
"O Brics é um bloco de coordenação, ou seja, o grande poder dessas cúpulas é tirar iniciativas para serem levadas em outras instância, combinar o jogo, como ter uma mesma posição na OMC", explica o professor de relações internacionais Geraldo Nagib Zahran Filho, da PUC-Rio.
Além disso, o tema oficial da cúpula são os desafios da chamada Quarta Revolução Industrial - a convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas, a combinação de máquinas com processos digitais que, segundo Klaus Schwab autor de A Quarta Revolução Industrial, transformará fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. A expectativa é que, nos países mais industrializados, pelo menos, esta revolução traga consigo a criação de fábricas inteligentes, capazes de controlar a si mesmas.
O que o Brasil espera concretizar com os Brics na área de cooperação tecnológica?
A principal proposta que o Brasil leva a esta cúpula nesta área é o estabelecimento de uma rede de parques tecnológicos dos Brics, para que haja maior cooperação científica entre os países.
Mas o resultado com maior possibilidade de ser obtido são novidades na área de aviação comercial, com troca de informações para fortalecer as redes de aviação regional; e a criação de uma parceria para estudos da tecnologia de blockchain, o tipo de criptografia usado na criação de moedas virtuais e que pode ser aplicado em diversas outras áreas.
Havia também a expectativa de assinar um memorando de cooperação para uso de imagens de satélites de monitoramento remoto. A ideia do Brasil é franquear as imagens de satélites dos países membros para que elas possam ser usadas de forma não comercial - atualmente quem tem interesse nas imagens precisa comprá-las.
O avanço dessa conversa, no entanto, não está saindo como o Brasil esperava, e divergências sobre o texto do memorando podem fazer com que ele não seja assinado nessa semana.
Na área de saúde, também havia a expectativa de ser inaugurado na África do Sul um centro de pesquisas dos Brics para fabricação de vacinas, mas nada foi anunciado por enquanto.
Há também a expectativa de assinar um memorando de cooperação para uso de imagens de satélites de monitoramento remoto. A ideia é franquear as imagens de satélites dos países membros para que elas possam ser usadas de forma não comercial - atualmente quem tem interesse nas imagens precisa comprá-las.
Além disso, nos inúmeros grupos de trabalho que o bloco vem consolidando nos últimos anos, há pelo menos doze que lidam direta ou indiretamente com a questão da parceria científica.
O ministro Gilberto Kassab, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, entretanto, não faz parte da comitiva de seis ministros que acompanha o presidente Michel Temer na visita à África do Sul, porque, segundo uma fonte do governo, a escolha das pastas que participam da viagem esteve muito mais relacionada a arranjos políticos envolvendo aliados de Temer do que às prioridades dos grupos de trabalho que têm atuado no âmbito dos Brics.
Estado da ciência no Brasil
O governo Temer espera se destacar em acordos de tecnologia na cúpula dos Brics em um momento em que, internamente, a ciência não é exatamente uma prioridade da administração, com inúmeros projetos parados, bolsas cortadas e pesquisadores desempregados.
"De fato a ciência e tecnologia no Brasil encontra-se num estado muito precário, porque o financiamento está em baixa, tem agência de fomento que não está funcionando e os pesquisadores estão desmotivados", afirma Adriana Erthal Abdenur, pesquisadora do Instituto Igarapé e consultora do Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos da ONU.
"Mas temos bolsões de resistência que precisam da diversificação da cooperação internacional para alimentar as ideias aqui no Brasil e para divulgar inovações no exterior."
Os Brics têm um histórico de cooperação na área, embora até agora ele tenha sido muito focado em educação e intercâmbios universitários.
A grande novidade é que China e a Índia estão cada vez mais na ponta da inovação tecnológica, o que atrai um interesse crescente dos outros países do bloco, segundo Abdenur.
"A China e a Índia vêm aumentando seu papel na inovação tecnológica. A produção de patentes por pesquisadores e instituições chinesas está crescendo vertiginosamente em parte porque o governo chinês investe pesadamente nisso", afirma a pesquisadora.
Quais a áreas de interesse do Brasil e qual o interesse dos outros países na ciência brasileira?
Em várias áreas, o interesse é mais do Brasil do que de seus parceiros, como é, por exemplo, no caso dos satélites.
O satélite brasileiro CBERS-4, feito em parceria com a China, já divulga publicamente diversas imagens feitas em território nacional. O novo acordo, se sair, vai permitir o acesso brasileiro às imagens de outros países.
Outra área de interesse brasileira são os projetos de inteligência artificial desenvolvidos pela China.
"A China tem uma agenda forte de inovação para um crescimento econômico mais inclusivo e mais sustentável", afirma Abdenur. "O país tem muito interesse nas áreas de ponta, principalmente em inteligência artificial e nas aplicações que isso pode ter em vários setores."
Mas o que esses países têm a ganhar compartilhando esse tipo de tecnologia conosco?
Segundo os analistas ouvidos pela reportagem, o Brasil pode contribuir na cooperação em várias áreas, notadamente a aviação - inclusive um memorando sobre parceria para fortalecimento da aviação regional é uma das expectativas de resultado da cúpula.
Outras áreas, segundo Abdenur, seriam pesquisa em agricultura, desenvolvimento sustentável e saúde pública.
Até pela falta de recursos, muitas das experiências e técnicas que o Brasil tem a compartilhar não são inovações caras, mas resultado do esforço dos brasileiros em trabalhar com poucos recursos.
"Um exemplo são os bancos de leite materno, que usam recursos pré-existentes para diminuir a mortalidade infantil, um modelo que o Brasil já tem exportado para outros países", afirma a pesquisadora. "Esse tipo de iniciativa de inovação é muito bem visto pela coalização e todos os países têm interesse em compartilhar."
Desenvolvimento sustentável
Uma área em que todos os países do Brics têm interesse em colaborar na questão de infraestrutura com baixo impacto ambiental.
"É a ideia de que a construção de grandes projetos, como hidrelétricas, é preciso evitar os erros que se cometia no passado. Existem técnicas de engenharia e arquitetura que ajudam a mitigar o impacto ambiental", explica Abdenur.
Segundo a pesquisadora, a China tem muito interesse nisso porque o Belten Road Initiave, seu grande projeto de reformulação de rotas comerciais globais, é todo ancorado nessa ideia.
O país sofre fortes problemas ambientais por ter ignorado isso no passado: o alto crescimento sem essa preocupação nas últimas décadas foi responsável por catástrofes ambientais e os altos índices de poluição no país.
"O Brasil poderia aproveitar essa colaboração porque aqui as práticas sustentáveis relacionadas não foram para a frente", afirma a pesquisadora.
Mas os acordos de cooperação e parceria poderiam ser um risco para a segurança nacional brasileira?
Segundo o governo, a cooperação com os Brics será feita dentro dos parâmetros e regras estabelecidos para que não haja apropriação indevida de know-how alheio ou alguma ameaça de espionagem.
Há temores na relação com países como a Rússia, por exemplo, acusada de interferir, através de ataques cibernéticos, nas eleições americanas.
Mas para especialistas, esses temores não se justificam.
"No nosso longo histórico de cooperação com a Rússia, inclusive na área especial, os projetos são escolhidos a dedo para que haja uma troca de tecnologia sem risco para a segurança", afirma Adriana Abdenur, que coordena a área de segurança internacional do Instituto Igarapé.
"O Brasil não se envolveria em uma operação que comprometesse a sua capacidade de ciberdefesa", diz a pesquisadora.
Segundo Geraldo Nagib Zahran, professor de relações internacionais da PUC-Rio, "não há grande interesse da Rússia em interferir no Brasil até pela [baixa] relevância que o país tem [dentro das prioridades russas]".
"A segurança de informação é uma questão brasileira, que o Brasil precisa melhorar de maneira geral. A ameaça é difusa, não vem de parcerias científicas", diz Zahran.
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