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Múmias achadas nos EUA podem conter o vírus da varíola, um dos mais mortais

Do UOL, em São Paulo

08/05/2014 06h00

Em 2011, os trabalhos para a fundação de uma obra na região do Queens, em Nova York, foram interrompidos por uma inesperada estrutura de metal. Perfurando o local, os trabalhadores descobriram que dentro dela havia um corpo, depois identificado por antropólogos forenses da cidade como a múmia de uma mulher afroamericana de meados do século 19, excepcionalmente bem conservada, vestindo meias e roupas de dormir.

O corpo foi enterrado no que era o cemitério de uma igreja próxima dali, em um caixão luxuoso – o que era pouco comum para uma mulher negra na época. Examinando lesões e protuberâncias encontradas no corpo mumificado, o cientista Bradley Adams, chefe de Departamento de Antropologia Forense de Nova York, lembrou-se de fotos de vítimas de varíola. O caixão de ferro, fechado a vácuo, não se destinava a preservar o corpo de algum indivíduo rico, mas a isolar uma infecção.

O caso passou a ser tratado como de potencial risco biológico. Acionado, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Atlanta (CDC) enviou uma equipe de cientistas para fazer a autópsia do corpo com uma missão especial; não se sabe por quanto tempo o vírus da varíola pode sobreviver em um cadáver humano, e a equipe da epidemiologista Andrea McCollum estava à procura de partículas do vírus no corpo ou no DNA da mulher.

Em busca do histórico do vírus

Neste mês, a Assembleia Mundial da Saúde, órgão de decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS), deve se reunir em Genebra para decidir quando destruir as únicas amostras conhecidas do vírus da varíola, mantidas em congeladores poderosos de laboratórios nos Estados Unidos e na Rússia. A destruição vem sendo postergada desde os anos 80, e provavelmente será adiada de novo; mas mesmo se esses estoques oficiais forem destruídos, existe a chance de que outros focos do vírus estejam escondidos em um freezer qualquer, ou de que o patógeno da varíola reapareça a partir de um cadáver mumificado, como o do Queens.

“O risco de o vírus voltar a causar uma pandemia é baixo, mas existe essa preocupação”, diz McCollum. A descoberta de espécimes antigos do vírus, mortos ou vivos, podem ajudar os cientistas a montar um plano de defesa caso infecções pelo vírus da varíola voltem a acontecer.

A varíola tem a reputação de ser uma das piores doenças da história: ela se espalha rapidamente e mata cerca de um terço dos infectados. Embora tenha atingido seres humanos em todo o mundo, americanos e africanos foram vítimas de suas versões mais extremas: algumas populações foram completamente exterminadas depois de contrair a doença dos invasores europeus, nos séculos 16 e 18. Em 1966, quando ainda se registrava 10 a 15 milhões de casos por ano em todo o mundo, a OMS decidiu aprimorar as campanhas de vacinação e contenção. Em 1977, a doença estava erradicada.

Vírus remanescentes da varíola estão espalhados pelo mundo. Sintomas da doença, como lesões na pele com partículas e DNA do vírus da varíola foram encontrados em cadáveres humanos de mais de 3.200 anos, inclusive na na múmia do faraó egípcio Rameses V. Mesmo assim, não há registros do reaparecimento do vírus a partir de um cadáver. Também na múmia da mulher do Queens, o DNA de varíola encontrado estava bastante degradado.

O vírus da varíola é especialmente estável no tecido humano, segundo D.A. Henderson, cientista que liderou os esforços de erradicação da varíola nos anos 60 e 70, atualmente ligado ao Centro de Segurança de Saúde da Universidade de Pittsburgh, na cidade americana de Baltimore. O vírus presente nas feridas de um doente permanecem nas cicatrizes, mesmo depois que as erupções na pele são curadas.

Peter Jahrling, virólogo no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, concorda que o risco de infecção é baixo, mas existe. “É bom se precaver se você estiver escavando cadáveres de pessoas que morreram de varíola”, ele afirma. “O vírus é particularmente bem preservado em temperaturas baixas. É plausível imaginar que o vírus pode existir em múmias conservadas em criptas frias”.

Varíola pelo correio

De acordo com a viróloga molecular Inger Damon, do CDC, a mais antiga amostra viável do vírus da varíola é de 1939. “Obter uma amostra do século XIX seria de enorme importância”, afirma ela. Estudar a evolução do vírus da varíola pode revelar quando a doença passou a infectar humanos, ou como ela foi evoluindo em variações cada vez mais graves. Essas descobertas podem ajudar no tratamento de doenças como a varíola dos macacos, doença tropical exótica que vem preocupando em certas regiões da África. Corpos mumificados e pedaços de tecido humano são a principal esperança dos cientistas para conhecer o histórico da evolução do vírus.

Outra tentativa de encontrar uma variação mais antiga do vírus ocorreu em 2010, quando cientistas do CDC foram em busca de uma amostra de casca de ferida em exposição no Museu da Sociedade Histórica da Virginia, em Richmond, que incluiu em uma exibição de “esquisitices” a correspondência de uma família de médicos em que eles trocaram um pedaço da pele cicatrizada de uma criança infectada por varíola. O pedaço da casca de ferida era “perfeitamente fresco” e deveria ser suficiente para vacinar 12 pessoas, segundo o remetente, William Massie, que escreveu a carta em 1876.

A extraordinária estabilidade do vírus no tecido humano permitiu aos médicos desenvolver a técnica da variolação, uma precursora da vacina, muito utilizada no século XIX e em regiões muito pobres no século XX. O vírus permanece nas cicatrizes do corpo de uma pessoa com varíola, mas dificilmente é transmitido pelo ar ou por contato depois que o sangue foi coagulado. Esse vírus “aprisionado” na pele em cicatrização era transportado pelos médicos em suas maletas; as pessoas que recebiam o vírus na corrente sanguínea acabavam imunizadas ou contraindo uma versão mais branda da doença em regiões epidêmicas.

“Nós temos informações sobre diversos fragmentos usados na variolação, que caíram de livros ou foram guardados em porões”, diz Damon. No envelope em exposição no museu, o CDC encontrou DNA viral, mas de outra espécie semelhante à da varíola.