Falta de pessoal, verba e ambição atrasam programa espacial brasileiro
Com quatro décadas de existência, o programa espacial brasileiro deixou para trás a fama de referência entre países emergentes para enfrentar uma fase de problemas e ser ultrapassado por outras nações. Segundo os planos traçados, o Brasil deveria estar no espaço com um novo satélite de monitoramento, lançado por um foguete nacional --mas ambos os projetos estão atrasados em seus cronogramas.
Segundo autoridades do setor entrevistadas pelo UOL, os desafios foram criados pelos cortes de pessoal e de orçamento, ocorridos nos últimos anos, além de erros estratégicos. Com isso, o Brasil não desenvolveu tecnologia e atrasou a fabricação de foguetes e satélites.
O cenário atual foi debatido por líderes do programa espacial durante a reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), ocorrida em julho em Maceió.
Atualmente, há dois importantes satélites brasileiros no espaço: o novo satélite geoestacionário e o Cbers 4.
O primeiro foi lançado em maio de 2017 e idealizado para a área de telecomunicações. Tem entre suas possibilidades fornecer banda larga a hospitais e escolas de todo o país.
Já o Cbers 4 foi feito em cooperação com a China. Ele é usado para sensoriamento remoto, ou seja, voa baixo para tirar fotos e mandá-las à Terra. Há ainda satélites mais antigos que ajudam nesse monitoramento e que, mesmo já tendo expirado sua utilização prevista, continuam em funcionamento.
O próprio Cbers foi estimado para se "aposentar" no fim do ano passado.
Um novo satélite, denominado Cbers 4A, o substituiria. Mas o projeto atrasou e não entrou em órbita.
Em novembro do ano passado, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) já falava que o lançamento seria em maio de 2019. A nova previsão diz apenas que acontecerá no segundo semestre do próximo ano. O antigo modelo continua mandando imagens sem falhas.
A nova "menina dos olhos" da tecnologia espacial civil brasileira é o satélite Amazônia 1, feito para dar mais qualidade ao monitoramento da região amazônica --hoje o país não possui um satélite com esse perfil só para a Amazônia.
Mas seu desenvolvimento também atrasou. Seu envio ao espaço está previsto apenas para 2020.
Falta tecnologia
Para colocar um novo satélite em órbita, o Brasil precisa enviá-lo para um país que possua foguete de lançamento. Não há um equipamento nacional, o que encarece os projetos.
"Para lançar o Amazônia 1, por exemplo, temos de fazer a licitação com dois anos e meio de antecedência. Precisamos desse tempo porque temos que saber quais as características do foguete, a vibração que ele faz especialmente no lançamento para fazer os testes e saber se ele resiste a a essa vibração. Se tivéssemos nossos próprios foguetes, já saberíamos isso", afirma Ricardo Galvão, presidente do Inpe. "Estamos muito atrasados no programa."
Parte desse atraso pode ser explicada pela explosão na base de Alcântara (MA), em 2003.
Mas não foi só isso, dizem os entrevistados ouvidos pela reportagem. Eles também citaram problemas com fluxo de caixa e falta de pessoal especializado. O primeiro pode ser recomposto no orçamento se houve vontade política. Já a segunda questão depende acima de tudo de tempo.
"A formação leva cinco anos, e some mais dois anos para começar a produzir conhecimento", diz o brigadeiro Augusto de Castro Otero, diretor do IAE (Instituto de Aeronáutica e Espaço).
No Inpe, a situação é parecida. O presidente Ricardo Galvão conta que, desde que entrou no órgão, em 2016, houve 250 pedidos de aposentadoria, num universo de 800 pessoas trabalhando atualmente.
Isso causa problemas no andamento dos projetos. "Terceirizados podem fazer várias coisas, mas há outras que só servidores públicos podem assumir, como ter acesso a certos sistemas", afirma ele.
Falta estratégia
Sobre a falta de um foguete, o diretor diz que ter esse equipamento é algo que trata não só de tecnologia. "Faltaram recurso e pessoal, mas foi um erro de estratégia. Deveria ter concentrado mais [essas coisas] e ter desenvolvido o nosso lançador", diz o presidente do Inpe.
Para ele, isso teve impacto também na soberania nacional. "Tínhamos um papel de líder na América Latina, e hoje estamos bem atrás, por exemplo, da Argentina", relata.
Segundo Galvão, o primeiro satélite argentino foi testado no Inpe, mas hoje o país vizinho "nos superou na capacidade de fazer satélites e foguetes lançadores".
O programa especial brasileiro é dividido em duas frentes: uma civil, coordenada pelo Inpe, que fabrica os satélites; e outra militar, comandada pelo IAE. Cabe à Aeronáutica produzir os foguetes e fazer os lançamentos.
O diretor do instituto, engenheiro e brigadeiro Augusto de Castro Otero, reconhece o atraso na produção do chamado VLM (Veículo Lançador de Microssatélite) --que deveria ter sido lançado em 2015, segundo planejamento inicial--, mas fala que não houve atraso estratégico. Hoje, esse foguete é desenvolvido em parceria com a Alemanha.
"O Brasil nunca atrasou a ideia [de ter o lançador]. Ela sempre foi tempestiva [tinha prazo definido para ocorrer], iria ser feita no momento certo. O que aconteceu foi que tivemos contingenciamentos históricos, o fluxo de caixa foi diferente do que fora inicialmente planejado", afirma. "Quando se reduz o recurso, você alonga o projeto em tempo e sofre diversos problemas, como envelhecimento da tecnologia, da equipe de projeto."
Segundo o brigadeiro, para 2018 e 2019 estão garantidos recursos que devem permitir o cumprimento do cronograma --que prevê um primeiro lançamento de teste em 2019. Já o primeiro lançamento em órbita de um satélite brasileiro deve ocorrer apenas em 2021.
Falta dinheiro
Um dos grandes desafios para a continuidade do programa espacial brasileiro é a redução de verbas e de mão de obra qualificada nos últimos anos.
Em 2014, por exemplo, o IAE tinha orçamento de R$ 58 milhões. Em 2017, esse valor caiu para R$ 27,3 milhões (ou 53% a menos). Com isso, o número de projetos desenvolvidos baixou de 53 para 16.
De acordo com o brigadeiro, outro problema "grave" é que o IAE possui hoje apenas 558 cargos ocupados, enquanto 607 estão vagos.
"A redução das pessoas causa impacto em todos os projetos, seja de tempo, custo, descontinuidade", diz.
Sobre a queda de recursos, Galvão afirma que o Inpe sofre com essa redução desde o começo do século. "Desde 2000 os recursos tem diminuído gradativamente", revela, citando que em 2018 o Ministério da Ciência e Tecnologia reduziu o corte do orçamento da área. "Conversamos com o ministro [Gilberto] Kassab e ele recompôs [a verba]."
O investimento brasileiro estimado para os primeiros lançamentos do foguete é de R$ 150 milhões. A outra parte do recurso é bancada pelo governo alemão, que entrou no projeto em 2014, quando o IAE percebeu que não conseguiria fazer sozinho o projeto. A parceria com a Alemanha já existia para outras áreas, mas foi crucial não só do ponto de vista financeiro como tecnológico.
"Não é um valor alto e, se houver fluxo, o projeto será feito com êxito. Mais que recursos, há barreiras tecnológicas que precisam ser superadas, e algumas delas empurram o projeto um pouco mais para a frente porque precisamos dar soluções", explica.
Falta ambição
Para Othon Winter, pesquisador do Grupo de Dinâmica Orbital e Planetologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista), o programa espacial teve uma série de avanços conquistados ao longo desse período, como o desenvolvimento e colocação em órbita do satélite geoestacionário, os laboratórios científicos e a base de Alcântara.
Apesar disso, ele cita que essas foram "pequenas coisas” e afirma que o Brasil deixou de fazer outras mais importantes.
"O Brasil é um país continental, não estamos falando de um pequeno país. A gente precisa ter satélite, controlar fronteiras. Temos muita coisinha que seria legal para um país como o Chile, por exemplo, mas para o Brasil é muito pouco. A Índia, que é muito similar ao Brasil em território, tem seu próprio lançador, mandou satélite à Lua, é um país que tem autonomia nesse campo. O que temos é muito pouco pela nossa extensão. Poderíamos estar muito avançado nesse cenário", explica.
Para Winter, a falta de recursos não pode ser apontada como causa só do problema. "Falta algo um pouco mais arrojado. Falta dinheiro, mas não é só. Já tivemos dinheiro em alguns momentos e não soubemos gastar", diz.
O pesquisador ainda ressalta que o domínio da tecnologia espacial precisa ser tratado como questão de soberania nacional.
"A área especial, assim como a nuclear, têm de ser de Estado, tem de ser prioridade. Lógico que em época de crise você reduz [o dinheiro investido], mas tem de ter um plano perene, de médio a longo prazo, para dizer o que é que você quer fazer. Isso tem de ser pensado inclusive sem depender de troca de governo", afirma.
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