Estudo revela formigas ociosas e contesta fábula de "animal trabalhador"
Jean de La Fontaine, através de suas fábulas, tinha por ambição usar “animais para instruir os homens”. A fábula que abre sua primeira coletânea é a famosa história da Cigarra e da Formiga, inspirada em Esopo. Se o escritor grego mostra, em seu texto, as formigas atarefadas, colocando grãos para secar, seu longínquo sucessor francês não se dá ao mesmo trabalho e já presume como certa a imagem da formiga trabalhadora, reforçando-a.
Essa imagem ganhou tanta força que, nas definições do dicionário, uma formiga pode ser sinônimo de uma pessoa trabalhadora e um formigueiro um lugar onde trabalha um grande número de humanos. Além disso, foi atribuído o sucesso ecológico dos insetos sociais (abelhas, formigas, cupins...) à divisão do trabalho e à especialização dos indivíduos que eles adotam, um modo de organização no qual o Homo sapiens se inspirou para muitos domínios, como a indústria, a informática, a robótica e a logística.
No entanto, tudo isso pode ter sido construído em cima de um simples mito, pois formigas e trabalho não seriam tão sinônimos assim, de acordo com vários estudos, o mais recente deles publicado na edição de setembro da revista “Behavioral Ecology and Sociobiology”.
Metade fica à toa
Os autores desse artigo, biólogos da Universidade do Arizona, partiram da constatação, obtida por diversos trabalhos anteriores, que diz que nos formigueiros estudados cerca de metade dos indivíduos pareciam inativos. Então eles quiseram verificar se esse era de fato o caso e testar diversas hipóteses que pudessem explicar essa “ociosidade” como, por exemplo, uma necessidade de repouso imposta pelo relógio interno ou por excesso de trabalho.
Para isso esses pesquisadores foram a campo, em uma área perto de Tucson, no Arizona, para coletar cinco pequenas colônias de Temnothorax rugatulus, uma formiga norte-americana, e as instalaram em ninhos artificiais que imitavam as fissuras de rochedos que essa espécie aprecia como habitat. Mas em vez de serem completamente cercados por rochas, os insetos viviam sob uma placa de vidro, para que pudessem ser observados. As formigas tinham à sua disposição água, alimento, mas também os grãos de areia que elas utilizam para construir paredes em suas colônias.
Como era preciso poder identificar cada inseto para analisar seu comportamento, os pesquisadores pacientemente colocaram em todas as formigas uma combinação de quatro pontos de pintura – um na cabeça, um no tórax e dois no abdômen – alguns dias antes do início da experiência. Esta consistiu em filmar as cinco colônias não continuamente, mas em 18 episódios de cinco minutos cada, seis por dia durante três dias, distribuídos ao longo de um período de três semanas.
Registrar as imagens evidentemente era a parte mais fácil da história. O quebra-cabeça começou depois, quando foi preciso analisar, para cada indivíduo, todos esses vídeos, um verdadeiro trabalho de...formiguinha.
Os observadores tinham como missão anotar todas as atividades que os insetos realizavam, desde a manutenção do ninho até os cuidados ministrados aos ovos e larvas, passando pelo abastecimento fora do formigueiro, a higiene pessoal e a dos congêneres, ou ainda essa atividade particular que é a trofalaxia, que consiste em regurgitar uma parte da comida ingerida em uma espécie de segundo estômago que serve de despensa para as formigas muito ocupadas que não têm tempo para se alimentar. E, é claro, os pesquisadores registraram todos os períodos de inatividade.
Dos 225 insetos acompanhados, surgiram quatro grandes categorias: a das puericultoras (34 formigas), a das operárias que trabalham fora do ninho (26), a das generalistas (62), que fazem um pouco de tudo, e por fim a das ociosas (103!) que não fazem nada ou quase nada, independentemente do período do dia ou da noite em que foram observadas.
Para os autores desse artigo, deve-se constatar que nada, nem a necessidade de repouso, nem um ritmo circadiano, parece justificar essa inatividade quase permanente. As formigas que trabalham fazem aquilo que precisam fazer, independentemente do tempo que isso levará, e não são substituídas pelas outras, não há turnos de trabalho entre elas.
Os autores reconhecem que três semanas de observação talvez não sejam suficientes para identificar uma função misteriosa que não seria compreendida pelos entomologistas. Entrevistado pela “New Scientist”, Tomer Czaczkes, da Universidade de Ratisbona, sugeriu a ideia de que essas formigas possam ser uma espécie de exército de reservistas, à espera de serem convocadas para defender a colônia ou fazer uma incursão de escravos em um outro formigueiro...
Daniel Charbonneau, um dos dois autores do estudo junto com Anna Dornhaus, parece pender para outras hipóteses. Como as formigas ociosas têm menos interações com as outras, elas poderiam simplesmente não estar cientes de que há trabalho à espera, ou, ainda mais sutilmente... tentariam evitá-lo. Em um segundo artigo publicado na edição de outubro do “Journal of Bioeconomics”, Daniel Charbonneau e Anna Dornhaus se perguntam se a preguiça, ou pelo menos o fato de que uma fração da população opta pela inatividade, não seria a consequência natural de uma organização de trabalho complexo.
A ociosidade poderia, no fim das contas, ser uma atividade como outra qualquer... Seja como for, esses dois pesquisadores, ao demolirem o mito da formiga trabalhadora, ressaltam que esse resultado implica que todos os estudos de entomologia que se interessam pelas tarefas “ativas” são tendenciosos, uma vez que esquecem que quase metade da população se dedica a uma especialidade importante: o fazer-nada.
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