O axé no divã

Depois do Carnaval que marcou os 40 anos do movimento, o axé encara acertos e erros da fase adulta

Luciano Matos De Salvador (BA), em colaboração para o TOCA Getty Images/iStockphoto

O axé music passou da fase da adolescência. Como todo adolescente, teve acertos e também cometeu muitos erros. É um adulto que ainda tem muito para oferecer, mas tem que olhar um pouco para trás para ter sabedoria e se renovar. Está na hora do axé ir ao divã

Este é o diagnóstico de Manno Góes, compositor e empresário, autor de pelo menos dois grandes sucessos do axé music, 'Milla' e 'Praieiro'.

A análise resume bem o estado atual do movimento musical baiano que completa 40 anos em 2025.

Do surgimento nas ruas de Salvador à explosão nacional nos anos 1990, o axé chegou a emplacar sete músicas entre as 50 mais tocadas nas rádios brasileiras. Os discos ocupavam o ranking dos mais vendidos, muitos ultrapassam a marca de 2 milhões de cópias.

O som que fazia a cabeça dos brasileiros hoje parece ter caído no ostracismo, a julgar pelas paradas de sucesso. Nos últimos quatro anos, apenas uma música apareceu entre as 50 mais tocadas nos streamings, segundo a Pró-Música: 'Zona De Perigo', de Leo Santana.

Para a cantora e ministra Margareth Menezes não se trata de uma crise.

Vários artistas da música baiana continuam aí fazendo shows, trabalhando pelo Brasil inteiro. Acho que a coisa está muito mais solidificada do que 'pra acabou'. Não acabou e não acabará. O rock acabou? O samba acabou? Isso não acaba, simplesmente entra numa dinâmica de constância

Negócio demais

Bell Marques, Daniela Mercury e Ivete Sangalo seguem atuantes e populares. No Carnaval de 2025, os três arrastaram multidões.

As comemorações dos 40 anos colocou os holofotes para as homenagens - ainda que o pagodão baiano continue sendo a maior fonte de novidades da música baiana.

Fato é: há tempos não surgem novos artistas para dar continuidade à popularidade do axé. É o que pensa, por exemplo, a cantora Márcia Castro.

Artista de uma geração mais recente e que não fez parte do movimento, ela lançou um álbum chamado 'Axé' em 2022 e vem promovendo um resgate do samba reggae em um novo projeto.

"A gente percebe que a ganância de muitos empresários e a falta de visão empresarial dos artistas, nesse sentido de continuidade, fez com que se esgotasse muito o gênero musical, e acabou que a gente não criou fonte de renovação", diz.

Presidente da Universal Music no auge do axé, Marcelo Castello Branco diz que as gravadoras na época enxergavam o movimento como 'música pop'.

O que move (a música) são grandes canções, que são feitas por autores verdadeiros, por gente que realmente tem o poder da caneta e, às vezes, como vira um grande negócio, outras pessoas querem entrar no sistema, assinarem seus nomes e priorizarem as suas participações em detrimento de grandes canções
Marcelo Castello Branco

Nesses 40 anos, muita coisa mudou no Carnaval de Salvador: a diminuição de blocos com corda, a substituição pelos camarotes. Porém, os empresários continuam se beneficiando e mantêm as estrelas do axé como protagonistas.

Bebendo da fonte

Com axé ou não, a Bahia segue bastante ativa na produção musical. BaianaSystem, Luedji Luna, ÀttoxxÁ, Larissa Luz e Afrocidade comprovam essa renovação.

O Baiana, a cada ano, se fortalece como a grande novidade da festa e já extrapola as bolhas. Com suas pipocas gigantescas, deve ganhar um dia só para ele no pré-carnaval de Salvador.

Nenhum deles, no entanto, segue o que se convencionou como axé music - trazem elementos em comuns, bebem de fontes parecidas, mas buscam caminhos distantes da lógica industrial a qual se formatou o movimento.

Para Guga Barbosa, vocalista da Vitrolab, uma das bandas que trazem essa influência, é preciso olhar crítico "para não repetir os erros conceituais que levaram ao declínio".

O cantor e compositor Alexandre Peixe, autor de sucessos como 'Não Vou Chorar' e 'Voa Voa', defende que a produção musical baiana tem muita capacidade, sem precisar se prender a gênero ou a rótulo.

A gente teria que fazer esse movimento de novas músicas, novos artistas, trazendo de novo para o hype, para um protagonismo que a gente fala tanto que se perdeu. A saída sempre vai ser música, não tem jeito. Você pode ter um bloco gigantesco, pode tocar no melhor camarote do mundo, mas se a música for pobre, ela não sustenta isso tudo

O disco síntese

Há 40 anos, o hype e o dom da mistura ajudaram o axé a nascer. A data comemorativa remonta ao álbum 'Magia', de Luiz Caldas, lançado no final de 1985, considerado o marco inaugural do movimento.

Desde o final dos anos 1970, alguns artistas, incluindo o próprio Luiz, já promoviam fusões de ritmos e elementos que resvalaram naquela musicalidade inovadora, festiva e extremamente pop que surgia no cenário musical de Salvador.

Já existia a influência de toda uma história do movimento tropicalista, dos Novos Baianos, do A Cor do Som. Artistas que pegaram as levadas, como Moraes Moreira, que botou o Ijexá no violão em cima do trio elétrico. Essa influência se somou a um comportamento mais pop, mais contemporâneo, e também à diversidade das fontes, como os blocos afros
Margareth Menezes

'Magia' consolidou esse movimento por ser o primeiro trabalho a conseguir sintetizar, em um único álbum, ijexá, o frevo eletrificado do carnaval, merengue, salsa, reggae e pop.

O álbum foi responsável também por apresentar aquele cenário para o resto do Brasil, obtendo sucesso nacional, não com um hit, mas com toda uma obra bem estruturada por trás. Inicialmente, saiu por uma pequena gravadora baiana e, depois, em todo país, por uma gravadora de maior porte.

Fricote music

Depois do sucesso de 'Fricote', de Luiz Caldas, o mercado e o público de todo país passaram a olhar o que vinha sendo produzido na Bahia.

Nesta época, Sarajane e Gerônimo também fizeram misturas numa embalagem pop. Já Margareth Menezes, Olodum e as bandas Mel e Reflexu's mergulhavam em sonoridades afro-baianas e apresentavam um dos ritmos surgidos naquele ambiente, o samba-reggae.

A banda Reflexu's foi o maior fenômeno comercial deste período e primeiro nome do axé a ultrapassar a marca de um milhão de cópias vendidas. Estabelecia-se ali o que iria ser conhecido como axé music, ainda que aquela sonoridade fosse apelidada como "deboche" ou "fricote".

A denominação só veio em 1987, criada de forma pejorativa pelo jornalista Hagamenon Brito. "Desde os primeiros anos da década de 1980 algumas pessoas usavam o termo 'axé' como sinônimo de coisa brega, de gosto estético duvidoso, e sem qualquer relação com a nobreza que o termo tem na cultura iorubá e na religiosidade afro-brasileira", conta.

Os artistas, inicialmente, detestaram, mas o rótulo pegou no showbiz e em toda a imprensa do Rio e de São Paulo. Acabou dando identidade àquela geração de músicos baianos.

A virada

O batismo do cantor norte-americano Paul Simon, que gravou no Pelourinho com o Olodum em 1991, foi um primeiro passo para uma mudança nessa perspectiva.

O grande marco, no entanto, foi o álbum 'O Canto da Cidade', de Daniela Mercury, lançado em 1992 pela Sony Music. Vendeu mais de três milhões de cópias, bateu recordes de público em shows e até virou programa especial na TV Globo.

A indústria fonográfica chegou com força, o ambiente se tornou mais profissional e muito mais dinheiro passou a circular. Com isso, surgiram mudanças na musicalidade e nas temáticas das letras. O perfil dos artistas também começou a mudar aos poucos, com menor presença negra e maioria de artistas oriundos da classe média.

É quando entram em cena a Banda Eva com Ivete Sangalo, Timbalada com Carlinhos Brown, depois Claudia Leitte, inicialmente com Babado Novo, Jammil, além de Ara Ketu, entre tantos outros. Entre os mais antigos, as bandas Chiclete com Banana e Asa de Águia foram algumas das que permaneceram em evidência.

Vários álbuns ultrapassaram a marca de 2 milhões de cópias vendidas, boa parte deles, registros ao vivo, como o de Netinho (1996), da Banda Eva (1997), do AraKetu (1998), do Terra Samba (1998) e dois de Ivete Sangalo (2004 e 2007). Só entre estes foram mais de 14 milhões de discos vendidos no período.

Se a Sony havia apostado em Daniela, a Polygram foi bem além: investiu na Timbalada, Cheiro de Amor, Netinho, Terra Samba, Banda Eva (com Ivete), Banda Beijo, É o Tchan e As Meninas.

A música baiana passou a ser forte em todo país, com a exportação do modelo do Carnaval de Salvador para diversas cidades pelo Brasil. Era a disseminação das micaretas, com trios elétricos e venda dos abadás. Quando Michael Jackson pisou no Pelourinho, em 1996, para gravar com Olodum, o axé já estava em ritmo de dominação nacional.

No ritmo do pagodão

Outro fenômeno foi o grupo É o Tchan, que trazia o pagode como um novo ritmo criado na música baiana. Diferente do paulista e do carioca, o pagode baiano era mais acelerado e suingado, herança do samba de roda e samba junino, uma derivação do chamado samba duro. Tinha predominância de instrumentos percussivos, com destaque para timbal, surdo, marcação e tamborim, além de linhas melódicas marcantes.

Com Beto Jamaica e Compadre Washington à frente e dançarinas com trajes sumários, vendeu milhões de discos. Os quatro primeiros superaram a marca de 2 milhões de cópias vendidas cada.

Vieram outros grupos de pagode da Bahia, como Companhia do Pagode, com a música 'Na Boquinha da Garrafa', e o já citado Terra Samba, com mais de 2 milhões de cópias vendidas de seu álbum ao vivo.

Incorporados à indústria do axé, esses artistas eram apenas uma demonstração de uma vasta produção que acontecia espontaneamente nas periferias. Nos anos 2000, o pagode assumiu definitivamente o protagonismo na música e encaminhou a consolidação de uma nova cultura na capital baiana, com nomes como Psirico, Parangolé, Pagodart, Léo Santana e muitos outros.

Preconceito

Recentemente, chamou atenção a polêmica de Claudia Leitte, que mudou a letra da música 'Caranguejo', removendo a saudação a Iemanjá e substituindo-a por Yeshua, que significa Jesus, em hebraico. A artista foi muito criticada e o Ministério Público da Bahia (MP-BA) instaurou um inquérito civil para investigar a cantora por uma possível prática de racismo religioso.

Na abertura do Carnaval 2025, em participação no Camarote Andante, de Carlinhos Brown, a cantora foi bastante vaiada por parte do público. Dias depois, no domingo (2), na Barra, Claudia dividiu o trio com o humorista Tirullipa, que pediu para que ela cantasse a música em questão. A cantora, no entanto, se negou. "Essa não. Peça outra. Essa eu não quero, não. Deu problema, não estou a fim", respondeu.

O caso, porém, não é o primeiro nem o único. O cantor Xanddy Harmonia, que, assim como Claudia, é evangélico, também já alterou um trecho de música em que se fazia referência ao Candomblé. Ele foi criticado pelo público nas redes sociais ao não cantar o nome da religião afro-baiana quando na música 'Raiz de Todo Bem', de Saulo Fernandes.

Por outras razões, nos anos 1990, uma outra música de sucesso teve a letra alterada quando foi gravada. Originalmente de autoria de Tote Gira, 'O Canto da Cidade', teve um discurso abrandado na alteração sugerida pela Sony e por Daniela Mercury quando foi registrada no segundo álbum da cantora.

A própria música 'Fricote', de Luiz Caldas, foi acusada de racismo e o Movimento Negro tentou evitar que tocasse nas rádios na época de lançamento.

As questões raciais sempre andaram juntas à história do axé, seja em casos como estes, seja na atuação de blocos no carnaval, empresários e na própria lógica que o movimento ganhou com o sucesso.

No auge de sucesso, ainda com os blocos sendo disputados pelo público, uma prática preconceituosa acontecia oficial e abertamente. Para se associar, era preciso preencher fichas com dados pessoais e enviar uma foto, mas os blocos aceitavam de acordo com o tom da pele e local de residência. Pessoas negras não eram aceitas, quem morava em bairros populares ou periféricos tinham o pedido negado.

Algumas fotos históricas ilustram bem essa segregação, com os blocos lotados por pessoas de tons mais claros, enquanto ao redor a população negra se aperta fora das cordas.

O racismo no axé music foi acompanhado de um embranquecimento no próprio perfil dos artistas.

Se em sua origem víamos artistas de origem mais popular e negra, como podemos ver no próprio Luiz Caldas ou nos vocalistas das bandas Mel e Reflexu's, isso mudou nos anos 1990 com o sucesso de Daniela Mercury.

Numa tentativa de se encaixar num perfil que a racista sociedade brasileira se adequasse mais facilmente, a indústria passou apostar de forma mais veemente em figuras como Ivete Sangalo ou mesmo os loiros Claudia Leitte e Saulo Fernandes.

10 discos para entender os 40 anos do axé

  • 'Magia', Luiz Caldas (1985)

    Marco de fundação do axé, deu as bases do que seria o movimento com a fusão de elementos e a criação de um suingue único. Ouça 'Fricote', 'Magia' e 'Visão do Ciclope'

    Imagem: Divulgação
  • 'Reflexu's da Mãe África', Banda Reflexu's (1987)

    Maior fenômeno de vendas do axé na década. Ninguém resistiu a potência do samba reggae pop de 'Madagascar Olodum', 'Canto Para o Senegal' e 'Alfabeto do Negão'

    Imagem: Divulgação
  • 'Força Interior', Banda Mel (1987)

    Tanto este quanto o disco seguinte, 'E Lá Vou Eu', apresentaram a banda que definiu o axé pop com uma sequência matadora de hits, entre eles, a versão definitiva de 'Faraó (Divindade do Egito)'

    Imagem: Divulgação
  • 'História do Brasil', Sarajane (1987)

    Outro alicerce do axé, o álbum foi um sucesso de vendas e catapultou a cantora com hits como 'A Roda' e 'Vale', na mesma vibe de mistura de ritmos e referências

    Imagem: Divulgação
  • 'Margareth Menezes', Margareth Menezes (1988)

    Em seu disco de estreia, a atual ministra da Cultura estabeleceu o que seria o afro pop com muita autoridade e iniciou sua carreira internacional. Sucessos: 'Uma História de Ifá (Elegibô)' e 'Alegria da Cidade'

    Imagem: Divulgação
  • 'O Canto da Cidade', Daniela Mercury (1992)

    Álbum definiu um novo momento do movimento, ainda mais pop e universal, estabelecendo o axé music como a música popular brasileira dos anos 1990

    Imagem: Divulgação
  • 'O Movimento', Olodum (1993)

    Pilar da própria música baiana, o Olodum trouxe neste disco uma lógica mais mercadológica, com letras menos politizadas e sonoridade mais pop. Ouça 'Alegria Geral', 'Rosa' e 'Requebra'

    Imagem: Divulgação
  • 'Timbalada', Timbalada (1993)

    Herdeiros do que melhor existia na Bahia, a Timbalada redefiniu a percussão baiana. A força de 'Beija-Flor', 'Canto Pro Mar' e 'Toque de Timbaleiro' ecoa até hoje

    Imagem: Divulgação
  • 'Na Cabeça e na Cintura', É o Tchan (1996)

    Quando o autêntico pagode baiano, que já existia, se transformou em um fenômeno nacional. O disco vendeu mais de 2 milhões de cópias e revelou uma nova cena

    Imagem: Divulgação
  • 'Banda Eva Ao Vivo', Banda Eva (1997)

    Consolidou a banda como nome forte do axé e firmou Ivete como uma artista grandiosa, que cresceu ainda mais com a carreira solo na sequência. Também vendeu 2,5 milhões de cópias

    Imagem: Divulgação
Topo